Isabel do Fusca

Fazia oito anos que as mulheres tinham conquistado o direito ao voto quando a baiana Isabel Maria dos Santos nasceu, em 5 de junho de 1940. O Brasil experimentava um forte progresso feminista quando ela veio ao mundo, mas mesmo três décadas depois, quando Isabel já tinha 28 anos, ainda causava estranhamento vê-la dirigir um carro pelas ruas de Mirangaba, no sertão da Bahia. Primeira mulher a conduzir um volante na pequena cidade, era ela quem socorria outras mulheres quando o parto dependia de médico em Jacobina, a 30 Km dali. Ironicamente, nunca teve filhos biológicos.

Fruto da união de um vaqueiro com uma dona de casa, Isabel nasceu e foi criada no complexo de Fazendas Jenipapo da Lambança, distrito de Jacobina. Tinha só três anos quando perdeu o pai, José Francisco do Rosário, funcionário do rico fazendeiro Lelé Rocha. A mãe, Dona Porcina Maria dos Santos, ficou sozinha para tomar conta dos 10 filhos, cinco meninos e cinco meninas.

“Mas meu pai era bem de vida, deixou muito terreno, carro, gado, cavalo, égua. Eu comecei a trabalhar assim que aprendi a andar. Fui criada como macho, montando em cavalo para dar água no tanque a 5 km ou 6 km. Ninguém precisou me ensinar, eu fui criada vendo aquilo”, recorda ela, que completou 80 anos no domingo (5/7).

Na Fazenda Jenipapo, rolava muito samba de roda promovido por Dona Porcina, nos quais um vizinho chamado Faustino tocava cavaquinho aos fins de semana. Era um dos poucos divertimentos das crianças, além de correr atrás de bezerros e galinhas para espantá-los.

Da terra, aproveitava-se de tudo. O leite das vacas virava manteiga, coalhada e requeijão. Uma fração era dada a vizinhos pobres, que iam à porta da casa pela manhã com cabaças. Havia plantação de arroz, fumo, mandioca e estacas de café. A colheita era feita por Isabel junto com pelo menos outras cinco mulheres da região que trabalhavam para a família. Os homens eram os responsáveis por pisar o café no pilão. Também faziam farinha, ocasião em que os vizinhos eram chamados para ajudar a mover a roda para moer a mandioca.

“A gente tomava uma cachacinha e ia puxando a mandioca e cantando assim: ‘Oi, leva eu, minha saudade, que eu também quero ir. Quando chego na ladeira, eu tenho medo de cair’. Já entre as cantigas de samba de roda tinha uma que era assim: ‘Samba bom é assim que se faz, com muita mulher e pouco rapaz’. Aí vinha os homens e cantavam: “Nunca mais eu, nunca mais eu vou no samba para eu levar mulher mais eu’”, canta ela.

Durante a colheita, a produção da fazenda era colocada dentro de caçuás — cestos feitos de vime com alças que eram acoplados ao lombo dos animais de carga. Parte da produção era consumida em casa e outra era vendida aos sábados na feira livre de Jacobina, levada em carro de boi. “A gente também levava galinhas, ovos, vendia tudo, não voltava com nada. Ia lá mesmo só entregar, tinha cliente certo”, conta.

Os filhos de Porcina e José Francisco tiveram o ensino regular, uma das moças foi para o convento. Isabel recorda que na época as meninas costumavam andar à vontade, sem roupas íntimas por baixo dos vestidos. A chegada de uma professora chamada Ana mudou este comportamento. A educadora exigiu que todas as garotas frequentassem a escola usando calcinha. Naqueles tempos, açúcar era vendido em sacos de pano e, como habilidosa costureira, Porcina fez as peças das filhas usando o tecido do produto.

“Na bunda da gente ficava escrito 60kg de açúcar”, ri Isabel.

A guerra

Ela lembra que tinha 11 anos quando ganhou seu último vestido. Era um modelito branco de flores vermelhas, comprado na Loja Gallo, de propriedade do italiano Nicolau Gallo, em Jacobina. Uma edição do jornal Diário de Notícias de 1942 conta que este homem chegou a ser preso acusado de ser espião nazista.

Em relato à Gilmara Pinheiro, autora da tese sobre os “Monges de Branco” (assim eram chamados os religiosos da Ordem Missionária Cisterciense), Dona Maria Quatro conta que neste ano, em que o Brasil se declarava contra o Eixo na Segunda Guerra Mundial, a política e a mídia local começaram a apertar o cerco contra estrangeiros em Jacobina, fenômeno que aconteceu em todo o país.

“Os italianos como Nicolau Gallo, seu Braz Conde Orrico, que era dono de uma fábrica de bebidas e outros, às vezes se reuniam para ficar conversando alguma coisa na loja Gallo, não deixavam de conversar sobre o movimento, dos noticiários da guerra”, contou a senhora.

Já findada a última grande guerra, outro fato político marcou a adolescência de Isabel. Era ano de 1954 quando o presidente Getúlio Vargas cometeu suicídio. Ela estava a bordo de um trem na Rodoviária da Sete Portas, em Salvador, voltando para Jacobina depois de visitar uma irmã. A estação estava no maior rebuliço, lotada de uma multidão com cartazes e gritando que Vargas havia morrido.

Aos 19 anos, só restara na fazenda Isabel, um irmão e a mãe, todos os outros filhos tinham partido para o trabalho em São Paulo. Era 1959 quando vieram buscá-la. A jovem se foi deixando pra trás o amor da sua vida: Pedro, um homem do Rio Grande do Norte, 10 anos mais velho, e que trabalhava havia dois anos para a família dela.

O namorico entre os dois era tímido e repreendido, nunca houve beijo na boca. Eram de sutilezas como sentar um em frente ao outro na mesa de almoço, pegar na mão escondido e no máximo um cheiro na bochecha. Abraço não podia.

“Disseram para eu não casar, que ninguém sabia da vida dele, quem ele era, mandaram eu ir para São Paulo. Chorei muito. Quando eu cheguei na estação de trem, eu me arrependi, mas já era tarde demais. Essa paixão ficou dentro de mim, meu irmão não aprovava”, lamenta.

Em São Paulo, Isabel trabalhou em fazenda de algodão. Com o saco amarrado na cintura, ia tirando a fibra do pé. O pagamento era por produção. Quanto mais o saco pesava, mais o fazendeiro pagava. Mas não gostou dessa vida não. Ficou em terras paulistas coisa de um ano, tempo em que chegou a namorar com um homem chamado Celso, e terminou casando com outro que tinha o mesmo nome do grande amor, mas não deu certo.

“Eu olhava para tudo quanto era homem e via tudo de saia, igual a mim. Eu fiquei apaixonada por Pedro até hoje. Paixão é uma flor roxa, só fica no coração de trouxa”, brinca.

ÁLBUM DE FAMÍLIA
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Maternidade e garimpo

Por volta de 1960, picou-se de volta para a Bahia, dessa vez para morar na cidade, em Mirangaba, onde montou uma venda de alimentos e produtos para o lar chamada Meu Cantinho. Como autônoma solteira, assumiu os cuidados da mãe e a criação de cinco crianças, sendo três sobrinhos, filhos de irmãos que haviam morrido, e dois filhos de mulheres da região que não tinham condições financeiras: Luiz (Lula), Adenilde (Deni), Eliene (Ena), Cláudia e José, respectivamente.

Com os ganhos da venda, comprou seu primeiro carro, um Fusca branco modelo 1963. Foi o sobrinho Luiz que a ensinou a dirigir. Naquela época, era um dos raros veículos da cidade. Nem a prefeitura de Mirangaba tinha ambulância.

“Quando acontecia algo de saúde, gritavam: ‘Corre, vai chamar Dedé’. Dedé é meu apelido. Quando as mulheres iam parir, era eu que levava. Vivia fazendo frete de menino. O pessoal fazia uma piada retada por eu ser mulher e dirigir. O povo dizia até que eu era homem”, conta aos risos.

A primeira Carteira Nacional de Habilitação de Dedé só viria treze anos depois, em 1981.

Cerca de três anos após voltar de São Paulo, foi descoberta uma mina de esmeraldas na Serra da Carnaíba, entre os municípios baianos de Pindobaçu e Campo Formoso, para onde muitas pessoas migraram em busca de fortuna, inclusive Isabel e seu irmão caçula. “O povo só falava nisso, era um movimento grande de gente indo”, narra. Por lá, ambos trabalhavam abrindo buracos de forma braçal e também com o uso de bananas de dinamite.

O dinheiro foi vindo e fez brilhar os olhos da dupla, que apostou o lucro inicial na contratação de outros cinco homens para ajudar na escavação em busca de mais pedras. A ideia não deu certo, o mineral não foi encontrado e o irmão acabou morrendo de esquistossomose, que acometeu o esôfago. O destino a levou de volta a Mirangaba, onde continuou com a venda e a criação dos meninos.

Num dado momento, Dona Porcina, já velhinha, adoeceu. Teve problemas de apendicite e só descobriu quando apresentava inflamação. O médico disse que a decisão de operar era dela, mas que se não o fizesse, infelizmente, a mãe morreria. Dedé fez uma promessa para Santo Antônio: “Se minha mãe viver, vamos nós duas subir o morro mais alto de Jacobina”. O santo ouviu e Porcina não só ficou boa como ainda viveu mais 20 anos. Ambas subiram o morro vestidas de branco.

Anos mais tarde, elas se mudaram para Jacobina, onde os filhos cursaram o ensino médio e terminaram cada um se casando e constituindo família. Dedé tinha muito ciúme das filhas, mas ajustou o casamento de Deni com Erivan, homem de família pernambucana do ramo de supermercados. Como Erivan queria ter o negócio próprio, acabou migrando para Feira de Santana, onde abriram o Suprilar e levaram Dedé para morar junto.

“Eu sou uma velha feliz, viu minha filha? Graças a Deus, não tenho do que me queixar da vida. Namorei muito, beijei muito, dancei muito e sei das coisas, do bom e do ruim”, encerra ela.

Por fim, outro detalhe que não pode passar despercebido sobre a emocionante vida de Isabel é que ela também se aventura como poetisa, às vezes:

“Eu não sei se eu canto ou choro
Não sei qual dos dois é melhor
Quando eu canto me entristece
Mas chorando é pior
Mas eu tenho que viver cantando
Porque chorando eu nasci
Pode ser que cantando eu alcance
O que chorando eu perdi”

 

Hilza Cordeiro Contributor

Hilza Cordeiro, jornalista. Produziu e dirigiu os documentários “Show do Tio Lio” e “Zé Cinderela – o último sapateiro de Riachão do Jacuípe”. Tem orgulho de ter nascido no sertão. Trabalhou no jornal Correio e é coordenadora do projeto Memorial Jacuipense.

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