No sertão da Bahia, povoado de Olhos D’Água, município de Tucano, Dona Florência de Jesus, na segunda década do nosso século XXI, rezava quem a procurava com “olhado”, “quebranto” e principalmente o “mal do ar”, capaz, segundo a sertaneja, de provocar congestão, dormências, dor de cabeça e outros problemas. Dona Florência (e outros rezadores) é herdeira de uma tradição que remonta a Antiguidade.
Nas “Cartas Paulinas” do Novo Testamento, São Paulo se referia como uma tradição de sua época os perigos existentes no ar onde habitavam os “espíritos do mal” a espalhar seus malefícios nas pessoas. Outras moléstias como o “cobreiro” e a “erisipela” já eram conhecidas e tratadas por assírios e egípcios mil anos antes de Cristo. Mas, ainda hoje é possível encontrar benzedores no Brasil que se dizem capazes de livrar as pessoas desses problemas.
O e-book “Com dois te botaram/com três eu te tiro – Um estudo sobre religiosidade popular, suas rezas, benditos e excelências”, de Helenita Monte de Hollanda e Biaggio Talento, procura identificar no mundo contemporâneo as reminiscências da prática milenar das benzeduras dentro da “medicina popular” que surgiu na Antiguidade, absorveu e adaptou rezas no Cristianismo, foi tolerada num período da Idade Média; e em outro – que se estendeu até a Idade Moderna – confundida com bruxaria.
A capa do livro digital é do renomado xilogravurista baiano Pita Paiva, cujo perfil foi publicado em Meus Sertões. Para ler, clique aqui.
Dona Venerana de Souza, 65, de Mucugê (BA). Divulgação
O início da pesquisa que resultou no livro foi a coleta de informações a campo feito por Helenita, potiguar, médica de formação, psicanalista e pesquisadora da cultura popular brasileira, autora do livro “Como diz o ditado…”.
As entrevistas com rezadoras e rezadores ganharam impulso quando ela trabalhou como médica da família em cinco municípios baianos: Mucugê, na Chapada Diamantina, Xique-Xique, na região do Rio São Francisco, Tucano, no sertão, Maragogipe e São Félix, no Recôncavo baiano.
Primeiro ela anotava tudo e registrava com um gravador cassete. Depois passou a gravar as entrevistas com um Ipad. Ao longo de dois anos (2011 e 2012) trabalhando e morando nessas cidades, acumulou um bom acervo de histórias, lendas, benzeduras, rezas, benditos e excelências. Ao conhecer de perto a vida e a religiosidade do sertanejo foi possível penetrar um pouco na sua alma.
A pesquisa que seria usada na produção de livro, abriu espaço antes do material escrito, para que ela e o companheiro, o jornalista baiano Biaggio Talento, criassem o Canal Cultura Popular Brasileira no You Tube, no qual parte dessa pesquisa foi transformada em vídeos com o objetivo, não só divulgar, mas preservar essa rica vertente da cultura popular brasileira.
O canal é um sucesso. Alcançou mais de 3,7 milhões de visualizações até junho de 2023. E, o mais importante, atraiu uma nova geração de rezadores e rezadoras a mostrar as rezas, benditos e excelências que conhecem.
Com isso, a pesquisa se expandiu presencialmente e de forma virtual a vários estados além da Bahia: Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí de onde benzedores e benzedoras enviaram suas contribuições.
A rezadeira potiguar Chiquinha Ferreira, 111 anos. Divulgação
“A astrolatria é um dos primeiros rituais das tribos primitivas do mundo. E os cultos à Lua e ao Sol, se destacavam nesse período em que os humanos começavam a conhecer os astros. É incrível que um culto milenar de povos tão distantes esteja presente no Brasil do século XXI”, diz Helenita, citando um dos mais afamados rezadores que conheceu em Tucano-BA, em 2012, Pedro Santinho. “Entre suas rezas incluía o Sol e a Lua para curar a bicheira nos animais”.
Outra, Veneranda Ferreira de Souza, de Mucugê-BA, tirava “friage” com ajuda dos astros: “Deus é o Sol, Deus é a Lua da melhor claridade, de sereno e Sol da melhor afinidade. Eu rezo com o poder de Deus e da Virgem Maria”. O tempo, os animais, os elementos da natureza. Tudo pode ser “controlado” pelas benzeduras ou encantamentos.
O livro cita, entre outras, uma fórmula para se apagar incêndios recolhida na década de 1940 na cidade paulista de São Luiz de Paraitinga. Pega-se um tição do fogo de casa e assopra até surgir labareda fazendo com que a chama entorte para o lado do incêndio na mata. O rezador garantia que os dois fogos se encontravam e o de fora se extinguia. A explicação era de que “o fogo da casa é batizado, por isso acaba com o outro que é pagão”.
Para Talento magia, religião e ciência tem convivido ao longo da história e permanecem trilhando vias paralelas até os dias de hoje. “Como escreveu o antropólogo Claude Lévi-Strauss, magia e ciência são modos de conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos. A ciência acerta mais que a magia na medida que esta às vezes também tem êxito. Por outro lado, a ciência pode falhar. Deve ser por isso que alguns astronautas antes de embarcar num foguete para o espaço, realizam rituais supersticiosos”.
A “Reza para talhar sangue” também conhecido como “Tomar o sangue de palavra” é exemplo de uma sobrevivência que dura mais de 300 anos. Os pesquisadores colheram com o rezador Pedro Santinho, em 2012:
“Sangue tu tem com ti/ Como Jesus Cristo teve em si/Sangue tu tem nas veias/Como Jesus Cristo teve na sua ceia,/ Sangue não vem tão forte,/ Como Jesus Cristo teve na hora de sua morte./ Amém.”
Posteriormente, encontraram versão muito semelhante, em latim, da mesma reza citada em livro do século XVIII como revelada por um feiticeiro julgado pela Inquisição em Portugal:
“Sanguis mane in te;/ Sicut Christus fecit in se;/ Sanguis mane in tua vena;/ Sicut Christus in sua paena;/ Sanguis mane fixus;/ Sicut Christus fuit crucifixus.” (Tradução: “Sangue pela manhã em ti;/ Como Cristo fez em si mesmo;/ Sangue pela manhã em tua veia;/ Como Cristo em sua dor;/ Sangue fixado pela manhã;/ Como Cristo foi crucificado.”)
“O poder da oralidade é imenso e explica como essas rezas chegaram até os nossos dias”, assinalou Helenita. O livro, que marca a segunda parceria entre Helenita e Biaggio (a primeira foi “Basílicas e Capelinhas” já em 4a. edição) sai, por enquanto, em formato Ebook Amazon, trazendo mais de 300 rezas e orações, além de inúmeros benditos e excelências que mostram a força da religiosidade popular brasileira.
Pedro Santinho, rezador famoso. Divulgação
Eis os exemplos de cinco das 300 rezas que constam no livro:
Para curar azia
“Indo eu por uma carreirinha,/ Encontrei a uma portinha/ A Virgem Maria/ Com seus livrinhos na mão:/ Num lia/ Noutro escrevia / Noutro talhava a azia.
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Para olhado e quebranto
“Com dois deitaram/ Com três eu tiro,/ Com o poder de Deus/ E da Virgem Maria/ Tiro esse quebranto/ E esse olhado./ O que é que tem (nome da pessoa)?/ Tem quebranto, tem olhado?/ Eu tiro com o poder/ De Deus e da Virgem Maria.”
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Para erispela
“Eu vinha por um caminho,/ Encontrei Nossa Senhora,/ Perguntei à Virgem Maria:/ – Como sararia?/ – Com reza./ Vermelha é bicha fera que/ Dá no osso, dá na carne,/ Dá na pele./ Assim como tu é uma bicha fera/ Que dá no osso, dá na carne,/ Dá na pele, com os poderes/ De Deus, da Virgem Maria eu/ Te corto o pescoço.”
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Para engasgo
“Senhor São Brás/ Disse a seu moço/ Que subisse/ Ou que descesse/A espinha do pescoço.”
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Para espinhela caída
“Seja em nome do Senhor/ Este seu mal curado/ Espinhela caída/ e ventre derrubado/ Eu te ergo, curo e saro/ Fica-te, espinhela, em pé!”
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Serviço: O e-book está à venda no site da Amazon por R$ 45. Ilustração:
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