Sou peão de boiadeiro/ Toco boi e sou ponteiro/ Sou arribista e culatreiro/ Em todo ponto eu sou faceiro. (Canto popular)
O vaqueiro é um símbolo do sertão, algo sagrado. Quando aboia, ele reza. Poetizado, cantado, imortalizado. Luiz Gonzaga o retrata na “Morte do Vaqueiro”, homenagem a seu primo Raimundo Jacó, famoso no sertão.
Na literatura, João Guimarães Rosa descreveu o peão valente e místico. Euclides da Cunha o chamou de campeador medieval desgarrado. Para José de Alencar, nada o retém. O boiadeiro é patrimônio sertanejo.
Na luta no semiárido, o vaqueiro surge como herói social. Todos têm pontos em comum: família que fugia da fome, da seca e da violência, do acerto de contas. Seu manto sagrado encourado que o protege do xique-xique, dos espinhos cortantes da jurema, resguarda o peito e o coração do pastor da caatinga.
Florisvaldo Cesário de Brito, o Vade, 84 anos, é um dos vaqueiros mais velhos da região sudoeste da Bahia. É o primeiro de cinco filhos de seu Salustiano com dona Maria. Filho de retirantes que fugiam da seca de Anagé, nos idos de 1920, acampou pelas bandas da cidade chamada Verruga, hoje Itambé. Nasceu em 1933, predestinado a ser vaqueiro.
Depois de trabalhar muito tempo como agricultores, os pais de Vade resolveram vender as terras e passaram a ser agregados nas fazendas vizinhas. Nesse período de mudanças, o rapaz conhece Jovito, o professor, o homem que lhe colocaria na vida de vaqueiro. Ofício que seria como algo litúrgico na vida dele.
Com 18 anos, Vade fez a sua primeira montaria em um pordo brabo. O cavalo, segundo ele, saltou tão alto que voou por cima de uma cerca e ali mesmo ficou “estrepado”, morrendo lentamente em uma estaca. Neste momento, o aprendiz conheceu a tristeza de ser vaqueiro, um ser bruto, solitário, que tem as paisagens do sertão como companhia.
Assim como tantos outros meninos, o garoto de Itambé sonhava em ser um bom no auge do ofício. Nessa época, todos se inspiravam em Raimundo Jacó, o “vaqueiro encantado”. O aboio do ídolo era conhecido na vastidão do sertão. Era um canto bonito que atraía a todos.
Vade lembra que “ainda era criança” em sua primeira viagem de leva de gado. Foi aí que ganhou de presente a primeira sandália de couro.
“Quase não acertava andar. Caí uma vez na feira da cidade. Foi a maior vergonha” – lembra.
Sua primeira missão foi servir de guia. Saiu da região de Jequié em direção a Lagarto (SE). Seu grupo levava em torno de dois mil bois. Na época, pegaram atalhos, cruzando dois grandes rios, o de Contas e o Paraguaçu. Hoje teriam que percorrer cerca de 525 km, caso seguissem pela BR-116.
Na hierarquia dos vaqueiros o guia segue na frente, chamando o gado. Esse homem tem que ser bom no aboio. E Vade é.
Tem ainda os “fazedores de boiada”, que são os contadores, aqueles que não podem errar na contagem do gado. Se faltar um animal, os peões voltam para buscá-lo. Uma das regras entre os vaqueiros e não deixar boi na arribada.
O contador tem prestígio no meio dos peões. Seu Vade sempre quis ser um deles, desde pequeno quando se posicionava junto à porteira. Atingiu o objetivo tempos depois.
“Nunca fui à escola, mas tinha sabedoria na minha cabeça” – diz.
Outra função é a de encarregado, uma espécie de relações públicas da tropa. É uma pessoa bem articulada e de bom convívio com a peonada. Sua função consiste em acertar contratos e negociar com os responsáveis pelos pontos de paradas.
Existia ainda outra classe de peões: os salta-moitas. Estes tinham a função de vaquejar a pé. O ofício consistia em seguir os bois, caminhando pelas laterais para evitar que os animais entrassem na caatinga. Se isto ocorresse, ele era o responsável por tirar o boi de lá.
“Os salta-moitas eram necessários porque a vegetação do sertão era muito fechada e somente a pé podia tirar o boi. Geralmente, eles eram contratados pelos vaqueiros” – explica Vade.
Na hierarquia da tropa, os homens que seguiam a pé eram os menos conceituados. Em relatos que perduram até hoje, esses indivíduos tinham parte com o demônio. Há uma grande dosagem de preconceito nesta afirmação, pois os salta-moitas eram negros, rústicos e andavam descalços.
Nossa conversa com Seu Vade segue adiante nos vídeos abaixo. Neles, o veterano vaqueiro lembra de um tempo que não volta mais. Ao lado da filha Thide, produtora cultural, conta que a profissão perdeu o encanto de outrora, E lamenta que o boiadeiro não cuide mais de seus instrumentos – cela, gibão e perneiras – nem de seu cavalo
“Não tem mais paixão” – afirma.
DINHEIRO NO BOLSO, BREGAS E DANÇAS
O GUIA, O ABOIO E A ARRIBADA SECA
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Nascido em Teixeira de Freitas (BA), Joabes R Casaldáliga, aos 10 anos, participava das reuniões das Comunidades Eclesiais de Base. Era levado pela mãe, adepta de religião de matriz africana, que ia aos encontros para discutir os problemas da comunidade em que moravam, em Itamaraju. Cresceu entre o sincretismo, cantos, rezas, benditos, incelenças e a luta pela reforma agrária. Sua vida foi marcada por um encontro com José Comblin, padre que lançou as bases da Teoria da Enxada. É fotógrafo, comunicador popular e integrante da Pastoral da Juventude Rural.