A Cabocla de São Félix

Você deve estar se perguntando porque deve ler uma reportagem sobre o Dois de Julho oito dias depois dos festejos do bicentenário da Independência do Brasil na Bahia. Existem muitos motivos, que passo a enumerar.

  1. É um fato histórico pouco conhecido no Brasil
  2. Porque 13 cidades [1] baianas celebram a data, mas ninguém sabe disso. No máximo, pensam que a comemoração só é feita em Salvador, de onde os portugueses foram escorraçados por um batalhão do povo, formado por negros, pardos e até mulheres, feito que nossos governantes subestimam e menosprezam até hoje. Afinal de contas, não querem colocar ideias libertadoras e revolucionárias na mente das pessoas
  3. Porque escolhemos São Félix, onde a representação do povo é feita por uma guerreira tupinambá e não por um casal de caboclos.
  4. Porque a cabocla e os caboclos não são meras representações cívicas, eles também possuem relevante conotação religiosa.
  5. Porque, além de Catarina Paraguaçu, nome dado à imagem sanfelixtas, uma heroína de carne e osso saiu de lá para combater os portugueses.

Podia citar muitos outros, mas paremos por aqui para você começar a leitura logo.

São Félix era uma aldeia tupinambá, com cerca de 200 indígenas e duas dezenas de palhoças, em 1534. Naquele ano, os portugueses chegaram, escravizaram os nativos, desmataram o que puderam, venderam a madeira e iniciaram as plantações de cana e a construção de engenhos. Os caboclos se revoltaram, atacaram as plantações e povoados. A guerrilha durou décadas.

A localidade pertencia à vila de Cachoeira. E ainda estava nessa condição quando, em 25 de junho de 1822, os cachoeirenses manifestaram apoio ao movimento de independência articulado por Dom Pedro I. Isso irrita o  tenente-coronel Inácio Luís Madeira de Melo, comandante das tropas portuguesas concentradas na província da Bahia.

O militar enviou uma embarcação para atacar a localidade, mas ela foi cercada e capturada pelos brasileiros. A ação motivou os baianos a formarem um batalhão de voluntários. Treze mil foram para o Recôncavo, dentre eles Maria Quitéria. De lá, as tropas nacionais marcharam para cercar Salvador. Muitas batalhas foram travadas, principalmente na região de Pirajá. No dia 2 de julho de 1823, os portugueses foram expulsos definitivamente.

O caboclo de Cachoeira e a cabocla de São Félix no caramanchão da Praça 2 de Julho. Foto: Paulo Oliveira

No ano seguinte, os baianos começaram a festejar a data. As imagens de um casal de caboclos foram utilizadas para representar a participação do povo nas batalhas. Após a emancipação de São Félix, para evitar maiores problemas foi feito um acordo jurídico, segundo Hugo Costa, agente de turismo e funcionário da Casa de Cultura Américo Simas. A cabocla foi levada para a outra margem do rio Paraguaçu. O caboclo ficou em Cachoeira.

Os dois só se encontram no período entre 25 de junho e 2 de julho. Primeiro, ela vai até Cachoeira para festejar o início da revolta. Fica lá até o dia 27 e retorna, acompanhado do Caboclo, convidado especial do Dia da Independência, em São Félix.

O TEMPO VOA

Damos um salto no tempo e paramos em 2023, em uma das salas da biblioteca municipal. É lá que Hugo nos conta como se tornou zelador da imagem da Cabocla, que recebeu o nome de Catarina Paraguaçu em data desconhecida para homenagear a guerreira tupinambá, nascida em Itaparica no século XVI e mulher do português Diogo Álvares Correia, o Caramuru.

Hugo zela pela cabocla. Foto: Paulo Oliveira

O monitor de turismo sucedeu a Beatriz da Conceição, ex-diretora de cultura que fazia questão atribuir a si própria essa missão. A substituição ocorreu porque a servidora se aposentou.

“Comecei a trabalhar há dois anos no setor de turismo e cultura da prefeitura. A diretora do departamento passou para mim a função de zelar por Catarina, de preservar esse símbolo tão importante. Para cumprir essa missão é preciso ter conhecimentos culturais e religiosos porque, além de ser um símbolo cívico, a cabocla é um importante ícone religioso” – contou.

Adepto do candomblé, o agente explicou que os caboclos são cultuados pela nação de candomblé banto. A fé nela é grande, tanto que quando vai arrumá-la para o desfilo, ele encontra bilhetes com pedidos diversos.

Não é todo ano, porém, que a prefeitura tem verba para trocar as vestes da guerreira. Esse ano teve. As peças com penachos verdes e amarelos custaram R$ 2.500 e foram confeccionados por um artesão soteropolitano. Ele levou uma semana para produzir a roupa, colocada na imagem na madrugada do dia 2. Hugo prefere fazer a mudança pouco antes do dia raiar para que a população e os visitantes se surpreendam com a ornamentação.

“Todo mundo estava pensando que ela ia sair de azul e branco como no ano passado” – disse.

Tanto os trajes da cabocla quanto a decoração da rua e dos prédios públicos são responsabilidade dele, que tem de seguir o tema definido pela secretaria de Educação. Este ano foi “Rio Paraguaçu: de caminho da resistência a vetor de turismo”.  Detentor de uma autonomia relativa, subordinado a atual diretora de cultura Elba Matos, Hugo decidiu as cores da roupa de Catarina, levando em conta o bicentenário da Independência na Bahia.

Os gestores da área cultural informaram que a escultura da cabocla foi feita em São Félix, na década de 1960. No entanto, não sabem quem foi o autor.

“A gente não tem registro de quem fez. Só se sabe que era um santeiro de igreja católica porque ela tem cabeça de santo, com um furo no meio” – acrescentou Hugo.

Outra informação que circula é que esta seria a segunda imagem da história da cidade. Embora bem cuidada, a estátua já sofreu danos e pequenas rachaduras por conta do trepidar da carroceria que a transporta durante o cortejo. Por muito tempo, a imagem não passou por restauro. Ao ponto de as diversas camadas de tinta mudarem a cor original. Nos últimos anos, mesmo com cuidados redobrados, há pequenas marcas de desgaste.

Catarina Paraguaçu é a única cabocla que carrega uma lança em posição de luta dentre todas que desfilam no dia da Independência, segundo a jornalista e doutora em antropologia Cleidiana Ramos.

A COMEMORAÇÃO

Ao contrário do que ocorre na capital, a celebração do Dois de Julho em São Félix começa com uma solenidade na Câmara de Vereadores, à tarde. É a parte mais enfadonha. Há discursos; distribuição de título honoris de uma universidade americana, dirigida por um baiano; apresentação dos músicos da Sociedade Filarmônica União Sanfelixtas e narração de episódios históricos.

Os convidados são recepcionados do lado de fora da Câmara pelo grupo de samba de roda Filhos de Nagô e duas jovens vestidas de baianas. Uma das moças aproveita para dançar quando começa a rarear a chegada de prefeitos, militares, líderes religiosos e representantes de famílias tradicionais.

A cerimônia começou às 13h30 e se arrastou por duas horas e meia. De lá, os participantes e a os músicos seguem para a praça onde estão as carrocerias que levam o casal de caboclos. O locutor oficial ganha tempo até as autoridades chegarem e se espremerem debaixo de um toldo a poucos metros do caramanchão das imagens da Cabocla e do Caboclo de Cachoeira.

Tiro de Guerra. Foto: Paulo Oliveira

A estrutura do desfile, após a passagem do Tiro de Guerra [2], lembra a de uma escola de samba. Tem o enredo, o Paraguaçu, e alas com subtemas: os afluentes do rio, o povoamento das margens, o povo na luta pela independência, o desenvolvimento econômico, a decadência do comércio e da indústria e a homenagem às cidades da Baía de Todos os Santos.

Nas alas, com direito a alegorias e adereços, desfilam estudantes de várias escolas da região. Uma das mais bonitas era formada por alunos do Grupo Escolar Deiro Lafundes, com chapéus em forma de navios.

O cortejo também tem destaques que desfilam em carros abertos ou a pé. Este ano foram quatro:

Dona Cadu. Foto: Divulgação/Prefeitura

Ricardina Pereira da Silva, conhecida como dona Cadu, 103 anos. Ceramista, sambadeira, rezadeira e líder comunitária de origem afro-indígena, reconhecida como doutora honoris causa pela Universidade Federal do Recôncavo (UFRB). Nascida em São Félix, atualmente ela mora no distrito de Coqueiro, em Maragogipe, a 15 quilômetros da cidade natal.

Tikal Babado. Foto: Paulo Oliveira

Tikal Babado nasceu em São Félix e sempre lutou contra o preconceito e pelo direito de usar roupas consideradas extravagantes e impróprias. Performático, foi personagem do fotolivro digital Armadura Queer: amor, babado e a subjetividade de seus corpos adornados e da dissertação ChoQueer de monstro: Tikal Babado e Pai Amor e os modos de sentir e perceber suas vestes em Cachoeira -BA. Os trabalhos foram produzidos pela ativista, defensora de direitos LGBTQIA+ e mestre em comunicação Baga de Bagaceira Souza Campos.

Grupo cultural. Foto: Paulo Oliveira

Baianas de tabuinhas. O primeiro grupo foi criado em uma fábrica de charuto, no final da década de 1950. Desde então as baianas do recôncavo se apresentam com roupas típicas, dançando descalças e tocando tabuinhas de madeira no ritmo do samba de roda.

Ednaldo da Conceição da Silva, o Dino, 59, bicampeão brasileiro e presidente da Associação Sanfelixta de Canoagem.

A comparação com as escolas de samba não procede no item bateria. Durante o cortejo oito fanfarras, bandas e filarmônicas nativas e de diferentes municípios (Catu, Guandu, Amélia Rodrigues, Conceição de Feira, Cachoeira) se apresentam. Cada uma com seu repertório, variando entre Derrama senhor sobre nós o seu amor, Hino de São Félix e músicas de Roberto Carlos. A distância entre elas não permite que o evento se transforme em uma balbúrdia musical.

A parte final tem uma relação maior com a religiosidade. O grupo folclórico Puxada de rede tem 10 componentes, incluindo o tocador de búzios, pescadores e Oxum, rainha da água doce. As crianças do Afoxé Omin-Ladé, vestidas de indígenas, saúdam os caboclos do terreiro Mãe Nagô, cujas imagens são colocadas na frente da Casa ornamentada. As carrocerias do Caboclo Tupinambá e da Cabocla Catarina fecham o desfile e são seguidos pelo público.

Cerca de 4 mil pessoas participaram da festa. Foto: Paulo Oliveira

A celebração termina na Câmara de Vereadores, após percurso de 750 metros pela avenida Manoel Vitorino e a rua J.J. Seabra. As bandas contornam dois quarteirões e vão para o prédio na prefeitura, onde tocarão mais um pouco. Próximo da ponte Pedro II, o público aproveita para comer nas barracas de cachorro-quente, pastel e nos carrinhos e churros e pipocas. Os músicos de Cachoeira aproveitam para beber água e comer sanduíches, pois ainda terão que escoltar o Caboclo na volta para a Câmara e antiga cadeia da cidade vizinha. A Cabocla é levada para a Casa de Cultura, onde permanecerá até o próximo ano. A lua cheia iluminava o céu, quando fogos de artifício encerraram as festividades.

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Nota de rodapé

[1] Os municípios são: Aratuípe, Cachoeira, Caetité, Itaparica, Itacaré, Jaguaribe, Maragogipe, Salinas de Margarida, Salvador, Santo Amaro, São Félix, Saubara e Valença.

[2]  As seções de Tiro de Guerra são órgãos do serviço militar que, em parceria com prefeituras, formam reservistas denominados atiradores. Eles são estruturados para que o convocado possa conciliar a instrução militar com o trabalho ou estudo.

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Legenda da foto principal: A estátua da cabocla de São Félix foi feita na década de 1960. Foto: Paulo Oliveira

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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