ENTRE CASARÕES E DINOSSAUROS
Quando completou 35 anos, seis meses e trinta e cinco dias de contribuição ao INSS (Instituto Nacional de Seguro Social), seu Nôza resolveu se aposentar. Pouco antes de completar 60 anos, em 1986, deu entrada na papelada, vendeu a loja de tecidos que comprara do irmão e estabeleceu sua trincheira de cobrança de aluguéis de suas propriedades em uma das esquinas diante do fórum desembargador Almir da Silva Castro.
Mas voltemos ao ponto que terminamos o primeiro capítulo sobre seu Nôza na semana passada. As condições financeiras começaram a melhorar quando passou a revender as sobras de tecidos que comprava na loja em que trabalhara em Salvador. A mercadoria chegava rápido a Santa Inês pela estrada de Nazaré.
Como nos dias úteis o movimento era fraco, o ex-gerente da loja Os Gonçalves deixava o único funcionário cuidando do estabelecimento e trabalhava como motorista de pessoas importantes da cidade. Serviu, por exemplo, ao desembargador Castro, a quem levava frequentemente a Casa Nova, terra natal do magistrado, a 619 quilômetros de distância. Quando não tinha a quem conduzir, fazia fretes.
O dublê de comerciante e condutor calcula ter tido 20 carros. Todos foram comprados usados. Hoje possui um Fiat 2006 porque a manutenção é mais barata. Ele conta ter um sobrinho médico que comprou um carro importado. Sem peças de reposição no Brasil, o veículo está jogado em uma garagem a espera de conserto.
Depois de ter tido diferentes tipos de comércio – bar, mercearia, padaria, funerária -, sem largar ramo de tecidos, se meteu a comprar casas antigas. De uma fazia três. A cidade entrou em declínio econômico. Então, passou a fazer de um casarão dez pequenas lojas para facilitar o aluguel.
“As casas eram todas velhas, caídas. Ninguém queria nem entrar, mas eu comprava e remodelava. Agora são minhas e de meus filhos” – explica.
Os imóveis ficaram mais caro depois da instalação do Instituto Federal Baiano, na BR-420, por causa da procura de residências por parte dos estudantes de diversas cidades. Mesmo assim, custam pelo menos um quarto do preço da vizinha Jaguaquara, onde prosperaram lavouras de hortigranjeiros, uva e trigo.
Do casamento com dona Diva nasceram sete filhos – duas mulheres e cinco homens. Dois deles passaram a consumir muitas bebidas alcoólicas. Um morreu em um acidente automobilístico e deixou mulher e dois filhos. O segundo perdeu o emprego de 20 anos por causa do consumo exagerado.
SANTA INÊS, A VELHA
A história de Santa Inês teve seu ápice no período das fazendas de café, cultivado principalmente por italianos. Na memória de seu Nôza, 96 anos, nesse período valia a pena morar na cidade, encravada no vale do rio Jiquiriçá, região composta por 20 municípios.
Sábado sempre foi o dia de maior movimento. Desde cedo, ouvia-se o tropel de burros carregados com café, mamona e diversas mercadorias. Além dos italianos, havia portugueses que viviam do que era produzido nas fazendas. Os mais abastados construíam casarões com madeira retirada da vegetação, que se espraiava pelo centro da cidade.
A casa mais antiga é um sobrado branco e vermelho, erguido pelo “coronel” Luís Vieira Coelho:
“De primeira aqui todo mundo rico era “coronel”. Esse aí foi intendente. O filho dele foi esposo de uma irmã minha. Ele era tabelião na cidade. Ele gastou mil e duzentos mil réis na primeira parte da obra. O dinheiro acabou e a construção parou. Foi preciso esperar três anos para arrumar mais 300 mil réis” – conta Nôza, acrescentando ter morado no casarão.
O cartório funcionava no térreo. E o primeiro andar era cheio de quartos de aluguel. Assim como as baratas do Pelourinho, o velho Nôza não esquece os morcegos do antigo prédio.
“Até hoje ainda existe morcego lá” – diz e ri.
Depois do tabelião, o imóvel foi propriedade de mais de 10 pessoas, sendo que o dono atual é um ex-proprietário de terra que vendeu a roça e veio morar na cidade.
Naquela época também era comum ver pessoas utilizando espingardas para caçar lambus (um tipo de ave), perdizes, preás e outros animais silvestres, a poucos metros da entrada de Santa Inês, por onde se espraiavam árvores altas.
Seu Nôza fala com saudades do trem da antiga Tram Road de Nazareth, cuja construção iniciou em 1875. A paragem de Santa Inês foi inaugurada 33 anos depois com o nome de José Marcelino, ninguém sabe o motivo. A designação vigorou por mais de três décadas até ser trocada para o nome do município.
A ferrovia, que passou a ser chamada de Estrada de Ferro de Nazaré, ligava esta cidade do Recôncavo Baiano com Jequié (BA). E foi desativada, sob protestos, em 1967. Com um formato arredondado em uma das extremidades, a antiga estação teve diversos usos até se transformar no fórum da cidade, em 1980.
O veterano locador de imóveis hoje é dono da casa que servia de garagem à estação e recorda do burburinho de desembarque de passageiros e mercadorias.
“Quando desativou o trem foi uma acabação (sic) doida” – lamenta.
Nosso personagem se refere ao fim das lavouras de café por falta de meios de transportes adequados. De acordo com ele, o povo arrancou os trilhos para vender como ferro velho. A estação ficou fechada por muito tempo até ser assumida pela prefeitura e virar repartição pública. Mesmo depois que virou fórum, não tinha juiz titular, situação que permanece até hoje. O mesmo aconteceu com a promotoria, que só recentemente, segundo Nôza, nomeou um promotor fixo para a cidade. Até padre deixou de ser nomeado para lá, no relato do velho comerciante.
Quando retornou para a cidade, seu Nôza encontrou o que define como “um atraso danado”. Ele conta que chamava atenção o fato de a cidade ter muitas pedras no meio da rua e ser ocupada por cabras. Diz ainda que as pessoas usavam tamancos em vez de sapatos. Outra diferença para os tempos atuais é que chovia muito. Era tempo de enchentes e não de seca. A mais forte, nas contas de Nôza, aconteceu em 1964, na mesma época em que o país mergulhava nas trevas da ditadura civil-militar.
“Eu mesmo levei uns oito dias dormindo no carro fora daqui porque não entrava na cidade de jeito nenhum. Tudo virou água. A beirada do rio virou mar. Aquelas lojas ali (aponta adiante) ficaram cobertas. Depois disso, trancou tudo. Quando é agora Deus está mandando coisa que ninguém nunca viu: trovoada e relâmpago no mês de janeiro, por exemplo” – se espanta.
Duas outras coisas faziam Santa Inês ser conhecida na região: as festas de São Cosme e dois cabarés, onde Nôza diz ter contraído cancro, mula e todas as doenças venéreas existentes na época. A risada com que finaliza a frase deixa em dúvida a veracidade dela.
O semblante muda quando o tema passa a ser a fé em Cosme, tradição iniciada pelo pai do idoso. Embora o mês dedicado ao santo seja setembro, no sertão é comum fazer a celebração na data em que a pessoa conseguiu obter uma graça. Na família Menezes, as rezas e o festejo acontecem até hoje em dezembro.
Seu Nôza lamenta que a tradição esteja acabando:
“Meu pai nunca perdeu uma reza em toda a vida. Até hoje eu não nego, eu me envolvo muito com São Cosme. Nunca pedi nada que ele não resolveu. Chega tem hora que eu fico até com vergonha de pedir as coisas”.
E o que o senhor pede?
“Saúde”
Falando nisso, como está sua saúde?
“Minha saúde, graças a Deus, vai bem. Eu nunca tomei remédio para a pressão. Ultimamente é que um doutor de Salvador disse que eu tenho que usar medicamento para o coração, que de vez em quando tem arritmia. Já teve duas vezes. Mas ele diz que isso passa.
Desde o tempo da bexiga, que eu morei num lugar onde morria gente que era um castigo, nunca me vacinei. Agora, uns meninos meus fizeram me vacinar dessa daí (covid). Algum bem deve ter feito. Agora a vacina da gripe eu me dei mal. Eu nunca andava gripado e depois que tomei essa injeção em janeiro eu só ando com catarro, com essas coisas, como se estivesse gripado, mas não tem febre, não tenho nada. O resto como meu feijão todo o dia, minha carne assada, minha carne de sertão. Coisa salgada eu nunca deixei de comer. Bebida eu nunca gostei. Tive bar muitos anos, mas bebida eu nunca gostei e não gostava também de quem andava bebendo”.
SANTA INÊS, A NOVA
Muitas vezes é bem melhor deixar o entrevistado falar do que elaborar um texto e correr o risco de tirar a autenticidade do que diz uma pessoa fantástica como seu Nôza. Por isso, pela segunda vez desde que comecei a contar a história, na semana passada, mantenho o jeito como ele se expressou sobre a cidade nos dias atuais:
“Santa Inês eu vou dizer ao senhor… Aqui já teve mais de 50 casas de comércio e hoje só tem quatro ou cinco porque os pequenos acabaram todos. Não ficou ninguém. A fábrica de bolos que existe se muito fizer são 20 por dia. Não vai para lugar nenhum. Restaurantes são dois com esse, aponta para o sobrado diante do escritório dele. Tem semana que não vende um almoço. Agora é que abriu outro pros lados da rodoviária. Disse que está bonzinho aquele, que abriu agora recente, mas vai ser difícil ir pra adiante não.
Viajante nenhum para aqui para dormir, nem para comer. Todo mundo vai adiante em lugar maior. E agora tudo é telefone. Não precisa viajar. É telefonar e a mercadoria chegar
Segurança não tinha, mas agora tem guarda de dia e de noite. Tudo montado em moto, mas nem sempre pegam os ladrões. Ainda ontem teve roubo aí, perto da delegacia. Dois caras na moto. Eles viram um cara com um telefone. Um deles saltou, tomou e se mandou”.
Seu Nôza também é cético com relação ao projeto da prefeitura de atrair turistas com grandes esculturas de dinossauros espalhadas pela cidade e com um museu sobre o tema. A resposta dele sobre a iniciativa arranca risadas.
“Eu nunca vi esse bicho por aqui, nem nos jornais ninguém via. Dinossauro só tinha em livro. Parecia um boi. Eu não sei como esse homem (o prefeito) inventou de dizer que aqui tem isso” – opina.
Em seguida, Nôza admite que a proposta turística é “novata” e que na entrada da cidade muita gente para os carros para fotografar o ataque de dois tiranossauros a um dinossauro herbívoro e a um filhote. Na prática, o projeto estava indo bem, mas a pandemia de covid-19 atrapalhou os planos da municipalidade, afastando turistas.
Não será fácil a recuperação, pois o prefeito de Salvador, Bruno Reis, anunciou a incrementação do Parque de Dinossauros existente na capital em parceria com a iniciativa privada. Hoje são 14 grandes esculturas. A concorrência pode abater os planos santa-ineenses.
Além disso, Santa Inês tem outro grande problema: a cidade sobrevive dos salários pagos pela prefeitura, o Bolsa Família e o dinheiro de aposentados. As poucas possibilidades de emprego fazem com que os trabalhadores da cidade aceitem receber meio salário mínimo (R$ 606) mensais. Ao mesmo tempo, seu Nôza reclama do preço dos impostos, dos remédios e dos alimentos, que não param de aumentar.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.