Os três gorilas e a ‘cidade fantasma’ – As aventuras de Giba II

Nove de setembro de 2024 foi a data em que Gilberto Castoldi, o Giba, completou a visitação ao 497º município do Rio Grande do Sul.  Para marcar o término da façanha, ele pediu para um dos quatro amigos que o acompanhavam, tirar uma foto dele e Clóvis Berger, agrônomo e ex-proprietário de uma floricultura em Santa Cruz do Sul, segurando o mapa com todas as cidades gaúchas assinaladas.

Mapa completo da aventura de Giba.

A ideia de documentar as visitas foi do piscineiro Jaime André Hubner, primeiro companheiro de viagem de Giba. Ele, porém, desistiu da aventura quando se mudou para Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo, por questões pessoais. Descendente de pomeranos, povo que vivia entre a Alemanha e a Polônia, ele foi viver no município brasileiro onde o idioma de seus antepassados é mais falado, assim como a principal religião é o protestantismo. Estima-se que 82% da população da cidade seja de pomeranos e alemães.

Paulo, Giba, Evandro, Clóvis e Gelson no Memorial da Evolução Agrícola, em Horizontina

Na postagem que fez no dia seguinte nas redes digitais, o ex-bancário contou que após cada viagem, religiosamente, ele marcava os municípios visitados no mapa. Posteriormente, analisando os roteiros completados, traçava os próximos locais a serem visitados, evitando percorrer as estradas utilizadas no passeio anterior. Ou seja: um passeio para o sul: outro para o norte; outro para o leste; outro para oeste.

“No início, saímos de manhã cedo e voltávamos no mesmo dia, a cada quinzena. À medida que as distâncias foram aumentando, a saída era em um dia, a volta no outro, uma vez por mês. As viagens foram meticulosamente planejadas. Então, poucos perrengues: uma leve batida de carro, no único poste que existia no meio de um potreiro, e somente um pneu furado, que foi gentilmente trocado por um outro motorista, no interior de Caçapava do Sul. Várias multas de trânsito, sendo que da maioria só ficava sabendo 15 dias depois, pelo correio” – revelou.

Com um volume de histórias capaz de preencher um livro, milhares de fotos impressas – 1.500 delas no formato 15×21 -, o ex-gerente da Caixa Econômica Federal tornou-se um especialista em cultura, turismo e geografia do Rio Grande do Sul. As viagens fizeram com que tivesse muitas certezas:

“O Rio Grande é lindo. Santa Cruz do Sul é uma das melhores cidades do estado para se viver, levando em conta saúde, educação, emprego, esportes, cultura, lazer, etc. Você pode ter nascido lá no “cafundó”, lá no meio das grotas, mas se você teve uma infância feliz, lá sempre será um dos locais preferidos para você viver. Tem muitos municípios ainda sem asfalto, abandonados pelo Estado, não por este governador, mas sim, por ele e por todos que o antecederam”.

Com a saída de Jaime, quatro outros amigos se integraram ao grupo aos poucos, após os quatro primeiros anos de viagens. Além de Clóvis; Evandro Gabe, morador de Monte Alverne, distrito de Santa Cruz do Sul e amigo de infância de Jaime; Gelson Engel e Paulo Roberto Gorck, gerentes aposentados da Caixa Econômica e parceiros de futebol de Giba.

Nem mesmo depois que se mudou para a Praia da Pinheira, em Palhoça (SC), a 559 quilômetros de distância Santa Cruz ou a 6h56min, como preferir, Gabe desistiu das aventuras. Toda vez que uma viagem era programada, ele ia de carro para a casa do sogro. A fim de economizar no combustível, ele oferecia caronas por um aplicativo. Em média, cada passageiro pagava em torno de 150 reais. Depois da missão com Giba, voltava para a praia no mesmo esquema.

Diferentes funções

Desde o início, o planejamento das viagens ficou com Giba. Uma semana antes da partida, ele começava a pesquisar pela internet. Primeiro nos sites das prefeituras, onde buscava informações sobre a história e colonização dos municípios. Já a página do IBGE servia para obtenção de dados como população. Por fim, procurava imagens diversas e definia o roteiro, assim como o número de cidades que iam percorrer.

“A gente descobre muitas coisas que não estão no site da prefeitura, outras não aparecem como pontos turísticos. As pessoas perguntam como eu sei de tudo. Simples, eu pesquisava por horas e até encontrar atrações nas áreas rurais, por exemplo” – explica.

Giba também reservava hotéis, consultava a previsão do tempo, o estado das estradas e número de pedágios que teriam de passar para não serem pegos desprevenidos.

Trabalho levado a sério faz com que afirme hoje que a questão do tributo nas estradas é um problema devido a concentração deles na região central do estão, onde se paga, dependendo do percurso, oito pedágios para ir e voltar de Candelária a Encantado, enquanto no norte do estado paga-se no máximo dois para percorrer entre 900 e 1.000 quilômetros.

Apesar da concentração de cobranças em algumas regiões, as concessionárias e o Estado deixam a desejar na manutenção das estradas durante o inverno. Por incrível que pareça, segundo Giba, no Norte e na região da fronteira, as estradas são boas e não têm pedágio.

O aventureiro também ressalta que o excesso de velocidade é outra preocupação para quem viaja pelo Rio Grande do Sul. Ele ressalta que por questões de segurança e para apreciar a paisagem, o grupo nunca passou dos 90/100 quilômetros horários, quando permitido.

Para tudo correr bem, Giba também criou regras para os viajantes. Todos os mandamentos serão tema de uma das reportagens da série. No entanto, lá vai um breve spoiler:

Todas as viagens foram realizadas no meio da semana (terça, quarta ou quinta-feira). Em média, duravam dois dias. As saídas eram às 6 horas da manhã. E a primeira parada para tomar café ocorria por volta das 8 horas. O objetivo dessas medidas era não ter reclamações em casa nos finais de semana e para não acordar a família. A regra número um era “Nunca aos domingos”. A dois, “Sair sem fazer barulho. Depois que o piscineiro motorista deixou o grupo, o ex-bancário acumulou mais uma tarefa: a de motorista. Aos demais cabia rachar as despesas com combustível e pagar as próprias despesas de alimentação de hospedagem.

“A gente entrava no carro dando risadas, brincando e zoando uns aos outros. Falávamos de futebol, política etc. Se não fosse assim, eu não teria concluído essa empreitada porque tem muitos lugares que a gente tem que andar 45 quilômetros de estrada de chão para ir e 45 para voltar. O exemplo é Garruchos, que tem 2.850 habitantes e fica separado da Argentina pelo rio Uruguai.

Uma pausa para Giba analisar a experiência em Garruchos:

“Talvez seja o município mais abandonado pelo Estado. Percorri 90 quilômetros de estrada de chão ruim para chegar lá. A população é hospitaleira, mas sofre as consequências da dificuldade de acesso: dificuldades para os jovens cursarem faculdades, alimentos mais caros – muitas empresas se recusam a fazer entregas na cidade -, doentes sofrem no transporte de ambulâncias, isolamento. Não tem barca ligando Garruchos à Azara, na Argentina. Só umas embarcações tipo caíco[1]. É uma daquelas cidade que penso que o povo deveria cantar o Hino Riograndense de costas, no trecho “Sirvam nossas façanhas de modelo à toda terra”

 

Estrada de acesso a Garrucho, no noroeste do estado.  Foto cedida por Gilberto Castoldi
Comida farta

Voltemos ao grupo de viajantes. Aos poucos, cada um foi ganhando uma missão. Gelson demonstrou em diversas oportunidades a qualidade de um bom gourmet. Em cada parada para alimentação, ele orientava os companheiros sobre as calorias de determinados alimentos. Passou, então, a indicar o local onde todos faziam as refeições.

Foi assim que o grupo, autointitulado “Pelo Rio Grande”, descobriu prato típico da região em Trindade do Sul um: o chapão. Trata-se de uma quantidade ilimitada de bifes, salame frito, queijo frito e batatas fritas, arroz, feijão, saladas e sobremesa. Em junho de 2023, custava entre R$ 35 e R$ 40 por pessoa, e era servido nos restaurantes de beira de estrada e no hotel. A refeição é a preferida dos caminhoneiros.

Trindade do Sul tem esse nome em homenagem ao primeiro morador, João, o dono do sobrenome. O sufixo “do Sul” foi incluído para diferenciar de outra localidade com o mesmo nome, existente em Goiás.

 

Bifes gigantes, salada, batata frita, queijo e salame frito, arroz e feijão à vontade fazem parte do Chapão. Também é servido com polenta e massas. Divulgação

Os conhecimentos de agronomia de Clóvis Berger serviam para acrescentar informações sobre a vegetação e atividades agropecuárias das diferentes regiões. Paulo Roberto e Evandro reforçavam a equipe com bom-humor e boa conversa.

Viajar em grupo de cinco pessoas é mais seguro. No entanto, nas pequenas cidades, os viajantes eram vistos com desconfiança, inicialmente.

“A gente chegava no ‘interiorzão’, nas quebradas. Éramos quatro ou cinco homens, todos na faixa dos 80/90 quilos, em um carro grande. A primeira coisa que as pessoas faziam era se esconder. As mulheres ficavam nos espiando por trás das cortinas, pensando que ia haver um assalto. Dois ou três minutos depois, passava uma viatura da Brigada Militar com três, quatro soldados. Sabendo disso, a gente descia do veículo, puxava o celular e começava a tirar fotos. Os policiais passavam e iam embora” – conta Gilberto.

Outra tática era entrar em uma bodega e cumprimentar todo mundo. Nas cidades colonizadas por italianos, Giba é quem puxava a conversa. Os outros colegas faziam o mesmo nas localidades onde predominavam os descendentes de alemães. Após quebrarem o gelo, vinham as perguntas: “O que vocês estão fazendo aqui? De onde são? Como é que se perderam aqui?”. Era o início de uma conversa que chegava a durar duas horas.

Cidade fantasma

Giba esteve duas vezes em Caçapava do Sul em agosto de 2021 e março de 2022. Caçapava, na língua tupi-guarani significa “clareira na mata”. A cidade se tornou a segunda capital Farroupilha durante a revolução mais longa do Brasil, entre 1835 e 1845. O movimento tinha ideais de liberdade e igualdade e teve entre seus líderes o advogado caçapavano Borges de Medeiros

Entre 13 e 20 de setembro, os gaúchos celebram a revolta que resultou na criação da República Rio-Grandense com desfiles e shows, vestindo bombachas (calças típicas abotoadas nos tornozelos), lenços, guaiacas (largas tiras de couro e com fivela com compartimentos para guardar pequenos objetos).

Com uma população estimada de 35.508 pessoas, Caçapava tem muitos atrativos turísticos. O ex-bancário fez pelo menos sete postagens no Facebook sobre o município. Neles, cita as Minas de Camaquã, que surgiram por volta de 1865. Elas estão localizadas a 73 quilômetros da sede municipal. Ingleses e belgas exploraram cobre no local. Em 1942, o magnata italiano, radicado em São Paulo, Francisco “Baby” Matarazzo Pignatari assumiu a Companhia Brasileira de Cobre (CBC), criada por Getúlio Vargas, e assumiu as instalações, localizada no terceiro distrito de Caçapava.

Atrações turísticas
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A partir daí, o milionário construiu vilas, hospital com gabinetes médicos e odontológicos, rodoviária, clubes de lazer, campo de aviação e um cinema em Minas do Camaquã, onde viveram cerca de 5 mil habitantes, no auge da mineração. Em 1974, Baby devolveu a CBC ao governo e deixou o local. A mina foi desativada e o local foi apelidado de “cidade fantasma”.

Nesta área, a quase 73 quilômetros do centro da cidade, é possível praticar esportes aquáticos na barragem João Dias em meio aos paredões rochosos e mata nativa. Entre os atrativos do local destacam-se a trilha até o topo do Morro da Cruz, a visitação da área industrial das minas, galerias subterrâneas e a cratera a céu aberto onde se formou um lago azul de 150 metros de profundidade

Outros pontos turísticos relevantes são a Pedra do Segredo, serra rochosa famosa por suas cavidades e grutas, especialmente o Portal, que fica na parte central e é acessível por uma trilha. A Pedra possui o formato de três cabeças de gorilas e abriga lendas sobre tesouros esquecidos por jesuítas. Uma das versões diz que essa riqueza seria o corpo do líder guarani Sepé Tiaraju, cuja tribo foi massacrada na Batalha de Coioboaté (hoje São Gabriel) pelo exército luso-espanhol.

O corpo de Sepé teria sido sepultado na Caverna da Escuridão, que possui um labirinto de túneis. Nesta furna, as velas não permanecem acessas porque os espíritos que povoam o lugar não permitem a entrada de invasores. As formações rochosas da cidade têm cerca de 500 milhões de anos

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Nota de página

[1] Barcos de pesca ou de passeio, movidos a remo, com quatro metros de comprimento, 1,60 m de largura e capacidade para transportar 350 quilos.

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Legenda da foto principal: Ao fundo, Cine Rodeio. Sua construção foi inspirada no velho oeste americano. No pátio, antigas máquinas e equipamentos utilizados na mina explorada pelo magnata “Baby” Pignatari

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Na próxima semana: As múltiplas colonizações do Rio Grande do Sul e o Farol da Solidão. Foto cedida por Gilberto Castoldi.

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Leia a série completa

As aventuras de Giba A solidão devora Não foram só alemães e italianos Os 12 mandamentos A última viagem

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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