A varanda nagô de Pai Siri

São necessários pelo menos 15 dias para preparar o ritual. Pai Siri, cujo nome de batismo é Paulo Roberto, começa a preparar o amaci [1], banho de ervas maceradas e misturadas com água pura. A lavagem serve para fortalecer a conexão do adepto do candomblé com o orixá de cabeça e para fazer uma “limpeza” espiritual. Durante os preparativos são necessários pelo menos três dias de preceitos – regras relativas às oferendas -, o que inclui seguir não consumir bebidas alcoólicas.

Na véspera do Dois de Julho, data em que se celebra a Independência do Brasil na Bahia, Siri busca folhas de palmeiras que serão usadas na ornamentação da fachada e da calçada do terreiro Mãe Maria Nagô. Enquanto isso, seus familiares inflam bolas de encher e preparam as bandeiras que serão penduradas em um cordão de uma ponta a outra da avenida Manoel Vitorino.

Ornamentação de Pai Siri para homenagear os caboclos. Foto: Paulo Oliveira

Por volta das quatro horas da manhã do dia do cortejo, a família acorda para montar a varanda onde a imagens de caboclos (Boiadeiro, Martim Pescador, Sultão das Matas, Pena Branca e Sete Flechas) e de pretos velhos (Pai Joaquim e Vovó Maria Conga) ficarão durante a passagem do cortejo da Cabocla, que representa o povo que guerreou e expulsou definitivamente os  portugueses do Brasil.

Importante lembrar que São Félix fazia parte de Cachoeira. Após a emancipação sanfelixta, em 1890, foi decidido que o casal de caboclos se separaria. Catarina Paraguaçu, como foi batizada a imagem da guerreira, foi levada para o município mais novo. Tupinambá ficou em Cachoeira. Eles, no entanto, se reencontram entre os dias 25 de junho e 2 de julho, que marcam o período histórico ente o início do movimento de Independência na Bahia e a expulsão dos portugueses, em 1823.

A tradição foi criada por Maria Nagô, filha espiritual da orixá Oxum e do caboclo Martim Pescador. No início, ela comprava flores, perfumes e arroz para jogar na passagem dos caboclos do Dois de julho. Depois, formou um terno de índios [2] infantil. Por fim, passou a enfeitar a calçada. Quando Maria morreu em 1981, a missão de decorar a entrada da Casa, acender os fogos e fazer as honras para turistas e políticos passou para o filho Siri e para a mulher dele, a ialorixá Amadoci.

A varanda, que começa a ser desmontada logo após o último carro do cortejo passar, é uma das iniciativas que demonstram ser os caboclos não apenas símbolos cívicos, mas também importantes entidades cultuadas nos terreiros de candomblé de nação banto [3]. Esses espíritos – e não orixás – possuem habilidades para conversar, rezar e utilizar folhagens para curar quem necessita [4].

Muitas pessoas acreditam existir algo espiritual na imagem da nossa Cabocla. Quando vou trocar a vestimenta dela e ornamentar o carro dela, encontro papéis com pedidos diversos. Eu que sou do candomblé, adorno a carruagem com frutas, algo que se oferece nos terreiros aos caboclos – revelou Hugo Costa, agente de turismo municipal, responsável pela decoração do evento, incluindo os prédios públicos.

Makota Mama é responsável por ornamentar  o guerreiro Tupinambá. Foto: Paulo Oliveira

Outros marcantes exemplos de devoção são o zelo pelo caboclo de Cachoeira, visitante ilustre da festa de São Félix, e o afoxé Omin-Ladé, tema da reportagem a seguir.

Makota [5] Mama, acompanhada da ebomi [6] Metania e de um ogã [7] foram chamados por vereadores cachoeirenses para zelar pela imagem do guerreiro do município. Os três integram o Terreiro Guarani de Oxóssi. O vínculo da roça comandada pela mameto-de-inquice [8] Madalena é antigo. Anualmente, em abril, Tupinambá é levado para participar da festa para os caboclos, no Alto do Rosarinho.

Makota Mama e seus acompanhantes retiraram as flores e folhagens murchas do vistoso carro do guerreiro. Folhas novas de palmeiras foram trançadas e, assim como flores e frutas, serviram de adorno. O chão do caramanchão da Praça Dois de Julho foi varrido. Pouco mais de uma hora depois, tudo estava pronto. Zelar pelo caboclo é uma honra para o trio.

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Notas de rodapé

[1] O amaci é um banho de ervas maceradas, misturadas com água pura de mina, cachoeira,ou de chuva. O banho serve para fortalecer a conexão do adepto do candomblé com seu orixá de cabeça e para fazer uma “limpeza” espiritual. Antes do banho é necessário fazer três dias de preceitos- regras relativas às oferendas e comidas que são dadas para os Orixás. Além disso, a pessoa tem que se preparar física e mentalmente para o trabalho, evitando bebida alcóolica , por exemplo.

[2] Pequeno grupo formado por pessoas vestidas como indígenas, acompanhado por músicos.

[3] A nação de candomblé banto se desenvolveu entre escravizados trazidos da África Central para o Brasil. Essa região compreende Angola, Congo e Gabão.

[4] A definição é de Makota Mama, do terreiro Guarani de Oxóssi. de Cachoeira, cidade separada de São Félix pelos 365 metros da ponte sobre o rio Paraguaçu

[5] É aquela que toma conta, que dirige tudo no terreiro. É uma assessora especial da mãe de santo. Ela cuida de um orixá que a escolheu e zela pelos demais. Também é responsável pelo terreiro, pela preparação dos ritos e de alimentos e pelo bem-estar dos frequentadores.

[6]  Adepto do candomblé que já cumpriu o período de iniciação (iaô) na feitura de santo.

[7]  É o nome genérico para diversas funções masculinas.É a pessoa escolhida por uma divindade ancestral. Ele não entra em transe. Há vários tipos de ogãs: de couro (aquele que cuida dos atabaques), de faca (responsável pelos sacrifício de animais) etc.

[8] Mãe de santo no candomblé banto.

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Legenda da foto principal: Fachada do terreiro Maria Nagô, ornamentada para saudar os caboclos. Crédito: Paulo Oliveira

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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