Uma experiência fascinante: “Florescer” – Final

Vem pessoal! Senta que eu vou contar o que aconteceu com a professora que tinha desistido de tudo porque queria dar aulas de um jeito criativo e alegre, mas não conseguia superar os obstáculos existentes.

Pois então. Maria Isabel ficou um ano em casa, pensado nos caminhos que seguiria. Inspirada nos hippies – jovens americanos que pregavam o amor livre, o respeito à natureza, ao pacifismo e uma vida mais simples, sem preocupações consumistas, nos anos 1960 -, ela não queria ficar trancada em uma sala de aula calorenta, obrigada a avaliar os alunos com notas. A inspiração não a transformou em andarilha. Em vez disso, ela se refugiou com a família.

Embora tratassem a jovem sonhadora com amor e carinho, os familiares, com dificuldades financeiras, cobravam que a única pessoa a passar para uma faculdade voltasse a trabalhar. Afinal, ser professora era considerada uma excelente profissão no semiárido. Isabel, então, foi regando suas expectativas com esperança e orações. Com a ideia de formar os estudantes de uma forma diferenciada, ela voltou à secretaria de educação e pediu para ser aceita de volta.

Consciente que lidaria com alunos da zona rural, com histórias parecidas e idades próximas a dela, percebeu que devia lutar e ajudar a formá-los. Por amor aos estudantes, se transformou numa professora mais madura e dedicada. Além disso, decidiu voltar aos estudos. Fez vestibular e retornou ao curso de Letras.

Ao se formar, assinou novo contrato pior do que o anterior com a secretaria estadual de educação. Era o famigerado PST (Prestação de Serviço Temporário), no qual se trabalha mais, ganha menos e não tem direitos como férias. Para aumentar a renda, lecionou também em uma escola particular.

Em 2014, voltou a pedir demissão para cursar filosofia na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Entre maio e junho do ano seguinte enfrentou dificuldades para se manter na capital. Novo concurso de contratação pelo Reda (Regime Especial de Direito Administrativo) a fez voltar para Seabra, abandonando mais uma vez o que tanto almejava.

Ela dava aulas de português, redação, história, geografia, sociologia, do que fosse preciso na escola estadual. Ao mesmo tempo, ministrava produção de texto e outras disciplinas em um colégio particular. Nesse período, Maria Isabel concluiu em sua terra natal a licenciatura em pedagogia, curso de curta duração para professores oferecido pela Faculdade Regional de Filosofia, Ciências e Letras de Candeias (FAC). No entanto, não desistiu de estudar filosofia.

A professora comemorou muito a notícia de que passara para a USP (Universidade de São Paulo), no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2017. Finalmente concretizaria seu sonho. Com parentes na capital paulistana, não teria problemas de moradia como aconteceu em Salvador. Estava concluindo o terceiro período de filosofia, quando abriram as inscrições para professores efetivos na Chapada Diamantina. Aprovada, foi chamada para assumir o cargo.

Adeus USP. Na época, Maria Isabel tomou a decisão por considerar que não dava para sobreviver só com o sonho de estudar. Sem qualquer tipo de auxílio, acreditava que só poderia se manter na universidade se tivesse família com condições financeiras de bancar tudo.

O concurso na Chapada permitia que ela escolhesse lecionar português ou filosofia. Adivinhem o que Maria Isabel escolheu?

Making off do documentário sobre Maria Isabel para o prêmio Educadora Nota 10. Crédito: Ni Ribeiro
Maria chega a Boninal. Crédito: Ni Ribeiro

A classificação que obteve credenciou a professora a trabalhar em Boninal, a 43 quilômetros de Seabra. O ensino médio no município atende todas as comunidades. A escola é na sede, mas 80% dos alunos são da zona rural. Isabel se mudou para lá e se sentiu em casa. Irrigada pelo amor à filosofia, a árvore que usamos para comparar essa história desde o início se desenvolveu. O caule fino da muda que quase murchou virou tronco, os galhos cresceram e as primeiras folhas nasceram.

A proposta do projeto “As filosofias de minha avó: poetizando memórias para afirmar direitos”, que deu à professora o título de “Educadora Nota 10” em um concurso nacional, surgiu a partir da vontade de conhecer melhor a região e os estudantes. Maria Isabel lembrava do muito que aprendeu com as histórias sobre a bisavó Iaiá Lia e tinha a intenção de fazer os alunos se valerem do conhecimento que avós e avôs guardavam na memória e despertar neles o interesse por essa herança ancestral.

Seus planos estavam em conexão com a filosofia africana ubuntu, que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas umas com as outras e da importância do respeito e da solidariedade. O ubuntu conscientiza que uma pessoa é afetada quando seus semelhantes são oprimidos. Resumindo: a ideia central é que “sou o que sou porque somos nós, sou o que sou porque você também é”.

Em setembro de 2019, ela começou a colocar em prática o seu programa. Inicialmente, ele foi aplicado no terceiro ano do ensino médio. Os primeiros resultados foram tão interessantes que foi estendido para as 16 turmas existentes, cada qual com 30 estudantes em média. Os trabalhos escolares podiam ser feitos individualmente, em duplas ou em grupos de até cinco pessoas.

Antes de liberar os jovens para a pesquisa de campo, eles tiveram contato com os pensamentos da filosofa alemã Hannah Arendt e do filósofo e diplomata Henry Bergson. Hannah. O ponto de partida foi o instante marcante da memória. A partir daí, foi montado um roteiro para a coleta dos relatos, na qual os avós falavam das saudades e sobre as paisagens onde ocorreram essas recordações. A dificuldade inicial foi convencer os mais velhos, reticentes durante as entrevistas por considerarem a falta de estudos, que sabedoria não tem nada a ver com cursos e diplomas.

Making off do documentário sobre Maria Isabel para o prêmio Educadora Nota 10. Crédito: Ni Ribeiro
Vídeo Educadora Nota 10. Crédito: Ni Ribeiro

Superada esta etapa, os jovens ouviram relatos impactantes sobre as dificuldades e a fome que grassava no passado. Com isto vieram também depoimentos de superação, solidariedade e festas. Logo de saída, Maria Isabel comemorou uma importante vitória: um aluno problemático e provocador se empolgou com a tarefa e produziu um excelente documentário sobre a comunidade em que vivia. Apresentava, inclusive, propostas para resolver sérios problemas ambientais. Era o primeiro dos muitos frutos desta fascinante experiência.

As poesias feitas a partir das memórias para afirmar direitos foram transformadas em um musical, apresentado na Semana da Consciência Negra. Era impossível não se emocionar diante dos gritos que denunciavam os direitos negados aos ancestrais, a desigualdade social, a falta de acesso à educação. Um dos alunos parafraseou o rapper Emicida

Esse relato que fala da fome; esse relato desse avô, dessa avó que dizem que não estudou e não têm sabedoria. É direito à educação, é direito a tantas coisas, a condições de vida, tudo negado. Os relatos mostram que trancaram inúmeras desigualdades. Tudo isso a partir da experiência de ouvir as avós negras, as mães pretas. O estudante passou a ser o mensageiro das memórias delas.

O reconhecimento nacional desse projeto veio através do Prêmio Educadora Nota 10, o mais importante da educação básica no Brasil. Criado em 1998, ele tem o patrocínio e o apoio de muitas empresas, fundações e organizações nacionais e internacionais. Ciente da existência do concurso, Maria Isabel Gonçalves se inscreveu no último dia de prazo. Setenta e duas horas depois, foi comunicada que estava entre os 50 finalistas.

Isabel (E) e a ala dos capoeiristas. Arquivo pessoal
Isabel (E) e a ala dos capoeiristas.

Antes de completar o mês, soube que constava na lista de 10 vencedores de 2020. Ela se sentiu realizada. Com parte do dinheiro da premiação, convenceu a direção da escola a comprar livros para a biblioteca em vez de fazer uma festa. Também fez planos de apresentar os trabalhos dos estudantes nos povoados, seis deles quilombolas, quando a pandemia acabar. E de transformar tudo isso em livro.

A família de Isabel e o pessoal da Umburana ficou feliz e orgulhoso. As histórias dela e de Iaiá Lia foram divulgadas em rádios, jornais e páginas da internet. Ela continua inovando na arte de educar e de lutar por direitos. Descendente de uma família de músicos, ela deixou a timidez de lado e já cantou em sala de aula. Na última parada de Sete de Setembro, incluiu uma ala de capoeiristas e cantos de origem negra no final do desfile da fanfarra do colégio.

O projeto “As filosofias de minha avó: poetizando memórias para afirmar direitos” deu origem ao coletivo Iyaiás Floriá – poéticas decoloniais da Chapada Diamantina. O grupo formado por professores, estudantes, pesquisadores, artistas e ativistas culturais objetiva retomar os saberes pelas trilhas das memórias familiares e manter um acervo virtual para propagar esse conhecimento.

Assim como nossa árvore-história, Maria Isabel também floriu.

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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