Uma crônica sobre memória (*)
-Laysa Vitória-
Sozinho, carregando apenas uma pequena bolsa, como quem leva consigo somente o essencial de uma vida longa e cheia de memórias, um idoso de cabelos totalmente grisalhos, de pele pálida e semblante distante e triste capturou meu olhar.
Ao observar esse homem, que estava sentado em um banco qualquer da rodoviária do Recife, pensei em como, ao longo da nossa vida, o tempo e as lembranças se mostram como uma faca de dois gumes.
Como um visitante mal educado e silencioso, o tempo entra discretamente pela porta da frente sem pedir licença. Na infância, lembro bem que a cada aniversário eu esperava ansiosamente para ver, no topo do bolo, a vela com um número cada vez maior. O tempo, quando se é criança, parece algo distante, quase intangível, e ser “grande” representava a realização dos sonhos que o corpo e a idade ainda não me permitiam.
Porém, a fase adulta chega como quem acorda de um sonho bonito. O visitante, antes silencioso, passa a ser barulhento e impiedoso. Ele torna-se um inimigo sutil presente nas 24 horas do dia, lembrando que, na verdade, o tempo passa rápido e que é necessário correr para tentar atingir os requisitos de sucesso que a sociedade impôs. E a cada aniversário celebrado, as incertezas, os medos e as marcas na pele aumentam.
O tempo rouba muitas coisas: amores, amigos, familiares, sonhos e ideais. Mas, tal qual uma lâmina de dois gumes, ele guarda em sua outra face o poder de cicatrizar o que ele mesmo feriu.
É o tempo que ajuda com a dor da perda, permite novas experiências, novas pessoas e garante mais aprendizados e maturidade. Ainda assim, lidar com essa força invisível que não se controla, nem se desvenda – é um desafio que confunde e inquieta. O que o tempo não apaga, ele transforma em memórias – boas e ruins.
Em um instante, podemos voltar a infância e recordar as brincadeiras na rua de casa, a escola e o sábado de manhã na frente da TV assistindo desenho. Ainda, a memória é a única energia capaz de tornar uma música, um perfume ou uma voz em momentos nostálgicos, como, por exemplo, Amado Batista me lembra os dias de faxina na casa de minha avó e o perfume de Alfazema recorda o cheiro do cabelo fino e branco de minha bisa.
Lembranças podem ser consolo, mas também fardos. Há memórias que desejamos profundamente esquecer, mas elas insistem, sem data e horário marcado, em voltar. Acontece também que esses fardos, apesar de indesejados, são necessários para ganhar experiências e evitar novos erros.
E no final do nosso tempo na terra, é a memória, mesmo que em retalhos ou confusa, que se revela como a riqueza mais valiosa que possuímos. Ninguém pode nos tirar esse tesouro. Ela sempre será o tecido do tempo que costura o que somos e nos tornamos.
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(*) A crônica “Tempo rei” faz parte do especial “Retratos”, produzido pelo Coletivo Caburé, parceiro de Meus Sertões. As reportagens do especial são sobre a memória de Recife, capital do estado de Pernambuco. Nele, jovens jornalistas passeiam por histórias, personagens e lugares que integram a cultura da cidade e contribuem para a construção de uma memória coletiva. Clique aqui para ler o material do caderno ninhego.
- Author Details

Estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco, integrante do Coletivo Caburé. Nasceu em Surubim, agreste de Pernambuco. O gosto por histórias surgiu através do tio violeiro que reunia a família na varanda da casa de alpendre para contar relatos e recitar versos.