Debaixo de uma árvore, esperando o sol esfriar, Idelcina Carneiro Oliveira pensava em como mudar a sua vida. Grávida do segundo filho, Jefferson, fazia a limpeza de tanques (barreiros) no sertão. A retirada do barro acumulado no fundo do reservatório seco e o transporte em banguê, dentro do carrinho de mão, era pesado demais, mas era o tipo de trabalho que o governo oferecia durante a seca de 1994, na Bahia.
Um ano antes, segundo a Sudene, a estiagem atingiu 70% do território nordestino e 11 milhões de pessoas, obrigando os governantes a tomarem providências. Criaram o programa Frentes Produtivas de Trabalho e distribuíram cestas básicas para evitar saques e ocupações de prédios públicos, reações de trabalhadores rurais de vários estados diante da falta de água e da fome.
Na meia hora que ficou à sombra, Idelcina questionou se havia algum tipo de trabalho mais leve a ser feito em casa, na verdade uma palhoça, na Fazenda Pau de Colher, divisa de Riachão do Jacuípe e Conceição do Coité. Tinha a vontade que esta atividade, ainda não definida, a ajudasse a realizar pequenos sonhos, como cozinhar com gás de botijão em vez de lenha.
A resposta para a pergunta que martelou a cabeça da trabalhadora rural por oito anos surgiu com a criação da Associação Comunitária do Mucambo, onde as mulheres se reuniam e faziam cursos. Reciclagem de lixo e transformação de produtos descartáveis foi a opção.
Idelcina recrutou suas amigas e organizou um grupo para recolher garrafas pets, tampas e retalhos. O passo seguinte foi transformar tudo isso em artesanato e produtos de cama, mesa e banho. A ideia era vender a produção nas feiras dos municípios A redenção, porém, veio com a chegada da luz elétrica, em 2007, e um empréstimo obtido no Banco do Nordeste.
REIS ROUBADOS
Nascida e criada na fazenda Pau de Colher, onde ainda mora, Idelcina, hoje com 51 anos, foi alfabetizada em casa pela mãe Almerinda Maria de Oliveira, 84, que dedicava às tardes ao ensino das letras e aos “bons ensinamentos da religião católica” para os 12 filhos. A futura empreendedora, no entanto, só viria a concluir o segundo grau em 2013.
No dia a dia, a menina ajudava o pai João Carneiro de Oliveira, já falecido, a limpar mandioca, cuidar de animais e plantar feijão e milho. Não conheceu “brinquedo de loja”. Se divertia com bonecos de argila e correndo livre pelo Mucambo.
Na adolescência, a diversão ficava por conta das noites de rezas, seguidas de leilão (de pães, bolos e coisas da roça), das festas de São Roque, Santo Antônio e São José, dos dias de futebol, de “Reis Roubados” (*), de samba de roda, de dramas (teatrinho) e das cirandas.
De repente, o passado se materializa na sala de costura de Idelcina. Ela, o marido Geraldo Oliveira, 55, e Maria Helena Souza Lima de Oliveira, integrante do grupo de reciclagem, relembram antigas cantigas:
“O pinto pedrês/ E a pinta pelada/ Pegou uma pareia/ No meio do roçado/ O pinto passou/ A pinta ficou/ Espera por mim/ Mulequim diantado (**) ”.
Novas lembranças surgem. As letras das brincadeiras de roda serviram mais tarde para ninar os filhos.
“A barquinha de Noé/ Ê Noé/ Faz tempo que andou/ Ê Noé/ Ela saiu a passear/ Nunca mais ela voltou/ Deu um tombo, ela gemeu/ No balanço que ela deu/ Chegou na pedra e parou/ Ê Noé”.
Dos três filhos da artesã empreendedora, que começou a namorar aos 15 anos, casou aos 18 anos e vive até hoje com Geraldo, só o mais novo, Getúlio, chorava ao ouvir a música em vez de se acalmar.
E A LUZ FOI FEITA
Com a chegada da energia elétrica no povoado de Mucambo e com os ensinamentos repassados na associação comunitária, Idelcina decidiu pegar um empréstimo para comprar máquinas de costura a fim de aumentar a produção.
A primeira aquisição foi uma máquina de costura reta doméstica, depois a modelo ziguezague, por fim, a overloque (máquina industrial que costura e chuleia – faz o acabamento das bordas – ao mesmo tempo). Sem o mesmo maquinário, as outras mulheres do grupo aumentam o valor agregado dos produtos com pinturas, fuxicos e bordados.
Com o atelier montado, a líder do grupo e sua filha Débora, 31, iniciaram a produção de peças íntimas, após a conclusão de outro curso. Perceberam, durante a confecção, que havia desperdício de tecidos e que poderiam aproveitar os retalhos.
A sobra de pano passou a ser usada para fazer moranguinhos, cenouras, cacho de bananas, pimentas, fuxiquinhos e outras peças, que se transformam em arranjos, em enfeites para festas e em jogos de mesa e banho. O que iria para o lixo vira, por exemplo, um tapete de banheiro em forma de peixe, vendido a R$ 50.
tudo é possível
Nas terras onde todos se chamam Carneiro, Oliveira ou usam os dois sobrenomes, nada é jogado fora. Surpreende o tipo de material utilizado: bolas de desodorante roll-on, CDs, garrafas pet, papelão, bulas de remédio.
Débora conta que não precisa mais de cursos, basta ver qualquer peça que sabe fazer:
“Nada é impossível para nós” – afirma.
Bastou uma olhada para confeccionar a bota natalina usada no encerramento do ano letivo das filhas, Mércia e Beatriz. O enfeite foi feito com o fundo e o corpo de uma garrafa pet e papelão. Depois foi adornado com feltro, tecido brilhante e paetê, numa das raras vezes em que não utilizou totalmente material reciclado.
Débora conta que tem a internet como aliada. O Google serve para pesquisas sobre trabalhos com garrafa pet e outras matérias-primas. O Facebook é usado como mostruário de colchas, pesos de portas, brinquedos e arranjos diversos. São dezenas de trabalhos expostos na página @OficinaDeArte10. Serve ainda para receber pedidos de clientes.
FORMAS DE PAGAMENTO
Depósito em conta, à vista, prestações e sistema de caixa. Estas são as formas de recebimento aceitas pelas artesãs. No sistema de caixa, grupos de cinco a dez pessoas fazem as encomendas. O valor dos produtos é dividido em um número de meses igual a quantidade de participantes. Mensalmente, cada comprador contribui com quantia equivalente à sua fração e um dos conjuntos é entregue.
A maior dificuldade para as mulheres ligadas à associação é a logística. Elas não conseguem fazer entregas em outros estados, a não ser que o comprador tenha um portador para buscar a encomenda. Aos poucos, no entanto, encontram formas de minimizar o problema com a ajuda de organizações não governamentais, filantrópicas e órgãos públicos.
A criação da Central de Comercialização Arco do Sertão, armazém da agricultura familiar e economia solidária, pelo Movimento de Organização Comunitária (MOC), na cidade de Serrinha, a 70 km de Feira de Santana, foi uma dessas iniciativas. O estabelecimento negocia produtos de 30 empreendimentos de 13 municípios e beneficia cerca de 2.500 agricultores familiares,
Idelcina explica que nenhuma das integrantes do grupo de reciclagem e artesanato tem capital de giro. Portanto, cada pessoa atua em uma área específica e todas vendem juntas. O trabalho no Mucambo é feito da seguinte forma:
“Se alguém pinta tecido, vou pagar pelo trabalho dessa pessoa. Aí, compro toalha e o material para arrumar a peça. Na hora de vender, calculo o valor do meu trabalho, mais o preço da toalha e do material e quanto foi cobrado pela pintura. Ponho um pouco de lucro e ofereço nas feiras e pela internet” – resume.
O artesanato e a reciclagem estão mudando a vida de pelo menos 18 mulheres. A artesã Ana Rita Carneiro, parente do marido de Idelcina, faz pinturas em tecido. Com o que recebe, custeia o tratamento do filho mais novo, que tem problema de visão, em São Paulo. A arte dela embeleza jogos de toalhas, vendidos no sistema de caixa por R$ 120, o conjunto. Ana mora na comunidade de Canoas e também tem uma página no Facebook.
inovação
Idelcina e Débora contam, além das mulheres da associação, com o apoio de outros componentes da família. Suellen, 16 anos, mulher de Jefferson, o filho do meio da artesã, é quem retalha os panos. Chegou a cortar 416 pedaços – 208 brancas e 208 vermelhas – simétricos para confecção de uma coberta de casal, em tecido Oxford. Com babados e duas fronhas, o jogo de cama custa R$ 200. Não são as colchas mais caras. No alto do ranking estão as de fuxico: R$ 400.
O marido Geraldo, além de muitas outras funções no campo, é o responsável pelas vendas das peças nas feiras de Conceição de Coité e Riachão do Jacuípe. Quando as mulheres da família estão muito ocupadas com as encomendas é ele quem prepara o almoço e o jantar.
Graças ao empreendedorismo de Idelcina, o artesanato representa hoje 80% da renda familiar, O restante vem da horta que mantêm com 29 espécies de pimenta, salsa, cebolinha, couve, coentro e hortelão. Diariamente, vendem na feira, 60 pacotes de verduras.
Antes de fazer reciclagem, Idelcina não recebia nem R$ 5 por mês. Todas as despesas ficavam por conta do marido, que além de agricultor, limpa terrenos, ajuda a construir casas e cuida das terras de um vizinho. A artesã admite que chegou a passar necessidade, mas esta realidade ficou para trás
Com o rendimento que passou a ter, derrubou a antiga moradia, construiu uma casa de alvenaria, fez a oficina de costura, comprou a mobília que precisava – geladeira, fogão, liquidificador, máquina de lavar – adquiriu uma moto e bancou o caro tratamento dentário para um dos filhos. Atualmente, tem uma vida confortável, mas ainda repleta de atividades.
15 horas de trabalho
Idelcina acorda por volta das 7h e vai cuidar de seus periquitos e das oito cabras e cabritos que possui. Em seguida, molha, faz a limpeza, planta e colhe o que a horta produz. Às 9h., o sol esquenta. É hora de começar o trabalho em casa, no quarto de costura. Pausa para preparar o almoço, quando não há muitas encomendas. `
À tarde,volta para o artesanato e a costura. De noite, arruma a casa e vai dormir por volta das 22h.
“Enquanto estou de pé, estou lutando” – conta.
Outra de suas habilidades é fazer vestidos de noiva. Eles levam até 45 dias para ficar prontos. O que mais demora são os bordados. A grife Idelcina foi usada em quatro casamentos nos últimos meses.
Parecida com a mãe, Débora, que é casada e tem duas filhas, tem o empreendedorismo correndo nas veias. Além de costurar, fazer artesanato, produzir polpa de frutas na fábrica do tio, ela revende bijuterias. Como parte de sua comissão era gasta com pequenas caixinhas de papelão, vendidas pela empresa de fornece os enfeites, resolveu fabricar as próprias embalagens, usando papelão de creme dental, caixas de remédios e papel de presente que pede para a família guardar.
“Passei a economizar R$ 0,25 por caixinha. Isso vale ouro” – diz, mostrando um saco repleto de embalagens.
A última criação de Idelcina é surpreendente. Ela descobriu na farmácia da igreja que frequenta uma quantidade imensa de bulas. Sem querer desperdiçar, avaliou que seria possível produzir cestas, enrolando-as, colando-as e usando papelão no fundo. Mais uma peça para sua interminável linha de produção:
“Sei tanta coisa, tanta arte. Trabalho com tudo. Se for até para fazer uma casa, eu faço. Sinto-me tão orgulhosa” – ressalta.
Veja abaixo alguns dos trabalhos feitos pelas mulheres da Associação Comunitária do Mucambo
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(*) A brincadeira dos Reis Roubados é uma antiga tradição no sertão. Os vizinhos marcavam uma família, sem que ela soubesse, e combinavam que iam fazer a brincadeira com eles. No dia marcado, esperavam a família dormir e a acordava cantando samba, ao som de palmas, cuia (feita de cabaça), enxada, pandeiro e cavaquinho. A festa ia até o amanhecer. Não tinha uma época específica para ser realizada. “É quando dava na telha”, explica a artesã Maria Helena Souza Lima de Oliveira.
(**) Moleque bem pequeno que vai à frente dos outros
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.