Adeus Florência

Foi ela quem me ensinou, entre uma conversa e uma consulta, que só se morre quando Deus quer. Medo grande era o de morrer antes do tempo e ficar por aqui vagando até ser chamada para… eternidade? Não sabia nem se importava. Desde que fosse chamado d’Ele ela iria sem medo, mesmo reconhecendo que a morte nem sempre é coisa bonita, quase nunca coisa fácil.

Em horas de entrevistas aprendi lições difíceis até de imaginar. Acostumada, ela, a “exultar” moribundos ajudando-os no difícil exercício de morrer, contou-me histórias saudosas dos tempos das “ixcelências”, em que os defuntos eram cantados e chorados por coro de mulheres nem sempre conhecidas mas vocacionadas para aquele mister.

Agora, indagorinha, fico sabendo da sua ida. Certamente chamada por Deus, cansada, conquanto alegre, numa vida cheia de serviço, encantada por mistérios, pautada por abnegações e segredos guardados no porta-joias do meu coração como sagrados. Foi, já passada dos 90, nem tarde nem cedo – na hora exata, suponho.

Lembro agora: deu-me um pilão de presente! Enorme e pesadão, mandado para o posto de saúde em carro de boi, “presente pra doutora que gosta dessas coisas”. Feito para pilar sentada que “pra cansar bastam os braços”.

Entristeço. Que posso fazer? Sou assim – eu mesma com tais tendências: choro saudades e principalmente choro uma maneira de gratidão alegre porque estivemos em contato e porque tal contato fez de mim um ser humano melhor

É assim que acontece em mim a morte da velha amiga e paciente Florência, “Deus chame lá!”, e que tenha se passado bem e que tenha sido fácil o seu morrer, pois como me ensinou – “Só morte de gente boa mesmo, de pessoa santa, é que é leve e breve, é como tirar (a vida) com a mão”.

A hora certa

Nasceu e cresceu numa típica família brasileira. Potiguar, morando na Bahia há vinte anos, é médica de formação e pesquisadora da cultura popular. Nos últimos 10 anos abandonou a sua especialidade em cardiologia e ultrassonografia vascular para atuar como médica da família na Bahia e no Rio Grande do Norte, onde passou a recolher histórias e saberes. Nessa jornada publicou cinco livros.”. No final de 2015 passou temporada no Amazonas recolhendo saberes indígenas.

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