Museu da Sanfona, em Dom Inocêncio (PI), homenageia o instrumento e grandes músicos. Principal
peça é a sanfona que teria pertencido a Januário, pai de Gonzagão
Paulo Oliveira
O monumento que de 2019 a 2024 foi considerado “a maior sanfona do mundo” – este ano perdeu o título para a cidade de Senhor do Bonfim, na Bahia – não é a única atração do complexo em homenagem ao instrumento musical e aos sanfoneiros pé-de-serra [1] de todo o Brasil. Dele também faz parte o Museu da Sanfona, inaugurado em janeiro deste ano, em Dom Inocêncio, no Piauí.
A obra, custeada por uma empresa de energia e com recursos do empresário Salvador Nunes de Souza e do filho dele, Sandrinho do Acordeom, custou o equivalente a 58 sanfonas importadas [2]. O fato de a companhia patrocinadora utilizar o museu como marketing para mitigar os problemas causados pela instalação de equipamentos na região, não tira o brilho da iniciativa da família Nunes.
Salvador e Sandrinho há anos lutam para divulgar o forró por todo o país e mantém uma escola de formação de forrozeiros, em Dom Inocêncio e em São Raimundo Nonato, a 97 quilômetros dali.
OITO BAIXOS
“Quando eu voltei lá no sertão
Eu quis mangar de Januário
Com meu fole prateado
Só de baixo, cento e vinte, botão preto bem juntinho
Como nego empareado
Mas antes de fazer bonito, de passagem por Granito,
Foram logo me dizendo
De Taboca à Rancharia, de Salgueiro a Bodocó,Januário é o maior
E foi aí que me falou meio zangado o véi Jacó
Luiz, respeita Januário
Luiz, respeita Januário
Luiz, tu pode ser famoso, mas teu pai é mais tinhoso
E com ele ninguém vai, Lui, Lui
Respeita os oito baixo do teu pai
Respeita os oito baixo do teu pai”
Trecho da música ‘Respeita Januário’
A principal atração do Museu é a sanfona de oito baixos, que teria pertencido a Januário José dos Santos, o Mestre Januário, pai do cantor e compositor Luiz Gonzaga. O instrumento foi cedido por um empresário de Petrolina, em Pernambuco, de acordo com Salvador Nunes. O músico e o instrumento foram imortalizados na música “Respeita Januário”, de Humberto Teixeira e do próprio Rei do Baião.
Nas oito galerias existentes no museu, que levou dois anos para ser construído com tijolos artesanais produzidos por Salvador, existem diversas sanfonas, fotos, discos de vinil, objetos (chapéus, sandálias, rádios) e uma sala de vídeo, onde é apresentado um documentário sobre a sanfona e os músicos de Dom Inocêncio e região.
Pelo menos 20 sanfoneiros são homenageados nas exposições. O primeiro deles, Júlio Dias. Segundo a história oral de Dom Inocêncio, ele começou a tradição há cerca de 100 anos. Dias era requisitado para animar casamentos, festas e danças de São Gonçalo. Ele teria ensinado o ofício de forrozeiro para diversos jovens.
Outra história interessante é a de Egídio Raposo, nascido em (1924-2002), em São Raimundo Nonato. Ele e o pai, Manuel, ganharam o apelido que virou sobrenome por sempre incluir no cachê uma galinha, segundo os organizadores do museu. Egídio foi o primeiro professor de música de Gilberto Gil. O cantor e compositor baiano, em visita a Teresina, capital do Piauí, mandou um avião buscá-lo e o apresentou ao público.
O museu celebra ainda Mestre Tita Veiga, autor de “Valor do Piauí”, considerado uma espécie de hino em que exalta as belezas do estado; Raimundo de Mundico, Clóvis do Forró, Sandrinho do Acordeom, Dominguinhos, Epitácio Pessoa e o mestre Gonzagão, dentre outros.
E não esquece de saudar sanfoneiras como Maria Sebastiana Torres da Silva, conhecida apenas por Sebastiana. Piauiense de São Raimundo Nonato, autodidata, aprendeu a tocar com sete anos em uma sanfona velha de um irmão. Por muito tempo, ela não teve forças para levantar o instrumento. E precisava da ajuda do pai para apoiá-lo. A irmã de Sandrinho, Paloma Nunes, segunda colocada no Festival de Petrolina (PE), em 2015, também é citada.
ORIGEM DA SANFONA
O tchneng (ou cheng), instrumento que deu origem a vários instrumentos, inclusive o acordeom, foi criado na China por volta de 3 mil anos antes de Cristo, segundo informações do site Casa da Gaita, reproduzidas na página da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul . A criação chinesa era formada por uma palheta de bambu, que presa aos lábios vibrava com o auxílio dos dedos, aproveitando a acústica da boca.
Em 1829, o construtor de instrumentos, o austríaco Curill Demian, inventou a “gaita de mão”, assim denominada popularmente para diferenciá-la da “gaita de boca”. O inventor, no entanto, a chamou de “acordeão diatônico”. A criação de Demian comprovou, de acordo com o mesmo artigo, ser possível construir um instrumento musical com sanfona manejada pela mão em vez de foles acionados pelo sopro.
Patenteado em 6 de maio de 1829, em Viena, na Áustria, a “gaita de mão” foi utilizada pela primeira vez em um conserto no dia 19 de junho do mesmo ano, em Londres, na Inglaterra.
De acordo com a Casa da Gaita, a sanfona foi trazida para o Brasil pela família do imigrante alemão Pedro Roth Birkenfeld, que chegou em São Leopoldo (RS), em 1846. Um dos seus filhos, Jacob, 11 anos, ganhara o instrumento um ano antes e animou a travessia de navio para os trópicos. Acredita-se que outros imigrantes alemães devem ter trazido acordeons para o sul do país.
Além disso, na época da Guerra da Prata (agosto de 1851 a fevereiro de 1852) contra o ditador argentino Juan Manuel de Rosas, o Brasil contratou 1.800 mercenários alemães, conhecidos como “brummers” (resmungões). Além do fuzil Dreyse, utilizado pelo exército da Prússia, alguns tocavam acordeões e trabalharam como músicos itinerantes, após o conflito.
Foi no Sul que surgiram os primeiros construtores brasileiros do instrumento, a maioria descendentes de italianos. Em 1923, o imigrante alemão Alfred Hering, criou as “Gaitas Hering”, em Blumenau, Santa Catarina, e produziu diversos tipos de acordeons, incluindo as sanfonas de oito baixos, difundidas no país.
BATE-PAPO
Em entrevista para Meus Sertões, o empresário Salvador Nunes conta como surgiu a ideia de construir o Complexo da Sanfona, que inclui ainda uma casa de shows e restaurante.
De quem foi a ideia de fazer um museu para homenagear a sanfona e os sanfoneiros da cidade, da região e do Brasil?
Foi da gente.
Quando ela surgiu?
Em 2018, iniciei a construção da murada de minha casa aqui. Foi na mesma época em que iniciaram essa pista (a estrada PI 144, que liga São Raimundo Nonato a Dom Inocêncio). E o museu, a gente começou com a cara e a coragem. Produzindo os blocos (tijolos). Criamos o projeto e o arquiteto colocou no papel. A gente teve a felicidade de as empresas de energia chegarem no mesmo ano e liberaram uma verba de patrocínio equivalente a 40% do total, graças aos nossos esforços e organização.
Contamos ainda com a ajuda dos cantores Vítor Fernandes, João Gomes e Tarcísio do Acordeom. Cada um doou 10 mil reais. O resto foi a gente, com a cara e a coragem. Também tivemos uma ajuda importante, a doação de uma quantidade de madeira que havia sido apreendida [3]
O senhor já imaginava em transformar essa área em um polo turístico, voltado para o forró?
Sim. Toda a minha vida foi voltada para o forró, para guardar a história do forró. Além disso, não tem uma cidade que tenha a quantidade de sanfoneiros de Dom Inocêncio (repete a estatística da existência de um sanfoneiro para cada 35 habitantes citada na reportagem “A guerra das sanfonas”, sem apontar a fonte).
Quando o Museu da Sanfona ficou pronto?
Em janeiro deste ano. Na verdade, pronto ainda não está porque sempre falta o que fazer.
O que é que falta?
Nós pretendemos forrar ele com madeira. Provavelmente o que se vai gastar para forrar é o que gastou para construí-lo. É um material muito caro. A iluminação também precisa dar uma ampliada porque precisa de mais intensidade no fim do dia. Também precisa passar uma resina. E ampliar. Sempre terá alguma coisa para fazer. Ainda mais que temos as datas comemorativas.
Que datas são essas?
Nós temos o Dia Municipal da Sanfona, no dia 20 de setembro. Por lei, é feriado municipal. Adiamos esse ano por causa das eleições, para evitar ‘queimar’ o evento. Eleição em cidade pequena se você receber um candidato, o outro não vai, divide o público. Isso fez com que a festa fosse marcada para os dias 12, 13 e 14 de dezembro.
Como é essa festa?
Há shows de forró pé de serra com os artistas da região, no palco Avelino Sanfoneiro, homenagem a um músico que viveu aqui. À noite, bandas. Por aqui já passaram Flávio Leandro, Beto Ortiz, Luizinho de Serra e Kelvin Diniz, de Capim Grosso. Há também comidas típicas: farofa de carne de bode, pintado [4] com carne de bode, beiju e bolo de milho.
E o São João?
Fazemos um arraial na casa de shows, que funciona como esquenta do Dia da Sanfona.
Há outras iniciativas para valorizar o forró na cidade?
Travamos uma batalha para aprovar na Câmara o selo Terra do Sanfoneiro. Com isso, ele passou a ser utilizado no papel timbrado da prefeitura, nas fardas e até nos uniformes dos times que disputam o torneio regional de futebol. As empresas que apoiam iniciativas de divulgação do forró também recebem o selo.
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Notas de pé de página
[1] Gênero musical que se originou da festa do forró e é executado tradicionalmente por trios com sanfona, zabumba e triângulo.
[2] O preço médio do instrumento é R$ 6 mil
[3] Segundo Gabriela Dias, filha do empresário, a construção do Museu custou R$ 350 mil reais.
[4] Feijão cozinhado com milho e misturado com toucinho, pé e orelha de porco.
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Legenda da foto principal: A sanfona de oito baixos é um dos destaques do acervo. Foto: Thomas Bauer/Meus Sertões
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- Author Details
Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
Uma resposta
Muito bom texto e boa iniciativa para preservar a memória do forró, e dos
músicos da cidade…