O cânion dos quilombolas

Sentada em uma pedra, debaixo de uma árvore do Quilombo Sumidouro, dona Catarina Norata dos Santos, 78 anos, à princípio, resiste em cantar as músicas que entoa na kizomba [1], festa anual da comunidade. Ela esbraveja com os sobrinhos-netos Igor e Danilo porque eles contaram aos visitantes quais são os atributos da cantora e sambadeira quilombola. A localidade fica a 12 quilômetros da sede do município de Queimada Nova, no Piauí.

Catarina alega que não se “agasalhou” para cantar. Na verdade, sob o calor de 40 graus que faz na região, a expressão mais adequada é que não se arrumou para a cantoria que acabou fazendo. No total, foram três canções. Duas delas eram trechos das músicas “A saudade vem”, de Tonico e Tinoco, e “Madrugada e amor”, de Caetano Veloso, com algumas modificações. A terceira, não identificada, fala de uma pessoa à procura de um certo Petrônio, que está viajando no bico de um gavião.

Os moradores do Quilombo Sumidouro por muitos anos tiveram  suas terras cobiçadas por empresas diversas, principalmente mineradoras. Eles resistiram como puderam e hoje usufruem de 936 hectares de terra, sendo que em 50 deles, 12 famílias podem explorar artesanalmente a extração de quartzito. O trabalho é muito e o dinheiro pouco.

O grande sonho da comunidade, constituída de 38 famílias e cerca de 190 pessoas, no entanto, é explorar turisticamente o cânion existente na localidade.

Uma lenda ronda os paredões de três quilômetros de extensão, esculpidos pela ação dos ventos e das águas no decorrer de milhões de anos e pela movimentação de placas tectônicas.

Raízes se espalham pelo paredão do cânion. Foto: Paulo Oliveira

Desconhecido até mesmo para a grande maioria dos piauienses, o cânion está localizado a 522 quilômetros da capital do estado, Teresina. Quem transita entre o corredor de cinco metros de largura e trinta de profundidade aprende com os meninos da comunidade – dentre eles os sobrinhos netos de Catarina – que um vaqueiro negro, montado em um cavalo preto, tocando uma vaca, com a ajuda de um cachorro, ambos também pretos, desapareceram no local. Daí a origem do nome: Sumidouro.

Não há registro oficial do sumiço, mas a história passa de geração em geração, contada pelos mais velhos. Consta ainda que o local foi usado como esconderijo por escravos em fuga. Além das árvores e de pequenos lagos, outra atração são pinturas rupestres feitas nos paredões.

Atualmente, o cânion é visitado apenas por alunos de escolas públicas e poucos moradores da região, mas os líderes comunitários acreditam ser possível investir no potencial turístico do quilombo.

Enquanto nos guiam até a casa do líder comunitário e trabalhador rural Sebastião dos Santos, o seu Sessé, 67 anos, Igor e Danilo dizem que são sanfoneiros e fazem parte de um quinteto de música sertaneja. Há um projeto que estimula os dons musicais infanto-juvenis na região, mas isso é tema para outra reportagem.

TENTATIVA DE EXPULSÃO
Seu Sessé, líder comunitário. Foto: Thomas Bauer

Um dos meninos volta para casa e outro vai conversar com parentes, enquanto seu Sessé nos conta a história do quilombo:

“Os negros daqui são descendentes de escravos. Muita coisa dessa época ainda não descobrimos. Sabemos que a negrada aqui é tudo família. Tudo gira em torno de Raimundo Valentim, meu sogro. Ele contava ter aprendido com os avós dele que ali era um lugar de povo sofredor e que muitos brancos, não todos, guardavam rancor dos negros a ponto de tentarem expulsar a comunidade entre os anos 1970 e 1980. Foi preciso resistir muito” – revela.

A primeira pessoa a tentar expulsar os quilombolas era um gringo chamado Camilo, segundo Sessé. Esse homem trabalhava em conjunto ou para a Eucatex Mineral, empresa do grupo Eucatex [2], que pertencia à família de Paulo Maluf. Maluf foi ex-prefeito da capital paulista, ex-governador de São Paulo, ex-deputado federal e ex-candidato à Presidência da República. A mineradora funcionou entre 1976 a 1998, quando foi incorporada a outra empresa do grupo, sem nunca conseguir explorar a mina do quilombo. Além da Mineral, a MG Mineração, tinham sede na Fazenda Massapê, em Queimada Nova.

 Sessé relatou ainda que sua mãe nasceu no Sumidouro, mas foi morar em Casa Nova, onde ele nasceu. O líder comunitário chegou no quilombo, em 1981. Ao voltar, encontrou funcionários da Eucatex pintando cercas, instaladas na comunidade. Na época não deram informações e foram avançando para surpresa dos quilombolas, a maioria analfabetos.

“Ninguém aqui tinha leitura, ninguém sabia ler, só eu. Mesmo assim leiturinha pouca. Aí eu fui na Eucatex para tentar obter informações. Eles aproveitaram que a gente era só uma aglomeração, ainda não era comunidade, para tentar se instalar” – conta.

Brigas familiares, processos obrigando a empresa a pagar 44 milhões de dólares (aproximadamente 254 milhões de reais ao câmbio de hoje) que Maluf teria desviado durante a gestão como prefeito de São Paulo e diversos outros problemas fizeram a empresa entrar com pedido de recuperação judicial. Essas teriam sido as causas para o grupo a desistir da exploração mineral no quilombo.

Durante os governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB – 1995 a 2003), a Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas enviou para ele um projeto, pedindo o reconhecimento de diversos quilombos no país:

“Fernando Henrique simplesmente virou as costas e engavetou o projeto” – afirma seu Sessé.

Dona Catarina, quilombola. Foto: Thomas Bauer
Pinturas rupestres se apagando. Foto: Thomas Bauer

A instalação de uma Comunidade Eclesial de Base (CEB) no Sumidouro foi fundamental para os moradores receberem formação adequada para a luta por seus direitos. Logo em seguida, no ano 2000, Sessé e outros companheiros criaram a Associação Comunitária de Desenvolvimento Quilombolas de Sumidouro, com apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Queimada Nova, recém emancipada do município de Paulistana (PI).

A mobilização para preservação do quilombo ganhou força, mas as empresas não deram trégua. O criador da associação recorda que participou de um seminário em Salvador (BA), onde apresentou dois projetos. Era o ano de 2003 é a ideia era garantir que a comunidade pudesse explorar artesanalmente o quartzito abundante na região e transformar o cânion em ponto turístico. Quando os planos foram encaminhados, uma surpresa: a licença para concessão de lavra já tinha sido dada a uma empresa, que seu Sessé não recorda o nome. O licenciamento abrangia 2.222 hectares de terra.

“Nós não éramos mais dono disso aqui” – diz o ex-presidente da Associação.

RETOMADA

A recuperação da área quilombola só ocorreu porque os responsáveis pela pesquisa mineral no terreno não pediram a prorrogação para conclusão dos estudos dentro do prazo legal. Dez minutos após o vencimento, os quilombolas pediram (e receberam) autorização para fazer o levantamento.

Isso resolveu o problema, meu caro leitor? Claro que não.

Os descendentes dos escravizados não conseguiram obter o dinheiro para as pesquisas. Usando a mesma tática da comunidade, uma outra mineradora conseguiu os direitos para fazer a avaliação mineral no local.

O problema em si só começou a ser solucionado, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva, em seu primeiro mandato (2003), atendeu o pleito da coordenação nacional de quilombos e reconheceu o Sumidouro, dentre outros. Com a decisão, a exploração de atividades minerais não podia ser mais realizada por firmas ou pessoas de fora da comunidade.

Por volta de 2017, diante da chegada de empresas de energia na região, houve tentativa de instalação de torres. Mas com o direito garantido, a comunidade iniciou negociações para mitigar os danos causados pelo desmatamento e pelas estradas abertas próximas ao quilombo, incluindo o considerável aumento de tráfego de caminhões no entorno do Sumidouro.

Dentre os transtornos causados está o desaparecimento da fauna da região, o impacto na forma de criação de pequenos animais – eles se afastam das áreas onde foram instaladas as torres -, e a insegurança causada pela presença de desconhecidos no local.

Eles foram atendidos ao pedir que as companhias pagassem os estudos de pesquisa mineral, que custou 230 mil reais. Desde então, 12 famílias quilombolas pode extrair o quartzito artesanalmente, sem uso de explosivos, em uma área de 50 hectares. O material extraído é utilizado como pedras decorativas para construções.

Dona Catarina. Foto: Thomas Bauer

Espera-se que daqui por diante ninguém mais ameace o Sumidouro, o cânion e a cultura do povo que vive ali desde 1861. E que dona Catarina continue soltando sua voz.

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Notas de pé de página

[1] Kizomba é uma palavra do idioma kimbundo, que significa uma confraternização de pessoas negras. Também é um género musical e um estilo de dança originários de Angola.

[2] O Grupo Eucatex se mantém como um dos maiores produtores de pisos, divisórias, portas, painéis MDP e MDF, chapas de fibras de madeira e tintas e vernizes do Brasil. São 70 anos de histórias, cerca de 3 mil funcionários, em seis fábricas, com escritórios nos Estados Unidos, além de exportações para 40 países. Fonte: https://www.eucatex.com.br/. 

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Legenda da foto principal: Cânion Sumidoro. Foto cedida pela comunidade. Crédito: Suzana Hiroka (MT)

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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