O comilão

Muçambê era o nome social de Luiz Evaristo dos Santos. O homem parecia ter uma processadora de peixe na boca tamanha a sua agilidade em soprar as espinhas – quase uma expulsão tamanho o vigor, sem se importar qual o tamanho. Em ação mais parecia um personagem daqueles antigos desenhos animados antigos.

Pouco tempo depois de encher a bocarra, este é o termo mesmo, jogava por um dos lados dos beiços a parte óssea de uma traíra, crumatá ou mandi, todos conhecidos pela carne saborosa e temidos pela quantidade de espinhas. Era um mestre na arte de esgulepar um peixe. Um guloso.

Antônio de Euclides, que gostava de pescar – e de devorar uma gordurosa peixada -, conta que numa pescaria na praia da Ingazeira, coisa de dois quilômetros rio acima na antiga Rodelas, logo que chegaram pegaram alguns mandis. Esses peixes são conhecidos pelo sabor marcante e a grande quantidade de espinhas, que não intimidavam Muçambê. Fizeram uma caldeirãozada daquelas.

Nem bem os peixes cozinharam, Luizão já estava no pé da trempe de pedras, perto do fogo à lenha que jogava faíscas para todos os lados, com uma panela cheia de farinha, pronta para o pirão. Pegou vários mandis e começou o espetáculo. Pelo o que conta Antônio, ele era mais treinado na arte de comer peixe do que um gato.

Mas naquela noite alguma coisa deu errado. Muçambê, na pressa deseducada, engoliu uma espinha, que ficou presa na sua garganta. Antônio, que estava com raiva atravessada na garganta, observou a agonia do amigo. Logo começou a contar causos onde o destino de quem estava naquela situação não era dos melhores.

Luizão era dono de uma covardia quase ingênua. Tinha medo de quase tudo. Logo Antônio começou a narrar os casos assombrosos sobre a situação na qual se encontrava. Muçambê tremeu. Pediu por todos os santos para que o amigo parasse com a narração. “Mas sei de uma oração que faz a espinha sair imediatamente. Quer que eu reze?”

Quase chorando – ele tinha uma voz melosa, aceitou. Antônio pediu que fosse pegar ramos de jaramataia, planta aquática conhecida pela resistência dos seus galhos, que dobravam, mas não quebravam. Luizão trouxe alguns com diâmetros razoáveis, como pediu o colega de pescaria.

Conta Antônio: “pedi para que ele ficasse de joelhos e de costas. Peguei os galhos da jaramataia e fiz que estava rezando. Levantei e desci o braço com toda minha força no lombo de Luizão, como punição para que ele deixasse de ser guloso”. “Toma bicho ruim”, teria gritado, depois da vergonçada.

Quando sentiu a lapada, Muçambê, continuou Antônio, deu um grito e um salto. Correu para dentro do rio e, para aliviar a dor, deu um mergulho longo. “A lapada doeu, mas a espinha não ficou na goela dele. Não sei se saiu ou desceu para a barriga”. O vinco no couro das costas de Muçambê ficou por vários dias. E ele aprendeu em parte a lição: continuou processador de peixes, mas não mais aceitou as “orações” de Antônio de Cabo Euclides.

–*–*–

Também foram memoráveis os embates de Luizão nas cabeceiras das mesas montadas pelos políticos locais em dia de eleição, nos quintais das suas casas, para agradar aos seus eleitores, que naquela data almoçavam fora.

“Muçamba” não tinha cores partidárias. Derrubava pratos tanto na casa de Domingos Almeida como na residência de Manoel dos Santos, chefes políticos.

Ele chegava cedo, sem ainda ter votado, uma maneira de ser valorizado à mesa. Era conhecido pelos cozinheiros e pelas pessoas que serviam o almoço. Lembrava Paulo Biana que tinha prazer em servi-lo.

Muçambê gostava de gordura e comer de colher. E nunca batia menos de três pratos – isto em cada uma das casas. Saía limpando a boca com as costas das mãos. Depois ia dormir, ou hibernar, até o dia seguinte.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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