Paulo Oliveira e Thomas Bauer (*)
O derramamento de petróleo na costa da região Nordeste e de dois estados do Sudeste (Espírito Santo e Rio de Janeiro) ocorreu em agosto de 2019. Até hoje, no entanto, as causas e os responsáveis pelo chamado crime do petróleo não foram identificados. Muito menos punidos. Embora tenha satélites e outras tecnologias para monitorar as águas e os navios, as autoridades brasileiras não identificaram com precisão, nem puniram os responsáveis pelo desastre ambiental.
De lá para cá, surgiram diferentes versões para o crime do petróleo A primeira, anunciada pelo governo federal, foi a de que o petróleo vazou do navio grego Bouboulina.
Em maio de 2021 a Marinha citou mais dois navios suspeitos de derramarem petróleo: o Nichioh, da empresa liberiana Major Shipping SA, que depois trocou de nome para City of Tokyo; e o holandês Amore Mio, da companhia Heesen Yachs, posteriormente rebatizado como Godam. A informação é do blog Mar sem Fim, especializado em bioma marinho.
A segunda, aventada por estudiosos brasileiros, canadenses e americanos, diz que o material poluente se tratava de uma mistura de óleos combustíveis usados para transportes de navios, e não petróleo cru. Informaram ainda que o óleo teria sido produzido na década de 1940, levantando a hipótese de ter vazado de um navio nazista, afundado na costa brasileira.
Já o aparecimento de resíduos nas praias nordestinas, registrado no final de agosto deste ano, seria “um novo incidente”, de acordo com o Comando do 3º Distrito Naval, sediado em Natal, capital do Rio Grande do Norte. A suspeita é que o material foi lançado no mar após lavagens de tanques de um petroleiro. As análises apontam que o óleo foi produzido no Golfo do México, entre os Estados Unidos, México e Cuba.
A não elucidação do “mistério” não impede o desenvolvimento de outros tipos de pesquisa, como a liderada pelo biólogo, mestre em botânica e professor do Laboratório de Gestão Territorial e Educação Popular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Miguel Accioly. Intitulada como “Mancha de Sofrimento”, ela visa registrar o enfrentamento das comunidades pesqueiras diante do derramamento de petróleo.
Além de preservar a memória e os ensinamentos adquiridos a partir da experiência de comunidades do Ceará, Pernambuco, Alagoas e Bahia [1], o trabalho também elaborou estratégias para serem adotadas em caso de nova catástrofe ambiental. As propostas giraram em torno de seis temas: elaboração e implantação de plano de contingência, segurança sanitária, rede de apoio, proteção de ecossistemas; prevenção de desastres e comunicação. Disso, falaremos mais adiante.
CPI DO PETRÓLEO
Ao participar de uma sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Petróleo, em março de 2020, Miguel Accioly confirmou a percepção de que não havia interesse dos políticos levarem a investigação adiante. Diante de apenas dois deputados, um deles bolsonarista, o professor anunciou que a Petrobras e o Ibama dispensaram a ajuda de seus funcionários para a identificação da origem do óleo vazado. Isso irritou o líder do PL, José Rocha.
A péssima experiência na CPI, encerrada sem chegar a nenhuma conclusão, motivou o biólogo a documentar os efeitos da tragédia ambiental:
“Vi que não ia ficar registro do que foi enfrentado pelos pescadores e que a gente precisava de uma pesquisa com esta finalidade” – disse.
A metodologia utilizada para a realização do trabalho foi o mapeamento biorregional. A técnica permite a apropriação do conhecimento biofísico e cultural utilizados para garantir a vida da comunidade. As informações são elaboradas pelos pesquisadores em conjunto com pescadores e marisqueiras e permitem o auto diagnóstico dos problemas e a elaboração e sugestões para mitigá-los ou resolvê-los.
Durante o período mais agudo da pandemia de covid-19 o modelo foi adaptado. E, a partir de outubro de 2021, foram realizadas oficinas para a obtenção do consenso dos mapas e a produção das ilustrações, levando-se em conta que a expressão artística é importante forma de comunicação.
O material, apresentado no seminário “Mar de Luta: três anos de resistência ao crime do petróleo”, consiste em um caderno com 43 mapas das áreas afetadas pelo óleo. Neles, estão assinalados os problemas de saúde que atingiram os pescadores e pescadoras artesanais que atuaram na limpeza das praias; o descaso e o abandono dos governos federal, estadual e municipal; a crueldade dos governantes; as falhas de comunicação, dentre outras questões.
Em duas comunidades, o petróleo não chegou, mas houve enfrentamento com relação à acentuada redução de consumo de peixes e mariscos. A segurança alimentar foi abalada. Estes mapas contam as consequências da falta de comercialização, as iniciativas de coleta de cestas básicas e as reuniões realizadas com bombeiros e outras entidades.
Os títulos dos mapas utilizam a mesma linguagem de publicações populares. Por exemplo: “Quem são os culpados?”, “Até quando vai o nosso sofrimento?” e “Combinaram de nos matar, nos articulamos para não morrer”. Também são registrados depoimentos, a luta e a sobrevivência dos povos, problemas de saúde, a força da organização comunitária e pesquisas rápidas com bons resultados [2], além de infográficos diversos.
“O que agravou o desastre foi a não gestão da comunicação, a não divulgação de boletins diários para acalmar as pessoas e evitar boatos. Não houve essa gestão no caso do petróleo” – ressaltou o professor.
Accioly também explicou que, embora o material poluente não tenha chegado à Baía de Todos os Santos, foi feito o mapeamento sobre os 70 anos de enfrentamento à indústria petrolífera na região. A primeira área a ter poços de petróleo registra derramamentos quase todo mês, daí a necessidade de se falar sobre as empresas e os desastres ambientais.
O pesquisador acrescentou ainda que as regiões onde há turismo comunitários não receberam auxílio, ao contrário das cidades onde a indústria do turismo (hotéis, restaurantes, balneários) é forte. Nelas, as prefeituras deram apoio.
Durante a coleta de dados, as questões mais evidentes em todo o Nordeste foram a falta de orientação e de respostas das autoridades, a importância da união das comunidades, a insegurança econômica, o atraso de ações governamentais, o impacto direto na saúde mental e a dificuldade de comercialização do pescado.
A previsão é que quando encerrar a elaboração dos dados de Barra de Sirinhaém (PE), Cova da Onça e Guarapuá (BA), o material será entregue ao Ministério da Ciência e Tecnologia como relato oficial do que ocorreu durante o crime ambiental e as sugestões das comunidades de pescadores e marisqueiras. As comunidades também receberão a íntegra do trabalho ainda este ano.
Eis a relação de propostas principais:
- Elaboração e implantação de plano de contingência com a participação das comunidades, principalmente pescadores pelo conhecimento do ambiente e pela posse de inúmeras embarcações, em sua elaboração.
- Formação de lideranças e brigadistas de contingências
- Procedimentos de alertas para comunidades, instituições e órgãos envolvidos.
- Monitoramento estadual e municipal.
- Oferta de tratamento de saúde permanente (inclusive psicológico) às comunidades [3].
- Estudos de contaminação do pescado e dos impactos na saúde da população.
- Suporte financeiro e alimentício para os afetados.
- Ressarcimento do material perdido pelos pescadores artesanais durante o processo de contenção.
- Integração Ibama, ICMBio, marinha, secretarias municipais e estaduais, pescadores e universidades para proteção dos ecossistemas.
- Criação de redes de monitoramento e de prevenção.
- Uso de drones por agentes comunitários treinados para controle do avanço dos poluentes.
- Contenção e remoção do material com urgência.
- Punição efetiva dos responsáveis.
- Comunicação transparente e eficiente.
- Divulgação do problema pela mídia.
- Tem que haver núcleo de comunicação com boletim diário oficial para conter pânico, evitar boatos.
- Laudos sobre a contaminação do pescado, pessoas e ambientes, divulgados em curto prazo [4].
- Orientações voltada para as crianças.
- Divulgação de boletins de alerta de riscos de alastramento.
REALIDADE PERNAMBUCANA
Cristiano Ramalho, responsável pelo Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios (Nuhumar) e professor do departamento de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) participou do seminário de forma remota e apresentou alguns dados sobre o seu estado. Ele revelou que, segundo pesquisadores do comitê SOS Mar, da UFPE, estima-se que 30 mil pescadores e pescadoras artesanais pernambucanos foram prejudicados pelo derramamento de óleo [5].
Ele contou que a economia da pesca no estado entrou em colapso após o desastre ecológico. Além do impacto ambiental propriamente dito, o fenômeno foi provocado pelo medo de peixes e mariscos estarem contaminados por produtos derivados do petróleo, com alto potencial cancerígeno.
“Entre outubro de 2019 e dezembro de 2020 houve queda de 70 a 80% nas vendas. A economia pesqueira colapsou na primeira quinzena de janeiro de 2020. Alguns pescados como mariscos, ostras e caranguejos tiveram queda de, no mínimo, 90%. Em alguns locais chegou a 100%. Houve ligeira reação em fevereiro e março, e veio pandemia de covid 19. Foi um período terrível para comunidades fragilizadas por passivos sociais, ambientais e econômicos” – explicou.
Ainda em 2020, as medidas provisórias 908 e 911, perderam a validade. Por meio delas o governo federal criou o auxílio emergencial para pescadores artesanais das localidades atingidas pelo derramamento de petróleo. Contudo, apenas 4.236 pescadores pernambucanos foram beneficiados.
Outro aspecto que preocupa Cristiano extremamente foi a morte de anciões e anciãs durante o período mais intenso da covid. Ele ressalta que as vítimas detinham o conhecimento e o repassavam de forma oral para os mais jovens:
“A trágica combinação petróleo e pandemia teve os impactos potencializados pelo governo Bolsonaro. Eram os mais velhos que ensinavam aos mais novos a arte da pesca. Essa tragédia acelerou também o abandono da profissão pelos mais jovens. Você não recupera isso rapidamente. Há também um grande impacto na cultura desses povos. Isso vai repercutir geracionalmente na pesca” – afirmou.
Com relação aos danos na saúde, o professor revelou que a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) notificou 389 casos de intoxicação exógena em 11 municípios [6]. A maioria das vítimas foram homens – 216, o equivalente a 55,6%. Do total de notificações, houve exposição cutânea em 89,7% das vítimas e exposição respiratória em 66,8%. A soma ultrapassa 100% porque muitas pessoas ficaram expostas das duas formas.
Outros pontos observados pelo pesquisador:
IMPACTO NA RENDA
- As mulheres tiveram maior queda de rendimento.
RACISMO AMBIENTAL
- 70% entrevistados são negros e pardos, o que caracteriza racismo ambiental e injustiça social juntos.
SAÚDE MENTAL
- Aumento dos casos de tristeza, depressão e sofrimento, associados ao crime ambiental e à pandemia.
- Aumento violência doméstica.
SAÚDE FÍSICA
- Ausência do estado, abandono poder público federal, ataque populações tradicionais quilombolas, camponeses e camponesas, mesmo governos supostamente progressistas de Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas, em âmbito municipal e/ou estadual.
- Não houve acompanhamento à saúde, falta total apoio e ausência monitoramento
MEMÓRIA COMO EXERCÍCIO POLÍTICO
- O exercício de memória coletiva é fundamental. Sem isso não há resistência. O reaparecimento de novas manchas de óleo nos mostra que o passado ainda é presente.
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(*) Esta série foi produzida por Meus Sertões em parceria com o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).
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‘O piche descia que nem cobra dentro d’água’
O descaso dos governos com os pescadores artesanais
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Notas:
[1] Reserva Extrativista (Resex) Prainha-Jaguaribe (Ceará); Resex Acaú-Goaina (Pernambuco Norte); Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais (APACC) Rio Formoso (Pernambuco Sul); APACC Alagoas Norte; APACC Alagoas Sul; Área de Proteção Ambiental (APA) Litoral Norte-BA; APA Baía de Todos os Santos, Recôncavo (BA); APA Tinharé-Boipeba, Baixo Sul (BA); Resex Canavieiras (Sul-BA); Resex Corumbau (Extremo Sul – BA) As comunidades de Sergipe não foram incluídas no projeto por falta de recursos.
[2] Um exemplo concreto é o trabalho da Fiocruz sobre contaminação e pescados mais relevantes.
[3] Relato de que não atenderam pescadores porque eles estavam sem camisas, mas turistas são atendidos só de sunga.
[4] Esta proposição inclui os resultados de pesquisas científicas feitos, mas não divulgados, com a justificativa de que as conclusões só podem ser anunciadas após publicação em revistas científicas. Segundo Accioly, é preciso ter urgência em informar se as pessoas estão doentes e se os peixes estão contaminados. Ele relatou que muitas vezes, esses dados são divulgados dois anos após o levantamento e em inglês. O pesquisador defende que pelo menos o laudo inicial seja revelado.
[5] Os atingidos em todo o Nordeste chegam a 350 mil.
[6] Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca, Itamaracá, Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Recife, Ribeirão, São José da Coroa Grande, Sirinhaém, Tamandaré e Vitória de Santo Antão.
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Atualizado em 13/10/2022, às 21h09min
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.