Mística da terra

Passei uma semana no assentamento Terra Sagrada, região de Camacan, no Sul da Bahia. O local fica às margens do Rio Pardo. A região é marcada por conflitos agrários. De um lado os povos indígenas que lutam para permanecer em seus territórios e os povos ribeirinhos, que travam árdua luta pela terra. Do outro, grileiros e latifundiários.

No caso do assentamento Terra Sagrada, o movimento Ceta (Coordenação Estadual dos Trabalhadores Acampados e Assentados) ocupa a área há sete anos. Neste período, houve quatro despejos. Mas os sem-terra sempre voltam, pois a propriedade foi desocupada pela União que, no entanto, não lhe dá uma destinação.

O 4º despejo e o retorno

Minha ida ao local partiu de um convide da coordenadora do assentamento, Jilcélia, que estava sendo despejada por ordem do juiz da comarca de Camacan, conforme foi noticiado por Meus Sertões e publicações que dão apoio ao movimento dos Sem-terra.

No assentamento, conheci muitos hábitos e histórias dos povos ribeirinhos. Em particular, duas delas me chamaram muita atenção. Existe um encanto nas margens do rio Pardo, tem algo místico no anoitecer daquele assentamento, algo de ancestral. Essa foi minha primeira percepção. Mas o que me intrigou foi a história de uma fogueira que fica o tempo todo acesa.

SEMPRE EM CHAMAS

Cheguei na propriedade por volta de meio dia. Observei uma fogueira braseando à luz do dia, na frente das casas. Ela estava arrodeada de oito cepos (espécie de banquinhos de madeira). Em seguida, um senhor aparentando cerca de 60 anos apareceu com um feixe de lenha e o colocou na fogueira.

Foi aí que me aproximei e perguntei: Por que manter a fogueira acesa àquela hora do dia, apesar de estar muito calor?

O senhor se chamava Raimundo. De inicio se manteve reservado, com muito receio em falar (nessa região, onde o conflito de terra é intenso, existe uma recomendação de se falar o mínimo para estranhos). Aos poucos, ele foi se soltando e me falou que desde o início do assentamento, há sete anos, começou a história da fogueira que não se apaga. Pode fazer sol ou chuva.

“Sou o guardião dela, minha missão é não deixar apagar. Um dia, a fogueira teimou em não acender. Fui até o santuário que fica logo em frente à fogueira e pedi ao Senhor Jesus Cristo para que a chama não se apagasse. Quando olhei para trás, vi uma grande labareda, um sinal de Jesus Cristo para nós” – contou.

A mística do fogo é antiga. O fogo é um sinal de vida, do Espírito Santo, dos mártires da fé que deram a vida por uma causa na Idade Média. As fogueiras eram utilizadas em rituais pagãos, que celebravam a chegada do solstício de verão no hemisfério norte.

A Bíblia relata o fogo como símbolo da purificação. Segundo alguns exegetas (pessoas dedicadas à interpretação de textos bíblicos) e de acordo com a tradição católica, a fogueira queimou, nas montanhas da Judeia, para anunciar o nascimento de João, no dia 24 de junho. Foi à forma que sua mãe Isabel encontrou para comunicar a chegada do filho à Maria, sua prima, que também estava grávida de Jesus.

FESTA de IEMANJÁ

No assentamento, o sincretismo religioso popular se manifesta com muita força. Às vezes, a mística se confunde com a própria história do povo, suas lutas, seus anseios e seus sonhos.

Na fazenda Terra Sagrada existe ainda um santuário dedicado a Iemanjá, que está sob os cuidados da Sagrada Família de Jesus. A mesma família que observa a fogueira santa que alumia os povos ribeirinhos e os protege dos males da terra.

Iemanjá, a deusa do mar, é celebrada no rio Pardo no dia 2 de fevereiro. Um rio com seus encantos e encantados.

O sentido de tudo isso é explicado pela líder do assentamento nos dois vídeos abaixo:

Nascido em Teixeira de Freitas (BA), Joabes R Casaldáliga, aos 10 anos, participava das reuniões das Comunidades Eclesiais de Base. Era levado pela mãe, adepta de religião de matriz africana, que ia aos encontros para discutir os problemas da comunidade em que moravam, em Itamaraju. Cresceu entre o sincretismo, cantos, rezas, benditos, incelenças e a luta pela reforma agrária. Sua vida foi marcada por um encontro com José Comblin, padre que lançou as bases da Teoria da Enxada. É fotógrafo, comunicador popular e integrante da Pastoral da Juventude Rural.

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