Precisamente no dia 16 de maio de 2019, pela primeira vez, tive informações sobre o barco de fogo, artefato artesanal criado para cruzar rio Piauitinga pelo ar, propulsionado por espadas de pólvora e estrelinhas que brilham no escuro. A descrição serviu de gatilho para minha imaginação forjada em livros de histórias da carochinha [1] e das mil e uma noites [2], comprados por meu padrinho Azevedo e minha tia Judith para os meus primos, mas que talvez tenha sido eu quem mais aproveitou.
Enquanto me imaginava no comando de um barco mágico, singrando o céu, vi a escultura de um deles no Largo da Gente Sergipana, na orla de Aracaju. Sem os fogos, as luzes e os adereços que exibe no concurso anual de Estância, e sem a velocidade de “dobra espacial” consagrada no universo ficcional de “Jornada nas Estrelas”, ele pairava no ar, entre as oito estátuas que representam as manifestações folclóricas do estado [3].
Na hora, decidi comprar um deles, em tamanho natural, para integrá-lo ao pequeno museu de Meus Sertões, que organizo aos poucos. Também anotei mentalmente o tema para uma pauta futura, adiada muitas vezes por causa da pandemia de covid.
Quatro anos depois, de passagem pela região, decidi ir a Estância, intitulada capital sergipana, brasileira e mundial do barco de fogo. Minha intenção era começar a produzir a reportagem.
Cheguei em um domingo, tudo fechado, as ruas praticamente desertas. Encontrei alguns jovens na praça da Igreja Matriz de Nossa Senhora de Guadalupe, mas eles não sabiam informar nada sobre a principal manifestação cultural da cidade. Um deles me disse apenas que a casa de cultura, onde eu poderia obter mais informações, estava desativada. Para mitigar a decepção, me detive diante de alguns casarões azulejados e passei a apreciar os belos prédios. Ainda adocei um pouco a vida, tomando um sorvete, e segui viagem.
Dia 10 de junho de 2023, li em uma postagem na internet que o São João de Estância tinha 30 dias de duração. Mais: no dia seguinte seria comemorado o Dia do Barco de Fogo, com a apresentação de 11 deles no forródromo municipal. Onze de junho é a data de aniversário de Antônio Francisco da Silva Cardoso, o Chico Surdo, criador do barco pirotécnico, no final da década de 1930.
Preparei a mochila, alimentei e deixei comida e água suficiente para Zeus e Juno, casal de cães caramelos que adotei, e embarquei no velho Siena para ver e contar um dos espetáculos mais deslumbrantes da terra.
“Não tem como dar errado”, pensei. Pior que deu.
MEMÓRIA
A programação do Dia do Barco de Fogo começa, nos últimos anos, com o cortejo dos Marujos de Chico Surdo, formado por agentes culturais, fogueteiros, cantores e brincantes, cujo objetivo é preservar a memória e o legado do inventor do barco. O terceiro desfile da história agremiação criada em 2019 [4], estava previsto para começar por às 19 horas. Atrasou tanto que deu tempo para a chuva forte chegar pouco mais de dois minutos após o grupo sair pela rua Pompeu, a principal do bairro Porto da Areia.
O desfile da marujada é dividido em alas. Na frente, seguem fogueteiros que fazem coreografia e dançam com as espadas de fogo, pólvora e limalha de ferro. O bloco, chamemos assim, tem na primeira linha três pessoas vestidas com uniformes estilizados de oficiais da Marinha. Cada um carrega uma bandeira: a do município, do estado e do Brasil.
A ala seguinte traz estandartes com foto de Reginaldo Lima, um dos idealizadores do cortejo, e de Chico Surdo, cujo nome verdadeiro era Antônio Francisco da Silva Cardoso.
Uma pausa na descrição do desfile para falarmos mais um pouco sobre o inventor do que é considerado como o maior símbolo da cultura sergipana.
Chico Surdo nasceu 1907, na rua Voluntários da Pátria, no bairro Botequim. Desde criança acalentava o sonho de ser marinheiro, mas não pode concretizá-lo, supõe-se, por ser deficiente auditivo. O poeta, ator, bailarino e “capitão” [5] dos Marujos, Wilton Santos, 37 anos, contou que o então jardineiro municipal passou a acalentar a ideia de fazer um barco voador.
Um fator importante a ser ressaltado é que embarcações sempre fizeram parte da cultura e da vida do povo de Estância. Por centenas de anos, a localidade foi abastecida através de embarcações que atracavam no Porto da Areia. E boa parte da população, principalmente a do bairro Quilombola, sobrevive até hoje da pesca.
Voltando às experiências de Chico Surdo: primeiro ele usou espadas de fogo tentando fazê-las atravessar o rio. O plano naufragou.
Em seguida, segundo Wilton, construiu um barco de papelão grosso para deslizar sobre um fio de arame esticado e preso entre dois mastros. Propulsionado com espadas, desmanchou antes de chegar a outra margem.
O sucesso só ocorreu depois de ele utilizar uma carcaça de madeira, revestida de papelão, movida a pistoletes de pólvora. A invenção foi sendo aperfeiçoada. Aos poucos, passou a ser enfeitada com papel laminado e bandeirolas de papel fino. Por fim, ganhou bastões de fogos com efeito de chuva de prata para iluminar a travessia.
Chico morreu de infarto, aos 64 anos, em 1971.
NO MEIO DO TEMPORAL NINGUÉM É REI, MEU SENHOR
A formação do cortejo, após os estandartes, era constituída pelas rainhas juninas Suzana Calazans, a adulta, e Manuela Macedo, a mirim. Elas eram seguidas pelos brincantes, principalmente estudantes que dançavam ao ritmo do samba de coco, batendo os tamancos e coreografando os passos; pelos músicos, pelo cantor e pelo carro de som.
Importante observar que os instrumentos utilizados eram tambores de variação e de marcação, ganzás e pandeiros. No passado, a batucada estanciana incluía a porca, sinônimo de cuíca. Com o tempo, ela foi esquecida.
O temporal desabou pouco mais de dois minutos após o início do desfile, atrapalhando-o. Poucas espadas foram acionadas como abre-alas. A cantoria entoada a plenos pulmões durante a concentração foi sendo minada pela força da água. Mesmo sendo obrigado a deixar de seguir o grupo a pé para ir de carro até o forródromo, o refrão de uma das músicas grudou na minha mente:
“Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou marujo”
E por que a marujada não carrega nenhum barco de fogo no cortejo?
Por que eles são as principais atrações da noite e há uma apresentação em espaço nobre. Onze deles devem singrar os 500 metros de arame do forródromo Rogério Cardoso [6], após a chegada e apresentação do cortejo.
Por alguns minutos, a chuva deu uma trégua. Assim pude chegar ao local onde as embarcações ficam expostas antes de partirem, iluminando a noite. É como ficassem em um estaleiro, antes do batismo e de serem lançados ao mar. Foi lá que encontrei Domingos Martins de Jesus, o Mingo, integrante da linhagem de grandes fogueteiros do Porto da Areia, retocando o seu barco.
Ele contou que no dia 11, as embarcações exibidas são bem mais simples do que as do dia 25 de junho, quando há a disputa de melhor barco de fogo da cidade. Mantidas às devidas proporções, os artefatos de competição lembram os carros alegóricos de escolas de samba: seguem um tema, carregam esculturas e alegorias e possuem um beleza ímpar.
“Hoje, a prefeitura paga R$ 1.200 para todo barco que completar o percurso inteiro. No dia da competição, os três primeiros colocados ganham R$ 6 mil, R$ 4 mil e R$ 3 mil, respectivamente. Os participantes são avaliados por uma comissão que julga quesitos criatividade, luminosidade, beleza, conjunto e desenvolvimento do percurso”, explicou o “capitão” Wilton.
Seu Domingos, quinze dias depois, conquistaria o terceiro lugar no superconcurso, enfrentando integrantes da família de seu Quequéu, baluarte da família Batista Santos. Seus dois filhos, Ariosvaldo e José Marcos, foram o campeão e o vice. Mas a história do bairro Cidade Nova estar quebrando a hegemonia do Porto da Areia será contada amanhã.
Após entrevistar Mingo Fogueteiro , faltava vê-lo em ação. Como preliminar, assisti adolescentes e adultos se divertirem, soltando busca-pés na quadra destinada para essa bela e perigosa diversão.
De repente, o céu desabou. O público – inclusive eu – se espremia sob os toldos das barracas de pastel, acarajé e salgados ou procurava uma nesga de marquise, tentado evitar se molhar. Uma hora e meia depois, com frio e com as roupas encharcadas, a situação permanecia a mesma. Cansado de esperar, resolvi ir embora.
No carro, cogito mudar a pauta. Em vez de escrever sobre barcos de fogo, melhor seria falar sobre o Porto da Areia e sobre os moradores de lá, uma espécie de Tirésias [7] tupiniquim, que vivem metade do ano como fogueteiros e a outra parte como pescadores.
A chuva parou mal cheguei na pousada.
De longe, ouvi os alto-falantes anunciando que a apresentação dos barcos de fogo iria começar. (Amanhã, o segundo capítulo)
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Notas de rodapé
[1] O termo “carochinha”, atrelado à imagem de “uma velha bondosa e afável a distrair os pequenos com suas narrativas feéricas”, foi introduzido no nosso folclore através da obra Histórias da Carochinha, uma coleção de textos oriundos da tradição oral, organizada por Figueiredo Pimentel e que veio a ser o primeiro livro infantil publicado no Brasil, depois de 1920, para acalentar as crianças.
O termo “carochinha”, atrelado à imagem de “uma velha bondosa e afável a distrair os pequenos com suas narrativas feéricas”, foi introduzido no nosso folclore através da obra Histórias da Carochinha, uma coleção de textos oriundos da tradição oral, organizada por Figueiredo Pimentel e que veio a ser o primeiro livro infantil publicado no Brasil, depois de 1920, para acalentar as crianças. Fonte: Academia Brasileira de Letras
[2] As Mil e uma noites é o título de uma das mais famosas obras da Literatura árabe, reunindo uma coleção de contos escritos entre os séculos XIII e XVI. ” As Mil e uma Noites se tornou conhecida no ocidente a partir de 1704, graças ao orientalista francês Antoine Galland. O livro passou por diversas adaptações, a versão atual se baseia nas traduções de Sir Richard Burton e Andrew Lang”. Fonte: Brasil Escola
[3] – Lambe sujos e caboclinhos (Folguedo que relembra as lutas entre negros e indígenas), Bacamarteiros (Grupo que incorpora aos festejos juninos o ritual de fazer disparos com bacamartes em alusão à homenagem ao nascimento de São João Batista, prestada por parte dos soldados nordestinos que estiveram na Guerra do Paraguai), Cacumbi (Dança apresentada na Procissão de Bom Jesus dos Navegantes e no Dia de Reis para homenagear São Benedito e Nossa Senhora do Rosário), Parafusos (Com a assinatura da Lei Áurea, os escravizados libertos saíram às ruas de Lagarto (SE) para comemorar, vestidos com anáguas furtadas. Assim que os viu rodopiando e dançando, o padre Saraiva Salomão os apelidou de “parafusos”. A tradição permanece até hoje), Reisado (Folia de Reis), Chegança, (Folguedo que que representa a luta dos cristãos pelo batismo dos Mouros), Taieira (Grupo de mulheres tradicionalmente vestidas de baianas, que acompanha o andor de Nossa Senhora do Rosário, no dia de Reis e no de são Benedito, louvando, dançando e cantando os santos padroeiros negros) e Dança de São Gonçalo (Homenagem a São Gonçalo de Amarante, no dia 10 de janeiro).
[4] Durante 2020 e 2021 não houve cortejo devido à pandemia de Covid 19
[5] Capitão é o agente cultural que tem a função de passar para as crianças e adolescentes da comunidade a letra e a cantoria entoada durante o cortejo. É um “posto” vitalício. Wilton também é um dos cantores dos Marujos de Chico Surdo.
[6] Cantor estanciano que transformou a música “Sergipe é o país do forró” em hino junino. Cardoso morreu aos 57 anos, em 2014, de problemas hepáticos, causados por sequelas da esquistossomose contraída ainda na infância.
[7] Na mitologia grega, Tirésias é o adivinho tebano que teve a experiência de ter vivido biologicamente como homem e como mulher, o que permitiu conhecer bem o funcionamento do corpo masculino e feminino.
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Legenda da foto principal: Domingos Martins de Jesus, o Domingos Fogueteiro do Porto da Areira. Foto: Paulo Oliveira/Meus Sertões
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.