L., espadeiro renomado de Bonfim de Feira, distrito de Feira de Santana, no sertão baiano, ensinou o ofício aos três filhos quando eles eram crianças. Da fabricação de fogos de artifício bem simples – os “furicos de taboca” – até as espadas feitas com bambu, carvão, salitre, enxofre, limanha de ferro ou de alumínio e barro de formigueiro socado para evitar que a carga saia por baixo, M. levou mais de 10 anos para aprender. Hoje se orgulha de fazer peças de até 1,2 quilos, que expelem fogos e faíscas por até 25 minutos.
M. é o único dos irmãos que ainda fabrica os fogos e os bonecos de Judas explosivos, peças indispensáveis nos festejos de São João e da Semana Santa. Ele também lembra do tempo em que o pai organizava um festival de espadas quando aniversariava. Foi assim até completar 84 anos. Com a morte de L., o caçula assumiu a função.
Hoje, o a “guerra de espadas” está proibida em toda a Bahia. No entanto, em alguns lugares, a pretexto de se conservar uma tradição existem acordos informais para que ela se realize. Em Bonfim de Feira, segundo M., os fogos são acesos depois da meia-noite, nos três dias em que se comemora São João. Essa prática teria começado há 110 anos.
O espadeiro explica que a pólvora utilizada é produzida com carvão de imburana ou de quarana, enxofre e salitre, vendido em três cidades: Cruz das Almas, Santo Antônio de Jesus e Senhor do Bonfim, municípios onde as “guerras de espadas” ganharam projeção. Outros materiais utilizados são a limanha de alumínio e a de aço, adquiridas em lojas de esquadrias e em tornearias da região. São eles que fazem os fogos brilharem.
“O mais caro é o salitre. A gente compra o fardo de 50 quilos. Dependendo da espessura dá para produzir entre 360 e 420 espadas. Um quilo de salitre é misturado com 250 gramas de enxofre e 250 gramas de carvão moído. Moemos no pilão para fazer a prova (carga)” – explica M.
O espadeiro conta ainda que muita gente o procura na época das festas para comprar algumas unidades. Ele admite que é adulado para vender uma ou duas. Jura que explica que a “brincadeira” é perigosa, pois pessoa não souber soltar pode se queimar gravemente. Cada unidade é vendida por 10 ou 15 reais, dependendo do tamanho. A dúzia tem desconto, custa de 80 a 100 reais
“É só para o pessoal de fora participar da brincadeira com a gente” – diz V., integrante de uma espécie de associação de espadeiros.
Durante a soltura dos fogos é aconselhável usar luvas de amianto, mas M evita. A única exceção é quando vê alguma rachadura no bambu. O fogueteiro alerta que alguns colegas fazem espadas com tubos de PVC, cujo estouro pode causar ferimentos muito mais graves.
A guerra de espadas consiste na divisão de dois grupos. Cada um acende a espada, segura por um tempo até ela ganhar pressão e joga em direção ao outro. Os fogos saem rabeando no chão. Há quem que corram atrás deles para pisar em cima, voltar a segurar e soltar antes que ela exploda. A “diversão” termina quando o dia amanhece.
“No São João, a gente compra carneiro, porco e muita cachaça. São três dias de alegria em Bonfim de Feira. Tem um menino aqui que chega a fazer 300 litros de licor para vender. A tradição das espadas eu não sei como começou, mas na época de meu pai só gente graúda participava” – revela.
Com relação à proibição de soltar espadas, M. fala que o Ministério Público Estadual, autor da ação que impede a prática, nunca criou problemas no distrito. Conta que uma vez alguns moradores fizeram denúncia e soldados do Exército revistaram as casas de todos os espadeiros do distrito.
“Eles disseram que tínhamos explosivos em casa e nada foi encontrado. O comandante da operação era um sargento. Ele mandou a gente ir ao 35º Batalhão de Infantaria, em Feira de Santana, para assinarmos um documento. Todo mundo foi liberado” – conta.
L. garante que, por outro aspecto, muita gente apoia a iniciativa e afirma que um abaixo-assinado foi feito para a “guerra” continuar a ser realizada.
JUDAS
Dependendo da região do país, o boneco de Judas, representado simbolicamente como o apóstolo que entregou Jesus Cristo aos romanos, é castigado de diferentes formas. Em vez de ser linchado, destroçado a pauladas ou queimado, como ocorre no Sudeste e em muitas capitais Brasil afora, em muitas localidades do semiárido nordestino, ele voa pelos ares. Para isso acontecer, o Judas sertanejo é recheado com explosivos e espadas. A explosão ocorre à noite, após a missa de Sábado de Aleluia.
Confeccionados com papelão de saco de cimento forrado e mãos de cartolina, em Bonfim de Feira, o traidor de Jesus veste camisa e calça feitas com papel de presente. O rosto é pintado com tinta. Papel velho serve como enchimento.
O cenário é montado em um quadrilátero formado por postes e se escolhe o local onde a armação de ferro que sustenta o Judas ficará. No “quadrado mágico” são colocadas fiações por onde oito espadas de fogos se movimentarão de um lado para o outro. A última seguirá em direção ao boneco.
No aro metálico onde está do traidor tem quatro vulcões, que são acessos após a passagem de uma das espadas. Outras peças farão a roda girar e acionarão os explosivos da cabeça e do corpo do Judas. De acordo com M. é preciso ter um bom estopim para que nenhuma das fases falhe. O pavio de algodão é melado com goma e enrolado com papel e um pouco de pólvora.
Seguindo o exemplo do pai que fazia dois Judas por ano – um para a comunidade e outro para um fazendeiro chamado J.J -, o espadeiro não ampliou a capacidade de produção. A justificativa é que ele trabalha com um ajudante e na noite da queima do Judas cada um vai para um local para fazer a instalação e garantir o sucesso da explosão.
Cada Judas, feito com capricho, custa 1.500 reais. Em 2019, no entanto, o boneco foi feito às pressas apenas para a queima não ser cancelada. Um outro foi vendido para a cidade de Ipecaetá, a 15 km de distância, por 1.400 reais.
“Eu me perguntava porque lá teria a festa e nós aqui ficaríamos sem comemoração. Resolvi fazer o Judas. A comunidade arrecadou o que pode e comemoramos juntos. Sobrou apenas a carcaça da estrutura onde o boneco fica (ver foto acima)” – acrescenta L.
Os espadeiros da cidade dizem que houve uma época em que a prefeitura colaborava financeiramente, mas há alguns anos deixou de bancar os festejos.
O fogueteiro e as pessoas que defendem a “guerra de espadas” e a queima de Judas temem que estas duas tradições acabem. Eles lembram que o distrito não realizou os eventos por quase uma década durante anos por diversos motivos, inclusive um assassinato. No entanto, como se empenharam em resgatá-las, não querem que elas sejam interrompidas.
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O nome dos entrevistados foi preservado a pedido deles.
A foto das espadas é meramente ilustrativa. Reprodução.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.