O brilho do céu de Pirpirituba – Capítulo 1

Paulo Oliveira

PARTE I

 Deitado no lajedo, atrás da casa de pau a pique e teto de palha, o menino olhava para o céu estrelado. Sem poluição e sem energia elétrica no povoado, os astros brilhavam intensamente.

De repente, uma estrela sumiu e o pequeno Severino perguntou para a avó, que sempre tinha resposta para tudo, o que acontecera.

“Ela caiu no mar” – disse dona Maria Antônia.

A criança, então com nove anos, insistiu: “Como assim?”

“Caiu no mar, mas vai nascer em outro lugar” – explicou a avó.

Com o coração apaziguado, o menino voltou a observar o céu.

 Sítio Pacova, sertão da Paraíba, 1967

 

Ao descer do ônibus na rodoviária, na zona portuária do Rio de Janeiro, com a mãe Josefa, a irmã Maria Ana e a avó, Severino Antônio da Silva não lembrava quantos dias de viagem a família tinha enfrentado desde que deixou Pirpirituba, no sertão paraibano. No entanto, o Portal Ônibus Paraibanos [1] afirma que no início dos anos 1970, a ligação com o Sudeste era feita, no mínimo, em 15 dias, devido às péssimas condições das estradas.

Ônibus da viação Dutra, uma das primeiras a fazer a ligação entre a Paraíba e o Rio de Janeiro. Crédito: Acervo Paraíba Bus Team

Ainda estava vívido na memória de Severino o pânico que se apoderou dele quando o ônibus entrou em uma balsa para atravessar um rio. O medo foi tanto que o rapazote não parou de gritar que a embarcação ia afundar enquanto ela não aportou na margem oposta. A experiência só não foi pior do que a primeira impressão que teria da nova cidade.

Quando dona Josefa ficou viúva, sepultou o marido Joaquim ao lado do filho mais novo, no cemitério municipal. O bebê morreu aos três meses de idade de uma doença que começou com coceira por todo corpo, mas que ninguém na roça sabia que nome tinha. O marido partiu aos 35 anos, de ataque cardíaco. Foi aí que a jovem viúva decidiu tentar a sorte no Rio de Janeiro, onde moravam alguns conterrâneos.

Josefa Ana e Joaquim Antônio, pais de Severino. Reprodução do álbum de família

Após conseguir emprego de doméstica e começar a guardar parte do dinheiro para comprar um “barraquinho”, Josefa voltou para buscar a família.

À princípio, Severino gostou da ideia de os Silva voltarem a viver juntos, mas algo lhe dizia que perderia o que prezava: a liberdade de correr de um lado para o outro e ver sempre o horizonte.

“Lembro que a gente chegou e foi pegar um ônibus para um lugar chamado Pilar, a 18 quilômetros do centro de Duque de Caxias. Eu não via o sol, só prédios. Tudo era diferente. Até o vento. Fiquei aflito, parecia que estava indo para a prisão” – recorda.

Dos quatro anos passados na Baixada Fluminense, Severino não esquece do “calor danado” que o fazia ir comprar pedra de gelo em um bairro distante e voltar correndo antes de tudo derreter, de ficar esperando o caminhão de gás na pista porque as ruas de barro do Pilar ficavam intransitáveis quando chovia e de contar os dias para ver a mãe, aos finais de semana.

Foi em Caxias, onde havia muitos bicos-de lacre [2], que nasceu um dos três filhos de Severino. Lá também, na metade da adolescência, o jovem nordestino traçou o plano de começar a trabalhar para voltar à terra natal. O projeto não era novo e a ele o menino sempre recorria quando se via em apuros.

A CAMINHADA

 Menino novo, Severino ficava três, quatro meses, sem ir do povoado onde morava até o centro da cidade. A ida a Pirpirituba era como se fosse um presente. A mãe nunca levava o casal de filhos, sempre revezava os dois.

A dupla percorria cerca de sete quilômetros a pé – o último trecho era uma longa ladeira – e sempre levava dois pares de calçados. Se estivesse chovendo era lama até o meio da perna. Se tivesse sol, poeira. Daí, o ritual lavar os pés ruços ou enlameados no açude na entrada da cidade e trocar os chinelos.

Após cerca de três horas de caminhada, uma parada em uma barraquinha, onde dona Josefa comprava uma sorda [3] e uma raspadinha de maracujá. Ela tirava um pedacinho da bolacha e bebia um pouquinho só do refresco. Com o passar do tempo, o menino percebeu que ela não tinha dinheiro para comprar dois lanches. Pela primeira vez, o plano de trabalhar foi colocado em prática.

A sorda é fabricada artesanalmente e muito consumida no sertão. Reprodução do Canal Salgados Mania, do You Tube.

“Comecei cortando agave [4], trabalhei em casa de farinha e puxei enxada na roça, trocando o dia com outra pessoa. Eu ia um dia, ele outro. Assim o serviço parecia que rendia mais” – conta.

No Rio, Severino Antônio fazia de tudo: capinava, ajudava um amigo a construir barracos de taipa, cortando e preparando o barro para ele jogar na parede. Às vezes, pintava as casas. Tinha por volta de 15 anos, quando, por indicação de um amigo, passou a trabalhar fazendo entregas e a limpeza em uma loja de louças, ferragens e artigos de presentes no Largo do Machado, em Laranjeiras, zona sul carioca.

A essa altura, dona Josefa, com a ajuda dos patrões, havia comprado uma casa pequena na comunidade Tavares Bastos, no Morro da Nova Cintra, no Catete. No futuro, a localidade serviria de cenário os filmes Tropa de Elite; Maré, Nossa História de Amor; O Incrível Hulk; e as novelas Vidas Opostas e a Força do Querer, da TV Record e TV Globo, respectivamente.

Na Casa Brasília Louças e Ferragens Ltda, o garoto foi promovido a balconista, além de ter como missão montar vitrines. No entanto, tinha uma ambição maior, inoculada na infância.

–*–*–

PARTE II

A poeirada subia quando dona Maria Antônia passava a vassoura de mato na casa. O fecho de luz entrava pelas brechas do teto de palha de bananeira e o pó subia.

“Vó, não joga água no chão. Se a senhora jogar, a poeira não vai  brincar com a luz” – pediu o menino, que achava a imagem e o contraste dela as coisas mais lindas do mundo.

1965

 

O fascínio pela fotografia era alimentado pelas imagens nas capas de dezenas de jornais, principalmente a Última Hora e o Jornal do Brasil, e de revistas expostos nas bancas. O jovem balconista só pensava em um dia ser fotógrafo.

Josefa aguçou ainda mais a vontade do garoto, comprando uma máquina Kodak126 ou 54x. A memória não ajuda a lembrar o modelo com precisão. No entanto, a principal característica das primeiras fotos é inesquecível.

“Eu cortava a cabeça de todo mundo naquela época. Eu olhava pelo visor, mas tinha que deixar um espaço e eu não fazia isso. Tinha um amigo que alertava: ‘Corta os pés, mas deixa a cabeça”. Não adiantava” – diz o ex-balconista, sorrindo.

Cansado da vida de comerciário, Severino resolveu procurar o banco de empregos que funcionava na Catedral São Sebastião.

“Em que atividade você é bom?”, perguntou a funcionária.

“Não sei nada, mas quero trabalhar em uma empresa grande para aprender algo e ter chance de crescer”, respondeu o adolescente paraibano, que recebeu uma carta para se apresentar no jornal O Globo.

A esperança de um dia trabalhar como fotógrafo logo se esvaiu, quando ouviu que não havia vaga em nenhum departamento. Ao sair do prédio da rua Irineu Marinho, no centro do Rio, Severino  foi agradecer ao encarregado da portaria Sérgio do Prado por tê-lo atendido e encaminhado para o departamento pessoal.

Severino relatou que o chefe da portaria quis saber o que tinha acontecido na área de recursos humanos. E ficou sensibilizado ao ouvi-lo dizer que gostaria muito de trabalhar na empresa, mas não estavam recrutando ninguém. Além disso, voltou a dizer que não tinha nenhuma profissão, mas estava disposto a aprender.

“Se tiver uma vaga na limpeza, você topa?” – perguntou o pernambucano, que comandava a recepção.

“Começo quando?” – disse o rapazote prontamente.

Dois dias depois, às 7 horas da manhã, Severino foi contratado como contínuo, com a advertência de que teria três meses para aprender a função ou seria dispensado. Na função de estafeta, engolia o almoço, cortava o caminho para o centro financeiro da cidade, onde fazia pagamentos e entregava correspondências. Corria muito para ter tempo de passar nas livrarias e ver livros de fotografia. Na Ediouro, onde costumava deixar um exemplar de O Globo, os empregados o deixavam folhear livros de fotografia, escondido atrás de uma escada. Ele fazia algumas anotações para tirar dúvidas com os profissionais do jornal.

Com o dinheiro das primeiras férias, comprou uma Nikkormat, hoje anunciada por R$ 790 reais, no Mercado Livre, para servir de decoração e uma lente 135.

“Cheguei com esse material em casa e não consegui dormir” – diz.

Aproveitando as saídas para entregas e pagamentos, Severino Antônio Silva tirava fotografias na rua. Na volta, sempre tinha um laboratorista gente boa para revelar o filme e um fotógrafo para avaliar os erros e ensinar a evitá-los.

No início dos anos 1980, o departamento de promoções do jornal criou o Campeonato de Vôlei de Rua e o Intercolegial, competição entre colégios reunindo diversas modalidades esportivas. A miniolimpíada visava promover os recém-lançados suplementos de bairros e estimular a prática esportiva entre os jovens. Ainda trabalhando como contínuo Severino, com o apoio do coordenador da competição Roberto Garófalo começou a fotografar as disputas como freelancer.

Do departamento administrativo para o financeiro. E de lá, por indicação do chefe Américo Monteiro, para um estágio no departamento fotográfico, passando a acompanhar os profissionais durante as reportagens.

Aos 24 anos, quando o namoro com Nazaré, que conhecera na comunidade Tavares Bastos, começou a ficar sério, Severino foi registrado como fotógrafo no jornal de Roberto Marinho. Não era bem o que ele queria, mas tinha suas vantagens. Em vez da redação, ele foi trabalhar na área industrial, mais precisamente na fotomecânica, onde lidava com muito revelador e branqueador. Além disso, a empresa oferecia plano de saúde e um bônus financeiro no mês de aniversário do jornal.

 Os benefícios não lhe prenderam em O Globo. Assim que surgiu uma vaga na redação de O Fluminense, em Niterói, ele abriu mão do que os colegas consideravam um emprego mais seguro. A paixão pelo fotojornalismo foi mais forte. Severino ainda tentou conciliar os dois trabalhos e os freelas [5] em O Dia, nas tardes e noites de sábado e no domingo.

Em O Globo, a jornada ia das cinco horas da tarde à meia-noite. Naquela época não havia transporte para o alto do morro, onde o fotógrafo morava com a mãe. Além do retorno para casa depender da força das pernas, dormia pouco, pois às sete horas tinha que estar na redação do outro lado da Baía da Guanabara.

Depois surgiu O Povo (RJ), jornal cuja linha editorial principal era a cobertura do noticiário policial. Convidado pelo editor de fotografia Eduardo Faustini, ficou na empresa três anos e começou a ganhar a fama, que levou o jornal inglês The Guardian a citá-lo como um dos melhores fotojornalistas na cobertura de violência urbana do Brasil.

Severino faz fotorreportagens pelo Brasil Na foto, em Jatobá (PE), em uma cooperativa de  criadoras de tilápias. Crédito: Paulo Oliveira

Foram necessários dois convites de A Notícia para Severino trocar de emprego. Assim como ocorreu em O Globo, embora tivesse pedido demissão, foi indenizado e ouviu que as portas das empresas estavam abertas para ele. Tanto que, tempos depois, deixou a empresa da Editora O Dia e retornou para o jornal de origem, dessa vez para trabalhar durante a madrugada.

Em O Globo, sem que esperasse, foi colocado em uma “barca”[6], mas graças aos colegas que o respeitavam e admiravam seu trabalho, foi chamado para O Dia como colaborador fixo. Ficou três anos na função até ser contratado por indicação do editor Pedro Vasquez e do também fotógrafo Fernando Rodrigues.

Lá, permaneceu por 30 anos, até o jornal mergulhar em crise financeira, entre 2018 e 2019, pedir recuperação judicial e dispensar quase a totalidade de seus profissionais veteranos. Atualmente, Severino faz freelas e produz fotorreportagens Brasil afora.

–*–*–

PARTE III

 Quando estava deixando Pirpirituba, Severino prometeu à dona Josefa que um dia retornaria à cidade com ela:

“Mãe, a gente vai voltar e a senhora vai estar velhinha. A gente ainda vai andar de mãos dada aqui” – disse o garoto

“Eu vou estar velhinha, mas não vou precisar de ninguém me segurando” – retrucou a jovem viúva.

1969

 

Estava tudo acertado para mãe e filho voltarem ao Nordeste, em 2019. Severino tinha o desejo secreto de rever o céu noturno e brilhante de Pirpirituba. Mas, infelizmente dona Josefa sofreu um acidente vascular cerebral. Agravado por problemas respiratórios, ela não resistiu. O fotógrafo perdeu a motivação de retornar à cidade natal. No entanto, algo inesperado o fez mudar de ideia – CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA.

 

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Pé de página

[1] Site consultado no dia 29/01/2023, às 10h30 –

[2] Passarinhos cinzentos, de bico vermelho, trazidos da África em navios negreiros.

[3] Bolacha popular, barata e tradicional, feita de farinha de trigo, mel de rapadura e especiarias – cravo, canela e gengibre.

[4] Planta usada como adoçante e erva medicinal.

[5] Trabalho sem vínculo empregatício.

[6] Lista de demissão coletiva.

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Para conhecer um pouco mais sobre o Brejo Paraibano:

Exposição fotográfica de Severino Silva

Diante da igreja matriz de Pirpirituba – Final

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Crédito da foto principal: O céu –  DSS Consortium, SDSS, NASA/ESA, Google Sky

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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