Nascido, criado, benzido e batizado em Senhor do Bonfim (BA), Airton da Silva Almeida decidiu deixar a cidade em 2010 para trabalhar na construção de estradas pelo Brasil. No sábado passado (6/2), 11 anos depois da partida, ele estava em Ituiutaba (MG), a 1.600 quilômetros de Bonfim, quando ouviu tocar a música que marcou sua infância e adolescência, no recém-lançado podcast Calumbi:
“Não tenho vergonha de dizer que chorei ao ouvir o jingle da festa. Faço 30 anos daqui a um mês, a música foi feita há duas décadas, mas está impregnada em mim” – revela o técnico em construção de estradas.
Na verdade, o som lhe trouxe uma série de recordações, como a do show da Banda Calypso, em 2005, quando soltou um “chouriço” (espada de fogos de artifício de menor porte) e queimou a mão. A vontade de assistir ao espetáculo o fez aplicar pasta d’água no local ferido e, de vez em quando, jogar água gelada no ferimento para diminuir a dor.
O turbilhão de emoções que jorrou após a audição do jingle aumentou a vontade de Airton levar o filho Miguel Cézar, de 11 meses, para conhecer os avós, a festa junina e o município. Embora resida em Livramento de Nossa Senhora, no sudoeste baiano, Airton leva uma vida de nômade, “correndo trecho”.
A ideia de criar o podcast que emociona, educa e divulga a história e cultura de Bonfim e da região surgiu em uma conversa entre a produtora cultural Adriana Alves Santana, 29 anos, e a professora de história Kerollen Hagnys Rodrigues de Souza, 29, amigas desde o ensino médio.
Adriana sugeriu à parceira que ela utilizasse o a plataforma como recurso pedagógico nas aulas. Chegou a oferecer um gravador emprestado à Kerollen, mas a epidemia de covid-19 impediu a experiência. Elas voltaram a falar sobre o assunto e combinaram que fariam o programa por hobby.
“Se der certo, a gente tenta fazer mais”. Foi com esse argumento que a produtora convenceu a amiga a iniciar a pesquisa sobre a história de Senhor do Bonfim. Sem compromisso com prazos, elas levaram mais de seis meses para finalizar o episódio, em maio de 2020.
Iniciaram em seguida o segundo programa sobre as festas de São João. Proporcionalmente, o evento está para o bonfinense assim como o Carnaval está para os cariocas e o Festival Folclórico de Parintins para os amazonenses. No passado, os festejos duravam 30 dias. Hoje, oficialmente, são cinco, mesclando cultura nativa, forró tradicional e atrações nacionais.
O lançamento do programa Aldir Blanc de ações emergenciais de apoio ao setor cultural, em setembro de 2020, acelerou os planos de Adriana e Kerollen, selecionadas em dois editais do governo estadual. Blanc, compositor e escritor, foi um dos autores, em parceria com João Bosco, da música “O Bêbado e a Equilibrista”, adotada pelos brasileiros como Hino da Anistia aos presos e perseguidos pela ditadura militar. Aos 73 anos, morreu de covid 19, quatro meses antes da promulgação da lei.
–*–*–*–
Até se mudar para Salvador há 12 anos, o universo de Adriana ficava entre o centro de Bonfim – ela morava no bairro Itamaraty – e a roça da avó materna, no povoado de Tapuia, onde vivia entre plantações e animais diversos. O cheiro forte de umbu não saiu da memória, nem o som da banda de pífano, chamada de calumbi em Bonfim.
Outra lembrança marcante são as peças teatrais. O teatro foi uma relevante atividade cultural em Bonfim, a ponto de fazer a Universidade Estadual da Bahia (Uneb) instalar o primeiro curso de artes cênicas do estado no campus local. A produtora cultural lembra que passou boa parte da adolescência na expectativa da estreia de novas montagens:
“O público para as peças acabava muito rápido. Só dava para cinco, seis sessões, aí ninguém mais ia. Então havia uma longa espera por um novo espetáculo” – conta.
Kerollen Hagnys sempre morou com a mãe adotiva e tia no bairro Barbosa Santos. Ela se acostumou dizer que criou raízes e não sairá mais da cidade. Por causa do nome dela, escolhido após a tia ver o filme Agnes de Deus (1985), a professora sofreu preconceito no Orkut, rede social criada em 2004 e desativada em 2014.
“Uma pessoa comentou que eu só podia ser nordestina para ter um nome desse” – revela.
As principais referências da jovem historiadora são os festejos juninos, a dança de pau de fita, as apresentações do grupo de ciranda Roda de Palmeiras e as brincadeiras de crianças – pega, esconde-esconde, chicote queimado, mandou fazer e chocolateira.
Adriana e Kerolline se conheceram e se tornaram inseparáveis no Colégio Modelo Luís Eduardo Magalhães. Elas faziam trabalhos escolares e participavam juntas de gincanas e seminários desde o primeiro ano do ensino médio. Motivadas pela estrutura incomum em uma escola da rede estadual à época – biblioteca bem equipada, auditório e laboratórios diversos –, caprichavam nas tarefas e tiravam boas notas.
–*–*–*–
Atenta aos detalhes dos editais da Lei Aldir Blanc, a jovem produtora traçou a estratégia para concorrer aos recursos disponibilizados pelo governo federal para o estado. Kerollen foi inscrita como responsável pelo projeto da nova temporada do Podcast Calumbi, na categoria do Prêmio das Artes Jorge Portugal (professor de português, apresentador de TV e compositor de renome nacional, falecido em agosto de 2020), que englobava conteúdo de áudio relacionado à música.
Três dias antes do encerramento das inscrições, Adriana identificou um outro edital que poderia disputar para garantir mais uma temporada para o podcast. Era o Prêmio Preservação dos Bens Culturais Populares e identitários da Bahia Emília Biancardi (etnomusicóloga, compositora, pesquisadora de música folclórica e especialista em manifestações tradicionais da Bahia), na categoria cultura sertaneja.
A dupla tinha esperança de conquistar um dos editais. Ganharam os dois e correram para finalizar os quatro episódios da primeira temporada que até então estavam sendo executados lentamente e sem recursos apenas por Adriana e Kerollen. A rápida conclusão dos capítulos “As origens de Bonfim”, “São João”, “A feira livre” e “A ferrovia” foi possível devido à iniciativa de três dos sete contratados para as s temporadas seguintes trabalharem voluntariamente, segundo Adriana.
O dinheiro recebido permitiu a criação de uma equipe fixa com mais sete pessoas e uma temporária, com 11. Nessa, foram inseridos os quatro músicos do Grupo Calumbi de Itiúba, responsáveis pela trilha sonora dos programas, e sete cordelistas, que terão participações especiais.
A verba também bancou as despesas de divulgação, incluindo a contratação de influenciadores digitais; a produção de conteúdo para mídias sociais e a aquisição dos brindes distribuídos com os kits para a imprensa. A distribuição gratuita do conteúdo e a pulverização da quantia entre profissionais e artistas da cidade de origem eram condições fundamentais para a aprovação dos projetos.
O curto prazo estabelecido para a finalização dos 14 capítulos previstos nas duas temporadas – tudo deve estar pronto e publicado até o dia 10 de abril – fez as apresentadoras e criadoras do podcast planejarem a publicação de capítulos às terças-feiras e aos sábados. Três dos quatro episódios da etapa não contemplada pelos editais já estão no You Tube e em todos os agregadores (Spotfy, Deezer, etc.).
Não são apenas os ouvintes que aprendem com os programas, Adriana e Kerollen admitiram que se surpreenderam com pelo menos um fato sobre a história da região. Elas gravaram o primeiro programa, baseadas em publicações de autores clássicos como Paulo Machado e Adolfo Martins, que apontaram os Pataxós como os primeiros habitantes da região. No entanto, se depararam a seguir com estudos mais recentes que contestam a informação e atribuem a primazia aos Cariris e Paiaiás
“Tivemos que fazer novas pesquisas e regravar o programa. Isto foi o que mais marcou a primeira temporada” – diz a historiadora.
A equipe Meus Sertões ouviu e gostou dos primeiros capítulos do Calumbi. Destaque para a animação do episódio “São João” na cidade que se intitulou como a capital baiana do forró. No andamento do episódio, as apresentadoras falaram do surgimento da festa na Europa e no Brasil, trazida pelos portugueses. Elas elencaram manifestações culturais tradicionais, incluindo o Samba de Lata de Tijuaçu, criado por mulheres quilombolas.
A alusão ao Forró Grito, iniciativa da rádio Caraíba para agitar os bairros de Senhor do Bonfim 15 dias antes do início da festa oficial, foi outro tema interessante. Kerollen revelou que tinha de pedir muito para a mãe adotiva permitir que ela desse uma “olhadinha” no evento. Acrescentou que, de acordo com os mais velhos, os moradores preparavam comidas típicas e colocavam na porta das casas para os sanfoneiros e seus seguidores comerem à medida que iam passando. A prática durou até os anos 1990.
Chega de spoiler!
Em vez de antecipar as histórias para quem ainda não as ouviu, destacamos alguns dos melhores momentos do programa:
1- Imperdível a resenha sobre o show que provocou uma série de desmaios na praça.
2- Vale a pena ouvir os impactos da pandemia na festa e a reação dos moradores.
3- A participação especial do cordelista Ailton Ribeiro é muito boa.
4- Por fim, as indicações de músicas, livros, páginas no Instagram e outros assuntos relacionados a Senhor do Bonfim são fabulosas.
–*–*–*–
Ouvinte de podcasts de jornalismo, política e entretenimento, dentre os quais destaca Budejo, Foro de Teresina, Vida de Jornalista e Praia dos Ossos, série sobre o assassinato da socialite Ângela Diniz, Adriana diz que os curte pelos temas e pela linguagem narrativa. Tanto é que pretende aplicar a técnica com mais intensidade nas temporadas dois e três.
A segunda série começou a ser gravada na sexta-feira passada (5/2). Serão oito programas relativos à história de cada uma das cidades que compõem o território Piemonte Norte de Itapicuru por ordem de emancipação. Por conta do maior número de capítulos, haverá apenas um entrevistado em cada episódio. As cidades retratadas serão Campo Formoso, Jaguarari, Pindobaçu, Antônio Gonçalves, Ponto Novo, Filadélfia, Andorinha e Caldeirão Grande
O trabalho está em pleno vapor. A equipe está reforçada com um artista visual para fazer as que produz as capas dos episódios; um pesquisador; um roteirista; um editor; um editor de som; uma assessora de imprensa; e uma pessoa para cuidar das redes sociais. A novidade é a utilização de influencers para divulgar o Calumbi.
Xandy Magalhães, bailarino, coreógrafo e ex-integrante do Balé das Sacramentinas, foi o primeiro. Com 11 mil e 400 seguidores no Instagram, ele fez duas postagens sobre a iniciativa. No primeiro dia, conquistou 60 simpatizantes para o podcast, utilizando apenas o logo vermelho e preto.
–*–*–*–
O professor de música da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e trombonista Tenison Santana dos Santos, 32 anos, tem grande expectativa pela terceira temporada. Bonfinense, com interesse em ritmos tão diferentes como polcas, valsas, arrocha e forró, ele foi convocado para ajudar a amiga Adriana em dois programas da série musical. Um sobre filarmônica, assunto que domina, e outro sobre calumbi, para o qual indicou um aluno especialista no tema.
Os conhecimentos de Tenison abrangem a obra de Ceciliano de Carvalho, famoso maestro e instrumentista, integrante da Filarmônica Sociedade União e Recreio, uma das quatro que existiram de Senhor do Bonfim, no século XX. Carvalho adaptava peças europeias e eruditas para a orquestra.
Com a experiência de ter participado do projeto Mostra Bonfim em Cena, capitaneado pela produtora cultural em 2014 e 2015, o professor não tem dúvidas que todos os podcasts serão de qualidade. Ele ouviu os episódios iniciais e avaliou que eles apresentaram recursos interessantes de narrativa.
Tenison está mais habituado a acompanhar podcasts cearenses sobre ritmos populares, outra de suas paixões. No Ceará é comum também gravam em vídeo as entrevistas com artistas e publicarem no You Tube. É o caso do “Cunversa é essa”, de Arlindo Orlando, e “Prosa Sertanejeira”. Ele torce para que Adriana adote estratégia semelhante.
Além dos temas já citados, a terceira temporada versará sobre sanfoneiros, o Samba de Lata, grandes compositores e música contemporânea
“A gente não quer falar só de passado. Queremos mostrar o que está acontecendo agora, a nova geração de músicos de Senhor do Bonfim. Eles tocam arrocha, usando elementos do forró, e estão se aventurando em MPB, algo sem tradição na cidade, mas que está dando certo” – antecipa a produtora cultural.
As podcasters anteciparam o nome dos personagens do episódio “Grandes Compositores”. São eles Ceciliano Carvalho, músico instrumental que compunha para filarmônicas; Walter Santos; Lúcio Carvalho, autor de “Cidadão”, estrondoso sucesso na voz de Zé Geraldo; e Hyldon, soteropolitano que viveu entre os seis meses de vida e os sete anos em Bonfim. Ele foi apontado como um dos precursores da música negra no Brasil, ao lado de Tim Maia e Cassiano.
Apesar do ritmo alucinado de trabalho, Adriana e Kerollen fazem planos de dar continuidade ao podcast após cumprirem o estabelecido com o governo estadual. A cultura indígena e o cangaço, incluindo a passagem de Lampião pela região, são possíveis temas de futuras séries ou episódios.
A concretização do projeto que começou como brincadeira deixará um legado importante, A professora de história planejou o uso dos episódios sobre as origens de Bonfim e sobre Campo Formoso na primeira unidade dos últimos anos dos ensinos fundamental e médio
“Os alunos vão adorar aprender que o salitre extraído de Campo Formoso foi utilizado na Segunda Guerra Mundial. Vão aprender história geral a partir da local. Isso é maravilhoso” – celebra.
–*–*–*–
CRÉDITOS
EQUIPE DA PRIMEIRA TEMPORADA
Pesquisa e apresentação: Adriana Santana e Kerollen Hagnys
Edição: Adriana Santana e Gerry Barbuda
Vinheta: Adriana Santana
Capa: Annie Almeida
Assessoria de Comunicação: Lorena Simas
EQUIPE DA SEGUNDA E TERCEIRA TEMPORADA
Pesquisa: Nando Lemos e Kerollen Hagnys
Apresentação: Adriana Santana e Kerollen Hagnys
Roteiro: Felipe Neiva e Adriana Santana
Edição: Gerry Barbuda
Capas: Annie Almeida (visual do podcast, também cuida das redes sociais) e Eli de Castro (visual dos episódios)
Assessoria de Comunicação: Lorena Simas
Intérprete da trilha sonora: Grupo de Calumbi de Itiúba
Gravação da trilha sonora: Maicon Dias
Cordelistas: Ailton Ribeiro, Jotacê Freitas, Anastácia, Benedito Oliveira. Maicon Dias, Gueu Schade e Lih Maria
Agradecimento ao Minha Cidade_Bonfim (Instagram) e Minha Cidade_Sr. do Bonfim (Facebook), cujas fontes serviram de pesquisa para o Calumbi.
- Author Details
Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.