O banquete dos abutres

O tempo está nublado e o calor intenso dá sensação de abafamento. No trecho de 17 quilômetros de estrada de terra que liga o povoado de Jequitibá, em Mundo Novo, à BR-407 (Vitória da Conquista [BA} – Piripiri [PI]) o cenário revela os efeitos da estiagem em um dos 140 municípios da Bahia em estado de emergência, desde setembro, por causa da seca.

A vegetação local é de transição, misturando espécies de Mata Atlântica com a da caatinga. As copas das maiores árvores estão verdes, mas as pastagens secaram. As cacimbas, os caldeirões e os poços de muitas fazendas só contêm lama. Às vezes, nem isso.

No caminho, um bando de urubus espreita. Pelo menos, 130 estão pousados em árvores, sobrevoando ou gingando ao redor do corpo de um boi morto há pouco tempo. Na ausência do urubu-rei, único da espécie com bico forte capaz de abrir as partes difíceis do alimento, os abutres assistem os mais afoitos tentarem fazer o serviço. As bicadas abrem buracos no couro, mas não permitem que o banquete seja servido.

Poucos quilômetros à frente, um cavalo magro deitado diante de um barreiro seco é um retrato do desalento em tempos de estiagem. Há dez meses não chove forte na região, segundo o diretor de recursos Hídricos e Meio Ambiente de Mundo Novo, Braes Souza Cordeiro.

CADEIA ALIMENTAR
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Não são apenas os animais que sofrem. No momento, Braes está mais preocupado com os moradores das áreas mais secas do município. São 100 famílias, cerca de 400 pessoas, que esperam até 30 dias na fila para recebimento de água por carro-pipa. Além da população, a prefeitura tem que abastecer nove unidades de saúde e disponibilizar água para a limpeza da feira livre e do mercado de carnes. Atualmente, quatro carros-pipas estão cadastrados.

“A gente não tem condições de atender demanda. Considero essa espera por carro-pipa humilhante. É preciso se preparar para enfrentar situações semelhantes. O povo tem que obter água com facilidade. Em 2017, fiz um relatório sobre a carência hídrica no município” – diz Braes.

O projeto previa a construção de novas barragens, a limpeza de açudes, a perfuração de poços artesianos, a troca de dessalinizadores e a ampliação do sistema simplificado de abastecimento, através de convênios com os governos federal e estadual, além da participação da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa). Até hoje só foi aprovado parte do projeto de instalação de uma água em casas da zona rural, via poço artesiano. A primeira parcela foi liberada recentemente pelo governo federal.

A lentidão das ações dos governos no auxílio dos municípios que dependem, praticamente, da verba do Fundo de Participação dos Municípios impede que as cidades se preparem adequadamente para a convivência com a seca. Fatores como o desmatamento – agravado pela fiscalização deficiente de órgãos ambientais -, problemas operacionais das concessionárias de abastecimento de água e as mudanças climáticas deixam a situação caótica.

REALIDADES OPOSTAS

O território de Mundo Novo foi uma grande sesmaria arrematada em leilão pelo Visconde de Itapicuru. Em 1833, para fugir dos efeitos da seca, José Carlos da Mota, de Alagoinhas, e outros dois companheiros partiram em busca de um lugar que houvesse água abundante e condições adequadas para a criação de animais e para a agricultura. O grupo, ao chegar no local conhecido nos dias de hoje como Engenho, ficou impressionado com as matas, a qualidade do solo e os mananciais de água. José Carlos teria dito que chegara a um “mundo novo” e deu início a povoação, que se emancipou 63 anos depois.

Por ter um clima diferenciado e ser a cidade que tinha o maior índice pluviométrico da região – média de 1.020 mm por ano contra menos 800 mm das cidades vizinhas -, Mundo Novo conseguiu conviver com relativa tranquilidade aos períodos de estiagem até por volta do ano 2000, de acordo com Braes Cordeiro.

“Embora faça parte do semiárido, sempre tivemos influência da Mata Atlântica. Por isso, não nos preparamos para períodos críticos de seca. Mundo Novo não tem grandes açudes, nem grandes barragens. Sempre havia água, mas a situação começou a mudar a partir de 2012” – atesta o diretor municipal de recursos hídricos.

Braes atribui o colapso hídrico à mudança climática e, acima de tudo, aos desmatamentos. Ele lamenta que os proprietários de terra não tenham sido educados para preservar o meio ambiente. Ressalta que pecuaristas e agricultores têm aberto muitas áreas, sem se importar com o impacto ambiental.

Mundo Novo faz parte da bacia hidrográfica do rio Paraguaçu e é abastecido pela Barragem do França, instalada no rio Jacuípe, assim como Piritiba e Miguel Calmon. As três cidades possuem cerca de 80 mil habitantes. A capacidade da represa é de 24 milhões de metros cúbicos de água. No entanto, atualmente, o volume está em 12% do total (2,8 milhões de m³).

Um outro fator fez com que o abastecimento entrasse em colapso: problemas técnicos e operacionais da Embasa deixaram o município sem água durante quatro semanas. No dia 30 de outubro, a concessionária disse em nota que “um quebramento da adutora impediu a normalização do abastecimento”. No dia 13 de novembro, falta de energia danificou um equipamento elétrico e interrompeu o funcionamento da barragem.

“Os problemas foram resolvidos, mas o sistema requer mais alguns dias para ficar 100%. As casas nas partes mais altas não estão sendo abastecidas”, – explica Braes.

REDUÇÃO DO REBANHO

O censo agropecuário do IBGE registrou que o rebanho de Mundo Novo, em setembro de 2017, era formado por 53.562 cabeças de gado. Dados extraoficiais da prefeitura dão conta que a estimativa no início deste ano era de 45 mil exemplares (16% a menos). Com as pastagens “encapoeirando”, a falta de pastagens e pouca água, muitos proprietários levam os animais para venda no sul do estado.

A Fazenda Jequitibá, administrada por um religioso da ordem cisterciense, cogita se desfazer das bezerras que seriam utilizadas para reprodução. A propriedade tem cerca de 160 animais grandes e pequenos e enfrenta problemas para alimentá-los.

“O gado adulto tem que caminhar duas léguas (12 quilômetros) para beber água, o que maltrata bastante. O capim está acabando e não há pastos para alugar. Encontrei apenas um pequeno plantio de palma e ele não dura muito. Um comprador fez uma oferta por alguns animais e estamos analisando a proposta” – diz o irmão Antônio Fraga de Lima, 62 anos, atual responsável pela administração.

A população de Mundo Novo espera chuva em dois períodos por ano: no “inverno”, entre março e junho; e durante o período das trovoadas, do final de outubro e até fevereiro. Na segunda-feira (25/11) choveu de forma desigual. Em alguns locais a precipitação foi de 40 mm, em outros, apenas alguns pingos. A água que caiu foi insuficiente para encher aguadas e rios.

O estado de emergência tem a duração de seis meses, podendo ser renovável por igual período. Passados pouco mais de dois meses da decretação, os gestores de Mundo Novo dizem que o único ato efetivo foi a autorização do governo estadual para a contratação de mais três carros-pipas. Sem prestadores de serviço na região, devido ao excesso de demanda, a solução foi recorrer a profissionais de Salvador, a 305 quilômetros de distância.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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