Não sei o que mais me impressionou em Estância, capital sergipana, brasileira e mundial do barco do fogo, artefato pirotécnico de rara beleza criado e desenvolvido na cidade, no final da década de 1930. Os braços e a mãos cobertas de pólvora, dando um tom prateado à pele parda de Valter Santos do Nascimento, 63 anos, fogueteiro e pescador do Porto da Areia foi o que primeiro me chamou atenção.
Depois, quando retomei à apuração sobre as embarcações e seus projetistas duas semanas após a noite chuvosa do Dia do Barco de Fogo (11 de junho), fiquei fascinado com o Castelo de Harry Potter criado por Domingos Martins dos Santos, o Mingo Fogueteiro, que conquistou o terceiro lugar no concurso anual de embarcações fantásticas. Aliás, foi quando me ocorreu que os barcos voadores de Sergipe estão, mantidas as devidas proporções, cada vez mais parecidos com as alegorias dos carros das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Por fim, o entusiasmo e, confesso, a admiração definitiva, veio durante a conversa com Ariosvaldo Batista Santo, 33 anos, um dos filhos de seu Quequéu, decano dos fogueteiros estanciano. Ele explicou detalhadamente como são planejados e produzidos os barcos de concurso. No processo, são feitos pesquisas e cálculos matemáticos que evitam panes e naufrágios.
Nesse universo fantástico cabem pitadas de rivalidade. Ainda mais que nos últimos anos, a família Santos, do bairro Cidade Nova, quebrou a hegemonia do pessoal do pessoal do Porto da Areia. A disputa, no entanto, fica restrita ao “sentido esportivo”:
“Como em toda competição, nenhum time quer perder. Então cada um vai se empenhar o máximo possível para atingir um bom resultado”, resume Ary do Barco de Fogo, apelido que usa no Instagram, onde registra algumas proezas.
E parodiando Tomás Chiaverini, jornalista responsável pelo melhor podcast da atualidade, o Rádio Escafandro: a reportagem sobre os fogueteiros já começou.
O BRILHO DO PORTO DA AREIA
Foi o poeta, ator e bailarino Wilton Santos, agente cultural do Porto da Areia, que me apresentou a Valter Santos do Nascimento, o seu Valter, sentado em um degrau na calçada em frente ao monumento do Cristo. O brilho da pólvora em suas mãos e parte do braço impressionam. Valter, é fogueteiro entre novembro, quando sai para buscar as varetas de taboca (tipo de bambu usado na confecção de espadas de fogo e busca-pés ou flautas – pífanos – em outras regiões do Nordeste), e julho, no final dos festejos juninos.
Nesse período, o trabalho consiste em ir buscar as varas de bambu no mato e colocá-las para secar sob o sol durante 15 dias. Em seguida, serrar o bambu em 12 pedaços iguais. Os pedaços de tabocas são cozidos com carrapaticida ou sal grosso, como preferem os mais velhos, para evitar gorgulhos[1]. Neles são depositadas quantidades de pólvora, socada e embarrada.
Já a pólvora é produzida a partir da mistura de enxofre, salitre e carvão. Wilton explica que não é da lenha de qualquer árvore que se faz o produto. A preferência é pela embaúba. Ludicamente e para preservar a cultura, Estância preserva a pisa da pólvora em pilão. O ritual, em passado distante, deu origem às batucadas estancianas. Embora seja possível assistir a pisa em vídeos no You Tube, em fotos nas redes digitais e até em escultura a céu aberto no município, na prática, a pólvora é obtida através de um maquinário. Sem ele, a produção de fogos de artifício, vendidos para outras cidades de Sergipe e da Bahia, seria impossível de ser atingida.
“Cinco homens em um pilão levam uma semana para produzir três sacos de pólvora. Já a máquina obtém 15 sacos em um dia” – compara o agente cultural Wilton Santos.
Valter começou a produzir fogos aos 18 anos com Tonho Lixa, à época seu cunhado. No dia 11 de junho, pouco antes do horário marcado para a apresentação dos barcos, ele ainda estava no barracão, preparando espadas e busca-pés, daí o brilho da pólvora incrustada nos braços e nas mãos. O veterano fogueteiro tem três ajudantes. Dependendo da carga, uma espada pode custar até R$ 50.
Preocupado em preservar o seu legado, seu Valter já está preparando um filho e um primo para sucedê-lo.
A MAGIA DE MINGO FOGUETEIRO
Na noite do barco de fogo, no dia 11 de junho, seu Domingos Martins de Jesus, o Mingo Fogueteiro, retocava a embarcação que dispararia em menos de uma hora, se não fosse a chuva. É que ao tirar o bólido do carro, um pistolete, por onde sai a chuva de prata, ficou danificado. Atento ao serviço, se assustou quando me aproximei e puxei conversa.
Mingo me explicou que o artefato que estava reparando era de um modelo simples, com um arranjo bonito para homenagear Chico Surdo, mas que estava preparando uma surpresa para a competição oficial. Detentor de um título, um segundo e um terceiro lugar nas disputas pelo mais belo barco de fogo de Estância, seu Domingos, depois de eu insistir, disse apenas que o arranjo que planejara era um castelo. Na verdade, o que eu viria a descobrir duas semanas depois é que se tratava de algo que está na imaginação da geração de jovens que está próxima dos 30 anos e que se encantou com as aventuras de Harry Potter. A magia lhe rendeu mais um terceiro lugar no currículo.
Seu Domingos começou a fazer barcos no final da adolescência. De lá para cá, se passaram 48 anos. Ele conta com orgulho que conheceu Chico Surdo, Tonho Lixa, Zé Vermelho e Valdemar Guajiru, os mais famosos fogueteiros da cidade. Dos quatro, o que mais lhe impressionou foi Tonho, que fazia um “fogo bem caprichado”. Ele aprendeu a fazer bruxarias pirotécnicas observando o mestre, com quem trabalhou. Hoje, é ele quem passa os segredos da arte de construir barcos de fogo para o filho e para o neto.
Mingo também fabrica espadas e busca-pés. No início do mês, ele tinha vendido praticamente tudo o que fabricou este ano: 100 dúzias espadas e 30 dúzias de busca-pé. As catanas de fogo, mais poderosas nas festas juninas do que os sabres de luz dos cavaleiros de Jedi em Guerra nas Estrelas, foram vendidas para São Cristóvão e Aracaju, em Sergipe, e para várias cidades baianas.
Para produzir os fogos, ele utilizou 200 varas de bambu, cortadas em 12 gomos iguais. Cada barco consome quatro deles, os demais são destinados ao arsenal junino. No passado, as varetas eram gratuitas, hoje elas são vendidas pelos donos dos terrenos onde crescem a R$ 2 reais a unidade.
O veterano tem consciência que a função que exerce durante a metade do ano é perigosa, mas diz que toma cuidados adicionais para não provocar acidentes.
“Quem trabalha com pólvora não pode fumar, não pode ficar tomando cachaça porque o cara que bebe não tem juízo. É por isso que só trabalho com meu neto e meu filho. Eles não fumam nem bebem. No meu barracão também não tem luz. Esse negócio de energia pode provocar um curto-circuito e cair na pólvora” – explicou.
Apesar da intensa atividade com pólvora e fogos, Domingos se considera mais pescador do que fogueteiro. Nascido do Porto da Areia, ele aprendeu a manusear a rede de pesca ainda menino. Mais velho, mal passava o São João, ele ia pescar. Hoje em dia, faz as coisas com mais calma porque conseguiu se aposentar.
O CAMPEÃO DA CIDADE NOVA
Ariosvaldo Batista Santos, o Ary do Barco de Fogo, 33 anos, se lançou na arte de produzir fogos de artifício bem cedo. Aos 12 anos, construía barcos que eram inscritos na principal competição com o nome do pai, Quequéu Fogueteiro. A disputa não é aberta às crianças e aos adolescentes. A influência paterna fez os três filhos seguirem o mesmo ramo. Os Batista Santos, diferente da tradição, são do bairro Cidade Nova e só pescam na maré do Crastro, na Ponte de Terra Caída e na praia do Saco por diversão.
A embarcação campeão de 2023 teve como tema a rua Nova. A sinopse do enredo para quem não conhece Estância é a seguinte:
Essa rua representa a tradição do busca-pé. As batalhas com fogos de artifício, que duram até o amanhecer, são esperadas o ano todo pela população. O espetáculo é animado por batucadas e tocadores de ganzá. Os soldados usam macacões antigos de fábricas, roupas de couro e capacetes para não se queimarem. O trecho iniciado entre a igreja e a casa do Dr. Jorge é o “campo de guerra”. Somente ali é permitido soltar os rojões.
A temporada de busca-pés é aberta com o acionamento de um barco de fogo. Depois o couro come.
Com a temática definida, é iniciado o processo de fabricação. Ary explicou que o passo seguinte foi definir o que caracteriza a rua e quais alegorias cabem na embarcação: a praça, a igreja, as casinhas de palha, os foliões. Nessa hora é preciso controlar ansiedade para não produzir muitos elementos que tornem confuso o entendimento do enredo.
A fase seguinte é a confecção da embarcação. São feitos cálculos para a elaboração do projeto. Um erro impede a perfeita execução do percurso. Há casos de artefatos que só chegam à metade do percurso e de colisões no final da primeira parte do trajeto.
O barco campeão, nas cores vermelho prata e preto, tem seis quilos e meio de material de chuvinha prateada e seis quilos e 300 gramas de pólvora preta. A carcaça pesa cerca de quatro quilos. O peso e a estrutura estão relacionados à resistência do arame e à velocidade. O bólido da rua Nova percorreu os 500 metros de extensão do arame em um minuto e 40 segundos. A velocidade estimada é de 36 quilômetros por hora.
Ary revelou que a embarcação foi construída com a ajuda da esposa Marisa e o filho Brian, 12 anos, responsáveis pela forragem, a beleza e o acabamento. Ele contou ainda com a ajuda de um amigo fogueteiro. A fabricação consumiu cerca de 20 horas por seis dias consecutivos.
O esforço rendeu R$ 6 mil para o campeão. Essa quantia, segundo Ariosvaldo, será utilizada para o cobrir os custos superiores a R$ 5 mil. O mais importante para ele é que desde 2018, fora os dois anos em que a competição não foi realizada por conta da pandemia de covid, ele e os dois irmãos, José Marcos e Michael, se revezam entre os três primeiros colocados nas categorias barco, espadas e busca-pés.
“Esse ano, o José foi vice-campeão com o barco sobre Cordel e primeiro colocado na espada. Em 2022, ganhei essa categoria. Todo ano é assim. A disputa é entre nós” – vibrou o atual presidente da Associação dos Agentes Culturais da Cidade de Estância. (ACCE).
A quebra da hegemonia dos fogueteiros do Porto da Areia criou uma rivalidade com os representantes da Cidade Nova. Mas isto não é visto como um problema por Ary. Fora do forródromo e da disputa, os 23 fogueteiros do município, divididos em duas associações, se ajudam. (Na próxima semana, o terceiro e último capítulo)
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Nota de rodapé
[1] Também conhecidos como carunchos, os gorgulhos são pequenos besouros herbívoros. Existem 97 mil espécies deste tipo de inseto, sendo que várias delas são consideradas pragas por danificarem culturas agrícolas, incluindo trigo, milho e algodão.
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Legenda da foto principal: Barco com o tema Castelo de Harry Potter, de Mingo Fogueteiro. Foto: Alisson Drone/Prefeitura de Estância
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.