‘Eu vi o peso do mundo nas costas de uma mulher’

As dores e esperanças das mães que acompanham os filhos no tratamento contra o câncer

São 6 horas da manhã de uma segunda-feira, em Recife. O calor já é intenso. Desde muito cedo, um grupo de mulheres aguarda que seus filhos sejam atendidos na pediatria do Hospital do Câncer de Pernambuco (HCP). Elas vêm de diversos lugares da Região Metropolitana de Recife, Zona da Mata, do sertão pernambucano e de outros estados [1]. Em comum, elas lutam pelo mesmo propósito: a vida dos filhos.

Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), no Brasil, assim como em países desenvolvidos, o câncer já representa a primeira causa de morte por doenças em crianças e adolescentes. A projeção para o triênio 2023 a 2025 é que aproximadamente oito mil novos casos de câncer infantil serão registrados no Brasil.

Diante de um diagnóstico de câncer infantojuvenil, as mães precisam se adaptar a uma nova realidade para poderem acompanhar o tratamento das crianças e adolescentes. Entretanto, elas devem aceitar que o mundo não se adapta junto com elas. Suas vidas, cercadas de dificuldades e angústias, fazem parte de um universo particular, como uma placenta invisível que só quem está dentro pode compreender.

A diarista Tatiane Ferreira, 36 anos, sempre trabalhou para sustentar os três filhos. Ela teve sua rotina completamente alterada quando, em 2017, seu filho mais velho, com 16 anos na época, foi diagnosticado com Sarcoma de Ewing, um tipo de câncer que atinge os ossos e tecidos moles, como músculos e cartilagem.

Receber a notícia é o primeiro choque, conta Luciana dos Santos, 47, mãe de Christopher, 23.

“Quando o médico disse o resultado, eu procurei um buraquinho para me ‘ensocar’, mas não encontrei”.

Com seu jeito ativo, a moradora de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, distante 51 km da capital pernambucana, revela que recorreu a fé para suportar a situação:

“É muito difícil, mas Jesus é grande, Jesus está conosco”.

Vinda de Frei Miguelinho, cidade pernambucana a 145 km de Recife, Márcia, de 37 anos, acompanha o filho João Victor, de 18. Ela diz como foi impactante saber do diagnóstico.

“Foi um tiro na ‘titela’ (no peito). Só voltei a prestar depois de um mês” – disse com voz rouca, segundo ela, em consequência das emoções que passou.

Para Tatiane não foi diferente:

“Foi como se o chão tivesse aberto, e tudo estivesse desabando” – comparou.

Ela descobriu após uma ressonância, depois de muitas idas e vindas na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), em Surubim, onde aplicavam injeções e receitavam remédios que não resolviam as dores lombares que seu filho, Anderson, sentia. Para sua tristeza, a doença era a mesma que levou o pai de seus três filhos anos antes.

Tatiane não quis dar a notícia para o filho, que só soube o que estava acontecendo quando foi para o HCP fazer a biópsia e constatou que ele tinha um tumor maligno.

“Por ter perdido o pai deles, eu não sabia o que dizer” – explicou.

O tratamento e tudo o que ele traz consigo é o segundo choque. As viagens para quem mora longe, as horas à espera de atendimento e as ‘furadas’ nas veias diárias fazem parte dessa nova realidade.

Sair de Surubim, a 123 quilômetros de distância da capital pernambucana, virou rotina para os dois. Toda semana mãe e filho seguiam no veículo disponibilizado pela prefeitura para o hospital, em Recife.

PERDA DE EMPREGO E IMPROVISAÇÕES

Para garantirem o tratamento dos filhos, muitas mães abandonam seus empregos. Segundo Tatiane, essa foi a maior dificuldade. Afinal, como ela poderia trabalhar ao mesmo tempo que cuida do filho? A vida tornou-se mais valiosa e mais cara; o tempo, mais escasso. Como não pode mais trabalhar em dia de semana, ela faz isso aos domingos em vez de descansar para estar bem para enfrentar mais uma semana de tratamento.

Luciana enfrenta a mesma situação. Ela não vai poder trabalhar de diarista esta semana, O único dinheiro que vai conseguir virá de uma galinha que ela vai matar no sábado. Já para Madalena, 54 anos, que sempre acompanha o filho Lucas, 18 anos, a solução foi vender doces e salgados ao abandonar o cargo de professora. Ela, que sempre viaja acordada durante os 58 quilômetros entre Carpina e Recife, dormiu dessa vez, por estar cansada por causa das encomendas de ovos para a Páscoa.

“A gente tem que se virar, não é?” – se conforma.

A diretora da Organização Não Governamental (ONG) Por Amor de Muitos, Luceni Monteiro, tenta mitigar os problemas dessas famílias, através de ações, como distribuição de alimentos e atendimento das demais necessidades dos pacientes. A ONG atua há quatro anos.

Segundo tia Lu, como é conhecida, nenhuma das famílias está livre desse sofrimento. Apesar de a maior parte dos pacientes virem de longe, do interior de Pernambuco e até de outros estados, como Alagoas, Bahia e Paraíba, não dá para esquecer os pacientes recifenses. Os moradores da capital também sofrem com o deslocamento, visto que devem arcar com as despesas de transporte.

“A mãe desempregada não tem como comprar comida e remédio. Imagina pagar Uber. Temos até um grupo no WhatsApp de motoristas voluntários de aplicativo para ajudar essas famílias, mas nem sempre é o suficiente” – expõe Tia Lu.

OS QUE FICAM

A terceira preocupação é com os filhos que ficam em casa, muitas vezes sendo cuidados por outros familiares. O pensamento das mães viaja todos os quilômetros percorridos de volta velozmente.

“Deixar os pequenos em casa dói muito. Eles ficam com o pai e com as tias, mas nada é como a mãe”, desabafou Márcia, ao lembrar dos outros dois filhos, Joana, 10 anos, e Pedro,7.

Quitéria, 37, que se distrai costurando enquanto aguarda o atendimento, contou que deixa outros cinco filhos a 240 km de distância, enquanto acompanha Alex, 17, no tratamento. Para vir de Poção, no Planalto da Borborema, ela e o filho acordam à 1h40 min da manhã e passam cerca de quatro horas na estrada.

A mãe não esquece do dia em que o carro quebrou na volta ao interior. Cansaço e chuva marcaram esse dia.

 “Cheio de buracos no caminho, o carro quebra rápido”, justificou Quitéria, ainda com a linha na mão, como se pudesse remendar o mundo.

OS QUE PARTEM

Testemunhar a morte de pacientes que estavam em tratamento é comum, mas ainda assim muito difícil para todos. Anderson se foi em agosto de 2021, poucos dias depois de completar 20 anos, após passar por uma amputação e vencer o câncer duas vezes. A morte dele foi em decorrência de uma infecção repentina, conforme consta no atestado de óbito. Para muitos, ele partiu por ter cumprido sua missão.

Os olhos de Tatiane brilham ao falar do filho, que lhe consolava quando ela fraquejava:

“Ele dizia que por mais difícil que fosse, o amanhã seria melhor Anderson para mim é uma saudade que dói bastante. Tem horas que eu penso que ele está viajando, e está para chegar” – disse.

O rapaz também ajudou muito aqueles os que estavam ao seu redor.

“Tem pacientes que dizem que era Anderson quem dava força. Algumas pessoas até falam que eu não era mãe de um menino, era mãe de um anjo”, recordou Tatiane.

O relacionamento entre as famílias dos pacientes é inevitável. Como filhos da mesma dor, essas pessoas entendem o que as outras passam e compartilham os momentos difíceis e os felizes.

 “O tratamento só não é tão difícil, pois temos os outros para conversar” – afirmou Jaqueline, mãe de Ihan.

“A gente vira família” – completa Jaqueline.

As mães não largam as mãos dos filhos. Foto: Chiang Mai/Pixabay
O BADALAR DO SINO

 Não há alegria maior do que a vitória contra a doença. Quando alguém está curado, o ritual é simbólico: tocar o sino. Um som que anuncia uma vida nova. Um tinido cobiçado e aguardado. Essas badaladas, porém, não acabam com o vínculo que o paciente tem com o hospital e com todos os outros com quem convive.

Periodicamente, ele ainda deve ir à unidade fazer revisão para certificar que está tudo certo, e que não haverá recidiva. Esse é o caso da pequena Melissa, que mostra quatro dedos para dizer a idade. Vinda de Exu, a 617 km de Recife, a pequena fez tratamento em 2021. A última sessão de quimioterapia aconteceu em novembro.

A simpatia de Melissa é cativante, e é quase impossível acreditar que um corpo tão pequeno já passou por tanta coisa. Quando digo meu nome para ela – “Guilherme” -, a menina logo anuncia que é familiar:

“É o nome do meu irmão, que foi morar no céu”.

Para a auxiliar administrativa, Érica Roberta, 41, que trabalha há nove anos no HCP, o que mais impactante é quando uma mãe descobre o câncer em mais de um filho, como foi com Rosa, 41, mãe de Melissa. Seu filho mais velho, José Guilherme, foi diagnosticado em 2014, aos 13 anos, e morreu em 2017, sem conhecer a irmã mais nova.

“Eu acho que essa sensação é a mesma que o mundo cair. Você se faz muitas perguntas e se questiona o dia inteiro porque isso acontece” – lamentou Érica.

Esse também foi o caso de Madalena, que recebeu o diagnóstico do seu filho Lucas em 2022, depois de ter enfrentado a doença com sua filha, Vitória, 22, entre 2016 e 2017. O mesmo aconteceu com Tatiane. Felipe, irmão de Anderson, descobriu o tumor maligno uma semana após o falecimento do irmão. A mãe, ainda de luto, estava novamente no hospital onde o filho mais velho era tratado.

Na primeira vez que eles chegaram ao HCP, Felipe ocupou o mesmo quarto e a mesma cama que Anderson ficou pela última vez.

“Até hoje tem hora que eu não entendo, mas eu peço a Deus para ele me confortar. Eu tento levar a minha vida hoje em dia, mas, por mais que tente, eu não sou mais aquela pessoa de antes. É muito difícil” – lastimou.

Felipe tocou o sino em agosto de 2022. Após a amputação da perna, ele, que sonhava em ser jogador de futebol ou ingressar no Exército, agora não pensa muito no futuro. Junto com o membro, ele perdeu a perspectiva, mas sua mãe busca mostrar para ele que ainda há muito para sonhar.

“Não é porque ele perdeu a perna, que ele perdeu a vida” – disse.

Diante de todas as dificuldades, as mães, algumas vezes mais do que os próprios pacientes, fecundam esperanças para eles. Muitas almejam o retorno da vida normal, como alguém esperando acordar de um sonho ruim. Esperam que seus filhos resgatem seus sonhos antigos, ou apenas, como diz Quitéria, “que fique bem”. Luciana pede licença, e faz um pedido:

“A minha vida é corrida e minha luta é grande, mas eu peço a Jesus saúde para caminhar com meu filho”.

–*–*–

Já são seis horas da tarde e o calor persiste. Algumas pessoas estão finalizando suas atividades. Não é o caso das mulheres estão preparando as mochilas dos filhos para voltar a lutar pela vida deles. Elas colocam roupas, mantimentos e esperança nas bolsas. E se preparam para viajar, segurando a mão de seus filhos, enquanto carregam o peso do mundo nas costas e esperam ouvir o sino tocar.

–*–*–

Pé de página

[1] Exemplos: Carpina, Escada, Jaboatão, Poção, Frei Miguelinho, Surubim e até mesmo de Maceió, capital de Alagoas.

–*–*–

Legenda da foto principal: Hospital do Câncer de Pernambuco. Foto: Secretaria de Saúde/HCP/Divulgação

Criado no agreste pernambucano, é ávido por pessoas, cultura e lugares. Estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco, ama ficar obcecado por algo novo, e acredita que o jornalismo atravessa a música, a arte, a literatura, e a vida das pessoas. É integrante do Coletivo Caburé de jornalismo independente.
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Respostas de 2

  1. Sensacional!
    Mães, verdadeiras guerreiras, onde o amor impera.
    Parabéns!!
    Meus Sertões mais uma vez esclarecendo, informando e dando um show de profissionalismo.

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