A montagem de uma “cama alegórica” foi a primeira das invenções do motorista e técnico de consertos diversos, Antônio Carneiro de Oliveira, o Antônio de Roque, 77 anos, que mitigaram os danos do terrível acidente que ele sofreu, em Ichu, a 180 quilômetros de Salvador. O fato de não ter recuperado o movimento das pernas não impede que ele trabalhe, dirija e se considere vitorioso por ter atingido o atual estágio.
O desastre que por pouco não esmagou o ex-motorista aconteceu no dia 22 de setembro de 1985. Ele estava trocando a mola espiral dianteira de seu caminhão, com pressa, pois nessa época ele não folgava, transportando alimentos para feiras, material de construção, times de futebol, aos domingos, e romeiros para Bom Jesus da Lapa.
Antônio usou o macaco para suspender o veículo. Ele tirou a peça quebrada e quando foi colocar a nova percebeu que precisava levantar um centímetro a mais. Decidiu, então, pedir a dois de seus seis filhos para segurarem o paralama e erguerem:
“Eu estava sentado ente o paralama e o chassis, debaixo do caminhão. Quando os meninos elevaram o caminhão, o macaco desaprumou e soltou. O caminhão montou nas minhas costas, envergou o meu corpo e a coluna explodiu, rente aos quadris. Abriu a lombar 4. Meu corpo caiu entre as pernas, a coluna ficou dobrada. Eu fiquei com 22 centímetros ou menos, dobrado” – conta.
A cada instante o relato de Antônio fica mais dramático:
“Rapidamente chegaram uns 15 homens. Quando eles suspenderam o caminhão, eu não estava ouvindo, nem vendo, nem falando. A audição foi que primeiro voltou. Eles mandavam eu sair. Um deles disse: “Ele não pode, tira ele daí”. A coluna estalou quando me apanharam e as pernas desapareceram. Quando acertaram meu corpo, as vistas clarearam e a voz chegou. Eu mandei apanhar as pernas que estavam debaixo do caminhão. Eles disseram que elas estavam comigo. Apalpei e não senti nada. Nessa hora ainda tive tempo para pensar que, se tivesse sorte, viveria uns oito a dez meses”.
O acidentado foi levado para o hospital Clériston Andrade, recém reformado, em Feira de Santana. Constataram que a coluna estava na forma de um ípsilon e o mandaram para o hospital Roberto Santos, na capital.
“Cheguei lá não tinha vaga. Quando viram o raio-X, me botaram em uma enfermaria vazia. Também marcaram a cirurgia para o dia seguinte. Na segunda-feira, chegaram uns cinco médicos. Eles pegavam a radiografia. Um olhava, olhava, mirava e passava para o outro. E eu na mesa de cirurgia. Os doutores disseram para o anestesista não anestesiar. Levaram uma hora, mais ou menos, consultando. Desistiram de bulir e remarcaram a operação para quarta-feira” – recorda.
Na véspera da cirurgia, a enfermeira-chefe disse que Antônio recebeu alta. Ainda explicou que os médicos atenderam ao pedido da família, na verdade um amigo do paciente. O motorista se recusou a deixar o hospital, alegando que não teria como procurar outro médico para cuidar dele. A liberação foi suspensa. No dia seguinte, o caminhoneiro foi operado pelo doutor Gerard Nicola.
“O médico me disse que tinha feito muitas cirurgias de coluna, mas igual a minha nunca tinha visto.” – disse o ex-caminhoneiro, que esperava ficar internado dois anos.
Teve alta com três semanas. Ao retornar para a revisão médica, seis meses depois, doutor Gerard bateu em sua coluna e falou: “Tá boa, tá bem colada”. Ao se queixar que estava cansado de ficar deitado, ouviu do médico que tudo tinha sido feito para ele conseguir sentar em alguns meses.
O fato de ser o presidente da festa do padroeiro de Ichu, o Sagrado Coração de Jesus, deixava Antônio de Roque ainda mais chateado por estar acamado, deitado em um colchão d’água. Sem querer abrir mão da missão, ele iniciou o processo de superação, construindo o que chama de cama alegórica.
“Ela era de ferro, tinha molas e rodas. Tirei a água porque ela se movimentava muito nas subidas e nas descidas. Coloquei uma válvula no colchão e enchi de ar. A cama tinha volante, freio e trava de mão. Passei o mês de janeiro todinho indo para igreja nela. Seis pessoas, três de cada lado, pegavam o colchão e me colocavam na estrutura. Até da procissão eu participei” – lembra.
Partes da cama, hoje, quase 35 anos depois do acidente, estão guardadas na garagem. As rodas foram tiradas para que Antônio fabricasse a primeira das três cadeiras de rodas que fez para doar para amigos e parentes, usando peças de bicicletas velhas, rodas, pneus. Uma delas, construída em 1982, pertence a um senhor chamado Abraão, que recusa propostas de R$ 3 mil pelo equipamento.
Daí para a adaptação de carros para cadeirantes foi um pulo. Mas antes de seguir por este caminho, vamos voltar para a infância de Antônio para conhece-lo melhor.
A família do ex-caminhoneiro saiu de Monte Santo e veio para Serrinha. Ele, dois irmãos e o pai seguiam a profissão do avô: construtores de carros de boi. O meião da carroça era feito de baraúna e pau-ferro; os rodeiros, de sucupira, retirada da caatinga. A produção durou de 1956 a 1963.
“Para comprar a casa que moro até hoje vendi dois carros de boi, um de cinco e outro de seis palmos de altura, que construí com a autorização de meu pai. Eles foram vendidos por 18 mil cruzeiros e 20 mil cruzeiros. Ainda botei mais um pouco de dinheiro” – conta.
Na época da aquisição do imóvel, Ichu ainda não tinha se emancipado, o que só ocorreria quatro meses depois (30/7/1962). No ano seguinte, Antônio casou com Aurelina Francisco, deixando a casa dos pais, Roque Carneiro de Oliveira e Maria Cordeiro, também conhecida como dona Santinha.
Na nova cidade, Antônio trabalhou de carpinteiro, fazendo telhados, e cuidou da manutenção do motor que produzia energia. Nas horas vagas, consertava bicicletas. Cinco anos depois, a energia elétrica chegou a Ichu.
“Eu continuei como eletricista. Fazia instalações nas casas e a manutenção de lâmpadas nas ruas. Meu primeiro transporte foi a bicicleta. Passei para a lambreta e depois comprei uma caminhonete F-1, ano 1951, canadense. Deixei o que fazia e passei a levar produtos para as, feiras, transportar jogadores, aos domingos, e romeiros para Bom Jesus da Lapa e Campo Alegre. Fui 16 vezes à Lapa e me tornei o principal transportador de Campo Alegre” – acrescenta.
Antônio e Aurelina tiveram seis filhos e 13 netos. Para cada filho, o ex-motorista planejou dar uma moradia. Quando um deles casava, comprava um terreno. Eles faziam a construção e se mudavam.
Seis anos após o acidente, um dos filhos de seu Antônio, Carlos Sérgio, o Zazai, morreu quando fazia a manutenção de um caminhão da prefeitura de Ichu e um pilar de concreto que mantinha o veículo suspenso caiu sobre ele, em uma oficina, em Riachão do Jacuípe. Passados mais seis anos, dona Aurelina morreu de causas naturais.
Muito conhecido na cidade, o ex-caminhoneiro foi vereador por quatro mandatos, um deles cumprido, em parte, após ter sobrevivido ao acidente. Hoje conserta um sem-número de objetos. Dos pessoais, tem orgulho de manter em funcionamento dois relógios de parede com aproximadamente 150 anos. A caixa de um deles mandou fazer, os mostradores foram comprados em São Paulo, mas o pêndulo foi feito por ele com raio de roda de bicicleta.
Embora trabalhe sem horário fixo, os moradores da cidade levam máquinas de costuras, liquidificadores e todos os tipos de eletrodomésticos e bicicletas para seu Antônio consertar. A entrevista foi interrompida três vezes por clientes. No depósito no fundo da casa, no centro de Ichu, ele guarda máquinas de costurar Elgin e bicicletas Monark dos anos 1970, além de uma antiga bike alemã, que batizou de Dona Preta.
Na garagem ao lado, porém, o que considera uma de suas obras-primas: um carro adaptado para cadeirante.
“Essa adaptação sou eu quem fabrico. Fiz a primeira em um Corcel II. Quando me perguntaram sobre a durabilidade e resistência do equipamento, respondi 80 anos. Meu amigo Admílson deu risada e mostrou uma reportagem de jornal, com uma adaptação que acelerava e freava. A minha acelerava, debreava, freava, engrenava e movimentava a direção. Eu desenvolvi tirando por mim, por minha necessidade. Usei guidom de moto, cabos de aço e muitas outras peças. É como estivesse fazendo uns pedacinhos de minhas pernas para me movimentar” – explica.
Para provar a eficiência de seus adaptadores, Antônio foi dirigindo um de seus carros até Retirolândia, a cerca de 50 quilômetros de distância. E provocou o amigo: “Não disse, cabra, que eu vinha!”
Antônio de Roque também adaptou o carro do ichuense Elenílson Cordeiro de Oliveira Carneiro, que amputou duas pernas após ser atropelado em 2014.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.