Iguaria típica da cidade de Alcântara, no Maranhão, está ligada à Festa do Divino e à visita de Pedro II, que nunca aconteceu
Paulo Oliveira
Primeiro é preciso descascar o coco, quebrar e tirar o endocarpo (pele). Em seguida é preciso ralar o fruto e misturá-lo com os demais ingredientes: manteiga, açúcar, cravo da índia e ovo. Em seguida, cozinha tudo até dar o ponto, que é deixado para esfriar.
A segunda parte do preparo inclui trigo, manteiga, água e um pouco de sal. Amassa tudo com a mão. Depois, estica com um rolo e vai abrindo a massa para, em seguida, cortá-la em formatos redondos, com ajuda de um copo. A etapa seguinte consiste em colocar os pedaços na forma untada, pôr o recheio e fazer um arranjo (desenho) com um pedaço fino da massa de trigo, formando uma flor, uma inicial ou qualquer outro desenho.
Um detalhe adicional é usar o talo de trigo como se fosse uma pequena cabeça de tartaruga para o cliente segurar o doce enquanto come. Por fim, coloque a forma no forno a lenha, de preferência, por 20 minutos, a uma temperatura de 180º. Toda essa trabalheira artesanal dá forma ao doce de espécie, típico da cidade de Alcântara, no Maranhão. Ele tem esse nome porque leva entre seus ingredientes especiarias, principalmente, o cravinho ou cravo-da- índia.
O doce de espécie está vinculado à Festa do Divino e à visita que o imperador Pedro II prometeu fazer e nunca cumpriu. A delícia gastronômica, que seria a sobremesa preferida do imperador, era recheada com outras frutas, como o pêssego, mas como não existisse na localidade, os negros que receberam a função de prepará-la mudaram o ingrediente para o que havia em abundância: o coco.
“As receitas eram das Sinhás, mas as adaptações foram feitas com os ingredientes que havia por aqui, moldados pela mão da escrava africana” – consta no texto “Saberes e fazeres da gastronomia tradicional: um estudo sobre as características histórico-culturais aplicadas a produção do Doce de Espécie no Município de Alcântara/MA”, de autoria das professoras Linda Rodrigues, Elaine Fernandes e da funcionária pública Luana Isthael.
A guloseima e a festa foram trazidas para o Brasil pelos açorianos da Ilha de São Jorge, uma das nove ilhas do arquipélago da região autônoma portuguesa.
O mesmo trabalho das professoras revela que “o Imperador Dom Pedro II foi convidado ao mesmo tempo por duas famílias de Alcântara, divididas pela política, para que visitasse a cidade e se hospedasse em suas casas”.
Os anfitriões espalharam a notícia que o chefe da família escolhida pelo imperador receberia o título de “Barão de Alcântara”. O conflito se acentuou. Sabendo disso, Pedro II desistiu da visitação.
A população esperou alguns dias até decidir fazer a festa sem a presença do soberano, que foi substituído por “um séquito e cortejo de crianças com trajes reais”. O povo saiu em cortejo pelas ruas e foi recepcionado na Igreja do Carmo, onde lhe aguardava um banquete com muitas iguarias, incluindo o doce preferido do monarca.
E qual a relação do delicioso doce de coco com a Festa do Divino, que se realiza anualmente. Ela começa a ser preparada no Sábado de Aleluia e é realizada por 12 dias até o Dia de Pentecostes, quando a Igreja Católica celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo.
Durante esse período, um grupo de crianças e adultos são vestidas e tratadas como nobres, com refeições fartas, roupas luxuosas e decoração requintada. Fazem parte dos festejos imperador (anos ímpares), imperatriz (anos pares), mordomos régios e mordomos baixos. As caixeiras, senhoras devotas que cantam e tocam instrumentos, acompanham todas etapas da cerimônia. Os doces de espécie são servidos gratuitamente durante todo o festejo.
Em Alcântara a festa tem forte influencia das missões católicas carmelitas, responsáveis pela construção da Igreja do Carmo, no século XVII. No restante do estado, prevalecem as comemorações nas casas de religiões afro-brasileiras, como o Tambor de Mina. Nos terreiros de mina, acontecem também a busca e o levantamento do mastro, ladainhas, caixeiras, a tribuna e o almoço para o Império. Isso tudo vai ter, mas cada casa de terreiro vai ter a sua especificidade, segundo explica a antropóloga.
QUEM VÊ CLOSE NÃO VÊ CORRE
Alcântara foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1948, como cidade-monumento. Sua riqueza já rivalizou com a capital do estado, São Luís, que fica localizada a 22 quilômetros de distância.
O acesso é feito por via marítima. A balsa Bahia Star sai ao sabor da maré. Convém se informar sobre os horários na véspera da viagem. Na quinta-feira passada (7/11), zarpou do Cais da Praia Grande, no Centro Histórico, às 7h30mim. Levou cerca de 200 passageiros e “jogou” o tempo todo – cerca de uma hora e vinte minutos -, mareando crianças e alguns passageiros adultos. A volta, às 11h30min, foi no mesmo embalo. O vento forte em mar aberto não deu trégua.
Ao chegar no Terminal de Alcântara, basta subir a ladeira em frente a ele. O ponto de venda mais tradicional do doce fica na rua das Mercês, 401, quase no topo da praça principal. Antônio Carlos, também conhecido como Antônio Doceiro, não é de muita conversa. Ele manda dizer, através da filha, que já vende o produto há mais de 45 anos e que foi responsável pela fama da iguaria. Seu produto é delicioso, compensa o enfado do produtor. Encomendas são aceitas pelo zap (98) 9 9161-3954
A unidade do doce de espécie, em Alcântara, é vendida a R$ 3. A embalagem com dez custa R$ 25. Em São Luís, capital do Maranhão, o valor unitário sobe para R$ 5 e o pacote com uma dezena dobra de preço.
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VEJA COMO É FEITA A IGUARIA
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Nota da redação: A outra opção para ir a Alcântara é pelo ferry-boat, que liga o Terminal Ponta da Espera, a 12 km do Centro Histórico, a Cujupe, porto localizado a 55 km do centro de Alcântara. Isso obriga o visitante a pegar uma van para chegar à sede do município. A passagem custa R$ 10 para adultos. Crianças e idosos pagam R$ 5. Preços para veículos e horários podem ser consultados aqui . A travessia pela Baía de São Marcos é um pouco menos agitada.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.