Marca histórica adulterada em Condeúba

As marcas da passagem da Coluna Prestes por Condeúba, cidade com cerca de 18 mil habitantes, encravada na região centro-sul da Bahia, estão na antiga Casa da Câmara e Cadeia de Condeúba. No imponente prédio do Paço Municipal, cuja construção levou 28 anos (1853-1881), funcionaram também o fórum e a câmara de vereadores. Hoje, ele abriga a diretoria de escolas da zona rural e o gabinete do prefeito.

Antes de falarmos da herança deixada pelos revoltosos nas paredes do prédio, convém contextualizar o momento histórico que levou à formação do movimento político-militar que resultou na marcha de 25 mil quilômetros por 13 estados brasileiros com o objetivo de derrubar o governo federal, durante a chamada República Velha. A Coluna, chefiada pelo capitão Luiz Carlos Prestes não sofreu derrotas para as forças legalistas, mas foi obrigada a deixar o território brasileiro em 1927, dois anos após o seu início.

CONTEXTUALIZAÇÃO

A primeira povoação formada por portugueses à procura de riquezas minerais surgiu em 1745 a partir da capela de Santo Antônio da Barra do Sítio de Condeúba, construída na margem direita do Rio Gavião. Pertencente à província de Minas Gerais, mudou de jurisdição em 1839. Doze anos depois, foi anexado como distrito de Caetité, cuja sede estava a 127 quilômetros de distância.

A antiga vila de Santo Antônio da Barra foi elevada à condição de cidade menos de cinco meses antes da Proclamação da República, no dia 28 de junho de 1889. Na década de 1920, era uma das dez maiores cidades da Bahia. Apesar de ter milhares de habitantes, havia apenas 525 eleitores, segundo o professor de história Gildásio Alves dos Santos, autor de “A Coluna Prestes e sua Passagem pelo Município de Condeúba”.

Reproduzindo o modelo da República Velha, um grupo reduzido definia as leis, escolhia parlamentares, juízes e chefes militares e tratava a oposição a “pão e porrete”. Resumindo: o poder era encarado como direito privado e o povo era mantido distante da política e do poder decisório.

Duas revoltas, ambas no dia 5 de julho de anos diferentes, vão levar à formação da Coluna Prestes. Elas são desencadeadas por diversos motivos, que incluem a insatisfação com a “política café com leite”, que assegurava o revezamento de representantes dos estados de São Paulo e Minas Gerais na cúpula do governo federal. Jovens oficiais, genericamente chamados de tenentes, se tornariam os principais personagens dos diversos levantes registrados à época.

O primeiro ocorreu em 1922, após a prisão do Marechal Hermes da Fonseca, que criticou a intervenção federal em Pernambuco, e o fechamento do Clube Militar. Na madrugada do dia 5, eclodiu o levante do forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. A fortificação foi bombardeada e a rendição dos rebeldes foi exigida. O tenente Siqueira Campos e um grupo de militares pegou em armas para marchar em direção ao Palácio do Governo.

Rebelados vão ao encontro das tropas legalistas. Reprodução
Rebelados vão ao encontro das tropas legalistas, em Copacabana. Reprodução

Houve desistências no caminho e 17 rebeldes que receberam o apoio de um civil, somando 18 pessoas, entraram em confronto com as tropas legalistas. Os únicos sobreviventes foram Siqueira Campos e Eduardo Gomes. A revolta inspirou movimentos semelhantes como a revolta paulista, em 1924, e a Coluna Prestes.

O SEGUNDO 5 DE JULHO

A derrota dos rebeldes deu início a um longo período em que o Brasil foi governado sob estado de sítio, resultando em censura à imprensa, prisão e desterro de oposicionistas. O julgamento dos envolvidos nos levantes de 1922, levou a um novo movimento, liderado pelo general reformado Isidoro Dias Lopes, o major Miguel Costa e o tenente Joaquim Távora. Os rebeldes tomaram quartéis, bombardearam e ocuparam o Palácio de Campos Elíseos e nomearam um governo provisório. O objetivo era depor o presidente Arthur Bernardes, mas havia outras reivindicações como a implantação do voto secreto.

A violenta reação de Arthur Bernardes que determinou o bombardeio de São Paulo e sua recusa em aceitar as exigências do general Isidoro, incluindo a convocação de uma constituinte e a concessão de anistia, fez os rebeldes abandonarem a cidade como forma de dar continuidade à luta. Na madrugada do dia 28 de julho, quando rumaram para o interior, os tenentistas não sabiam que o levante tinha recebido apoio e adesões em vários pontos do país.

Em outubro de 1924, tropas gaúchas de quatro cidades pegaram em armas, associadas a políticos da oposição. Obedecendo ordens do general Isidoro, o capitão Luiz Carlos Prestes partiu para se encontrar com militares paulistas, em Foz do Iguaçu, no Paraná.  O encontro ocorreu em abril de 1925, iniciando a epopeia da Coluna Prestes-Miguel Costa ou simplesmente Coluna Prestes.

INSCRIÇÕES ADULTERADAS

No dia 15 de abril de 1924, os integrantes da Coluna Prestes atravessaram a nado o Rio Gavião e chegaram a Condeúba. Como as tropas do exército na Bahia não conseguiram deter os revoltosos, o presidente da República recorreu aos “coronéis” (chefes políticos) que recebiam dinheiro, armas e patentes militares para formar tropas de jagunços, além de contar com policiais e militares.

Inscrição feita por Siqueira Campos, no Paço Mjunicipal de Condeúba. Foto: Paulo Oliveira
Inscrição feita por Siqueira Campos, no Paço Mjunicipal de Condeúba. Foto: Paulo Oliveira

“Foram as forças irregulares, a tropa dos latifundiários, os maiores adversários (da Coluna Prestes)” – explica o historiador Gildásio Alves.

Durante o trajeto, a Coluna Prestes não conseguiu apoio popular suficiente para destituir o governo oligárquico de Arthur Bernardes. Grande parcela da população não entendia o motivo da marcha e muitos confundiam os tenentes com bandoleiros.

Outra dificuldade, conforme descrito na pesquisa de Gildásio, estava no caráter autoritário do tenentismo, que em muitos momentos tratava o povo como “massa desorganizada e ignorante, incapaz de promover transformações”.

Um exemplo da ideologia tenentista é a inscrição que o tenente Antônio Siqueira Campos, sobrevivente do episódio conhecido como “os 18 do Forte de Copacabana”, fez com uma escova de dentes e esmalte verde, em uma das paredes do salão superior do Paço Municipal:

“…no meio de uma agglomeração desorganisada um BANDO decidido a tudo penetra a fundo como cunha de ferro em montão de ferragem. (TAINE) Ruy” (sic)

A frase é do historiador francês Hippolyte Adolphe Taine, expoente do positivismo, e foi traduzida pelo político, jurista e diplomata baiano Ruy Barbosa. Para Gildásio, a frase mostra que os tenentistas estavam dispostos a qualquer sacrifício para purificação do regime, sendo que o povo teria papel secundário neste processo.

Também com relação à inscrição, o professor condeubense Agnério Evangelista de Souza, autor do livro “Condeúba: sua história, seu povo”, ressalta que foi alertado sobre o equívoco cometido por Siqueira Campos, que escreveu “ferragem” em vez de “farragem”, palavra utilizada por Ruy Barbosa que significa “coisas misturadas, dispostas sem ordem”.

Além da frase, o tenente que se arranchou no Paço com outros componentes do comando da Coluna, riscou entre  duas portas do salão oposto ao gabinete do atual prefeito, quatro datas: 7/9/(1)822 (Independência do Brasil), 7/4/(1)831 (abdicação de Dom Pedro I) 5/7/(1)922 (revolta de Copacabana) e 5/7/(1)924 (revolta paulista), conforme pode ser visto na fotografia publicada pela revista O Malho, de 4 de maio de 1939, para ilustrar o texto do poeta Camilo de Jesus Lima.

Artigo do poeta Camilo de Jesus Lima e a foto que mostra que a inscrição foi alterada. Reprodução
Foto da revista O Malho, de 1939, mostra que a inscrição foi alterada. Reprodução

Segundo informações de funcionários da prefeitura, a inscrição chegou a ser apagada durante uma reforma, mas houve erros na hora de restaurá-la: as datas foram escritas de forma diferente da original e uma delas (7/4/(1)831) foi trocada para 20/7/1835.

De acordo com o chefe de gabinete do prefeito, Paulo Henrique Cordeiro, não há informações de quando foi feita a restauração. Ele diz que o desencontro de datas e a adulteração da inscrição original decorre da falta de preservação do patrimônio e de restaurações mal realizadas. Acrescenta ainda que as inscrições ainda existem porque foram preservadas pelo coletor de impostos Remígio José da Silva, pessoa influente na cidade.

Quatro datas foram escritas na parede de um dos salões do Paço. Foto: Paulo Oliveira
A segunda data não é a mesma da inscrição original feita no Paço. Foto: Paulo Oliveira

Os escritos do militar e editoriais publicados no jornal O Condeúba são os registros históricos das duas passagens dos revoltosos pelo município.

Siqueira Campos morreu afogado, após sofrer ataque cardíaco quando o avião que o trazia de Buenos Aires para São Paulo, onde iniciaria um movimento armado contra o governo federal, caiu no Rio da Prata, em 1930.

PERSEGUIÇÃO

Ex-militar – deixou o Exército em 1903 – e advogado Lourenço Moreira Lima foi o responsável pelo registro dos fatos ocorridos durante a marcha da Coluna Prestes. No livro “A Coluna Prestes – Marchas e Combates”, ele descreve a chegada em Condeúba.

“A população fugira toda… Prendemos um caixeiro viajante que se escondera no mato. Pouco depois chegou um seu irmão dono de uma tipografia, na qual imprimimos um boletim. Condeúba foi a melhor cidade que ocupamos nos sertões baianos. É rica e grande, tendo várias ruas calçadas e uma boa edificação particular. Possui um belo prédio destinado a Intendência Municipal. Soltamos os presos que encontramos na cadeia, como fizemos em Minas do Rio de Contas e todos os lugares por onde passamos. Ali demoramos até a manhã do dia 17”.

O cerco à Coluna pelas tropas dos “coronéis” Horácio de Matos, da Chapada Diamantina, Volney e Franklin foi grande. As “forças legalistas” também eram responsáveis pela maioria dos saques e desordens que deixavam a população em pânico. Para escapar da perseguição, os tenentes atraíram os jagunços dos líderes políticos para Minas Gerais, depois retornaram à Bahia, onde teriam recebido mais armas e munições. No dia 30 de abril, voltaram a passar por Condeúba, seguindo em direção à Chapada.

MEMÓRIA POPULAR

Muitos autores recorreram a entrevistas com moradores idosos para mostrar como este episódio histórico ficou registrado na memória da comunidade. O professor Agnério Evangelista de Souza cita, por exemplo, as exageradas história de dona Maria de Pulu.

Professor Agnério Evangelista mostra livro que escreveu sobre a história de Condeúba. Foto: Paulo Oliveira
Agnério mostra livro que escreveu sobre a história de Condeúba. Foto: Paulo Oliveira

“Ela dizia que de longe era possível ouvir tiros de metralhadora para as crianças” – revela.

O autor também cita depoimento de Seu João Cruz feito à pesquisadora Joandina Maria de Carvalho sobre pedido feito pelos revoltosos para que o padre João Gualberto de Magalhães rezasse uma missa. O religioso teria respondido que não seria possível porque o outro padre da cidade fugira para o mato e levara as hóstias.

Na versão de Seu João, os tenentes perguntaram porque o povo tinha fugido. E ouviram o padre dizer que os boatos de saques e violência deixaram todos amedrontados. Por fim, fez uma confissão:

“Eu não fugi porque estou velho”.

Depoimentos também são destacados por Gildásio Alves dos Santos. Ele ressalva que as declarações dependem da posição que as pessoas ouvidas ocupavam naquela época. O sobrinho do intendente Remígio José da Silva, entrevistado aos 78 anos, disse que os integrantes da Coluna se portaram ordeiramente, não fazendo jus ao apelido de revoltosos.

“O meu tio João da Silva Torres, que começou a vida como intendente de Condeúba tinha um comércio, uma loja. Quando ele fugiu fez um apelo aos revolucionários. Isso foi as palavras do meu tio pra mim: Senhores revolucionários, sou um homem pobre, negocio com dinheiro a juros. Peço aos senhores que retirem d’aqui o necessário para o seu uso pessoal. Após, fechar a minha casa. E foi atendido pelos revolucionários. (…) Os soldados da polícia que vieram depois fizeram mais bagunça que os revoltosos.”

Versão oposta foi apresentada por Laurinda Maria de Carvalho, 83 anos à época da entrevista:

“A revolta veio e quebrou as portas da casa do meu pai. Foi muito sentimento pra nós. (…) Roubaram requeijão (…) A tirambada acabou com tudo. Foi um tempo feio. Ave Maria! (…) Eles matavam criação nas mangas e trazia pra rancharia. Fazia aquela danura. (…) Sube que matava gente e quando não matava judiava. Eles ficaram muito tempo rondando pela região e a gente tinha muito medo. Dizem que era a turma de Lampião” (sic).

–*–

*Reportagem atualizada em 2/11/2018

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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Respostas de 2

  1. Lembrando que a segunda edição do livro do professor e escritor agnerio ,tem muitas informações erradas ,sem fontes seguras, pelo menos no que diz respeito ao esporte , mais especificamente a capoeira ,e tenho propriedades para dizer isso pois conheço essa história desde o início dentro dos bastidores até a data desta postagem.” Lamentável a distorção da história”

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