A rodovia, o povoado e os prostíbulos – capítulo 1

“Flores horizontais,
flores da vida
flores brancas de papel,
da vida rubra de bordel,
flores da vida
afogadas nas janelas do luar
carbonizadas de remédios, tapas, pontapés,
escuras flores puras, putas, suicidas, sentimentais.
Flores horizontais.
Que rezais?

Com Deus me deito
Com Deus me levanto
Com Deus me deito
Com Deus me levanto”

“Flores Horizontais” é uma canção composta a partir de estrofes
do poema “Oração do Mangue”, de Oswald de Andrade (1936). Musicada
por José Miguel Wisnick, foi gravada por Elza Soares (2002).

 

A história de Cruz da Donzela, localidade de Malhada dos Bois, em Sergipe, é marcada pelo
assassinato de uma jovem que virou santa popular e pela proliferação de casas de prostituição

 

Paulo Oliveira

 

A viagem para o sertão sergipano é animada pela brincadeira de descobrir a letra de uma música a partir de uma palavra. Apesar da bagunça, das risadas e de polêmicas sobre canções inventadas pelos participantes, minha neta dorme tranquila, no banco traseiro do carro. A farra, que torna a viagem mais agradável, não impede que placas da BR-101 chamem minha atenção para o nome da localidade que indicam: Cruz das Donzelas.

 

Placas na BR-101 com o nome errado do povoado. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões

Só depois soube que a grafia do nome do povoado pertencente ao município de Malhada dos Bois, uma espécie de portal imaginário que dá acesso ao sertão sergipano, não era precisamente essa. Independente disso, a próxima pauta para uma série de reportagem de Meus Sertões começava a ganhar forma.

A sinalização da pista de volta para Aracaju tem uma diferença. Em vez de só placas metálicas, há um totem de alvenaria com um arco escrito “Cruz da Donzela” e uma pilastra com o nome da cidade. Afinal de contas, que histórias estariam por trás daquele topônimo [1] e das indicações geográficas?

A primeira pista foi obtida através do texto Histórias da BR-101, publicado no blog A Semana em Foco, de Itamar Freitas. Ele fazia um breve relato e citava a monografia Grandezas e misérias da prostituição feminina no povoado Cruz da Donzela (1969/2001), da historiadora e advogada malhadense Ana Luzia Santos, entre as fontes. As buscas pela autora e pelo trabalho consumiram semanas, o que atiçou ainda mais a minha curiosidade.

A ORIGEM

Ana Luzia conta que responsável pelo povoamento foi Vicente Ferreira de Matos. Ele chegou ao local quando tudo ainda era “uma mata de samambaia fechada”. O pioneiro tinha três filhos, criava gado e possuía uma olaria, cuja produção era escoada para a vizinha Muribeca e para Aquidabã, cidade a 25 quilômetros de distância.

Em 1933, segundo o neto do primeiro morador, o povoado tinha oito casas.

Não se sabe ao certo quando o local ganhou a denominação que preserva até hoje. Há quem diga que a tragédia da donzela Guilhermina foi um fato real; outros acreditam ser uma lenda. No entanto, a revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, número 21, volume 16, publicada em 1955, faz referência ao caso, de acordo com a pesquisa da historiadora:

“Há em Propriá [2] um lugarejo onde um mancebo, segundo dizem, loucamente apaixonado por uma famosa donzela que por ele não sentia a mesma afeição, num acesso de loucura, assassinou-a para que não desposasse o seu preferido. Existem visionários naquelas paragens que afirmam ter visto em horas perdidas da noite, vagando nos arredores, um vulto de mulher, vestida de branco, com longos cabelos, que lhes descem até os pés, soltos aos ombros. Ela canta uns versos que enternecem e fazem derramar lágrimas a quem os escuta”.

Segundo a tradição da época, a donzela foi sepultada no quintal de casa, onde, posteriormente, seria construída a igreja do povoado. Em frente ao suposto túmulo, colocaram uma cruz, considerada sagrada pela população. Lá, moradores e peregrinos depositavam flores, faziam pedidos, agradeciam milagres e pagavam promessas.

Ana ressalta que a crença se fortaleceu tanto que a padroeira do povoado virou Santa Guilhermina [3], o que não foi reconhecido pela Igreja Católica, mais precisamente pela Diocese de Propriá. A rejeição chegou ao ponto de o pároco do povoado retirar a imagem da protetora, em 2001, e consagrar o templo à Nossa Senhora da Apresentação, quebrando a tradição religiosa do povo e contribuindo para acentuada redução das romarias para visitar Guilhermina.

A festa em homenagem a santa imposta pelo padre, no entanto, permaneceu no dia dois de fevereiro, data em que a donzela teria sido assassinada.

A ESTRADA E A CONSTRUTORA

A rodovia BR-101, oficialmente denominada Governador Mário Covas, começa no município de Touros, no Rio Grande do Norte, e termina em São José do Norte, no Rio Grande do Sul. São 4.389 quilômetros de extensão – outros 261 km são compartilhados com outras estradas federais – e corta 11 estados [4]. É o segundo principal eixo rodoviários do país e foi construído entre as décadas de 1950 e 1970.

O trecho que atravessa Sergipe foi construído, de acordo com Ana Luzia, pela Companhia Metropolitana de Construções (CMC) entre 1968 e 1970. A construtora obteve da prefeitura de Malhada dos Bois incentivos fiscais. Na prática, um abatimento de 30% de impostos sobre serviços e sobre o faturamento da empresa com a obra.

Na tese “A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985”, Pedro Henrique Pedreira Campos, doutor em história social e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) revela que a construtora carioca mantinha fortes relações com militares e grupos multinacionais que participaram do golpe civil-militar de 1964.

A empresa presidida por Haroldo Cecil Poland, ativo colaborador do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) [5] e homem de confiança do general Golbery do Couto e Silva, foi fundada em 1933. A CMC participou da construção de trechos das rodovias Imigrantes, Rio-São Paulo, São Paulo-Curitiba, Rio-Bahia, do aeroporto de Curitiba, de Brasília e de diversas barragens e oleodutos. E oscilava entre o sexto e o nono lugar no ranking das maiores empreiteiras do país.

Em 1969, Poland teria passado o controle e a liderança da CMC para Maurício Nunes Alencar e Frederico Gomes da Silva. Maurício e dois de seus irmãos (Marcelo e Mário), segundo o ex-proprietário do jornal Última Hora, Samuel Weiner, cultivaram lucrativas ligações com multinacionais e com militares golpistas.

Apesar das ligações, a empresa faliu em 1974, devido ao atrasos de pagamentos, endividamento e recusa de os banqueiros rolarem as dívidas da CMC. A causa da bancarrota teria sido má administração, mas outra versão dá conta que a ruína foi motivada por conta de rompimento político.

Um dos irmãos Alencar, Marcelo, se elegeu senador pelo MDB, partido de oposição aos militares. Cassado pelo ato institucional número 5, o político, posteriormente, ingressou no PDT de Leonel Brizola e foi eleito prefeito (duas vezes) do Rio de Janeiro e governador do estado.

A PROSTITUIÇÃO
Bar prostíbulo existente no povoado, em 2001. Foto: Ana Luzia Santos/monografia

Em 1969 os prostíbulos começaram a se instalar no povoado de Cruz da Donzela. Donos de bares rapidamente perceberam a oportunidade de ganhar mais dinheiro, graças ao aumento do movimento de caminhoneiros e a chegada de mulheres de outros estados em busca de uma forma de sobreviver. Muitas delas tinham sofrido decepções amorosas ou foram expulsas de casa após terem perdido a virgindade. Logo, as biroscas passaram a funcionar também como bordéis.

Dois anos depois, com a rodovia em pleno funcionamento, as casas de prostituição viveram o que Ana Luzia classifica como “período áureo”. Surgiram novos estabelecimentos, principalmente restaurantes e o pequeno povoado, formado por famílias locais por décadas, registrou considerável crescimento demográfico e econômico.

Durante a fase de grandeza, a fama da localidade ultrapassou os limites do estado:

“Essa Cruz da Donzela é falada até na divisa do Brasil. Esses cabaré (sic) daqui é falado (…). O Paraguai sabe que aqui tem brega. Os caminhoneiros vai (sic) longe levar a notícia” – disse a cozinheira Marial Eulina de Souza, em entrevista para a então estudante de história, em dezembro de 2001.

O aumento de movimento também trouxe consigo misérias. Dentre elas, o aumento do número de atropelamentos. Em função das casas de prostituição estarem à beira da rodovia e muitas pessoas saírem de lá bêbadas, acidentes se multiplicavam.

A historiadora constatou ainda que no fórum de Cedro de São João, distante 20 quilômetros, e em Malhada dos Bois, os casos de agressões e assassinatos cresceram exponencialmente.

A profusão de prostíbulos teve outras consequências: preconceito, discriminação e exclusão social.

“Ninguém mais via o lado alegre e bonito do povoado. Só o lado feio da prostituição” – lembrou Maria Nivalda Gomes Bezerra, em entrevista citada na monografia.

Para minimizar os problemas, os moradores dividiram a localidade extraoficialmente. A margem direita da BR-101, sentido norte-sul, a mesmo do totem de alvenaria, começou a ser chamada de “verdadeiro povoado de Cruz da Donzela”. E a margem esquerda, onde os prostíbulos se concentravam, virou “Entroncamento”. (Continua)

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Notas de rodapé

[1]  Nome próprio de um lugar.

[2]  No século XIX (19), Malhada dos Bois fazia parte do território da Freguesia de Santo Antônio do Urubu de Baixo, hoje Propriá. Em 1872, passou a integrar a Freguesia de Aquidabã. Em 1926, se transformou em povoado de Muribeca. E, em 1953, se emancipou.

[3] A santa escolhida como padroeira por ter o mesmo nome da donzela foi uma princesa da Boêmia, região que hoje se situa entre a Alemanha, Polônia, Morávia (província da República Tcheca) e Áustria. No século XIII (13), a princesa foi honrada como santa, depois declarada herege e postumamente queimada pela Inquisição católica. O túmulo de Guilhermina, em Milão, na Itália, foi destruído pelos inquisidores. Os seguidores da santa, os Guilhermitas, foram exterminados em fogueiras. Eles acreditavam que ela era uma reencarnação feminina do Espírito Santo.

[4] Oficialmente corta 12 estados, mas o trecho do Paraná não existe. O acesso rodoviário que compreenderia a rota no estado é feito passando pelas rodovias BR-116 e BR-376 até Guaruva (SC). Fonte: https://via101.com.br/rodovia-br-101/

[5]  Núcleo de conspiração golpista de extrema direita, com agenda política própria, voltado para derrubar o presidente João Goulart. Ao lado dos militares, esses empresários protagonizaram o processo de ocupação da estrutura de estado após o golpe de 1964.

–*–*–

Para ler a série completa

A rotina nos bordéis de Cruz da Donzela

Mulheres e dívidas trocadas em bordéis

Creuzona e os últimos cabarés

O garanhão, o aluguel de filhas e a ponte de Propriá 

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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