Arte de licuri e aves de madeira

José Valdo Rosa nunca gostou de trabalhar na empreiteira que fazia a manutenção de linhas de transmissão de energia. Apesar de elogiado pelos chefes, pois assumia funções diferentes de acordo com a necessidade,  não suportava duas coisas: acordar cedo durante o inverno, principalmente nos estados do sul do país onde o frio é mais intenso, e viver, constantemente, com as botas molhadas.

Foram dez anos nesta batida. Laborando em áreas encharcadas, com com os pés quase sempre enrugados. Um dia, no Ceará, decidiu voltar a Santa Brígida, onde seus pais – uma alagoana, de Água Branca, e um pernambucano, de Águas Belas – se fixaram, seguindo a trilha e as façanhas do beato Pedro Batista.

Retornou com a intenção de nunca mais ter patrão e gozar de mais liberdade, fazendo suas próprias horas.

INCENTIVO FUNDAMENTAL

Observando o movimento de romeiros que viajavam para Juazeiro do Norte (CE) começou a fazer ex-votos (ou como se diz em Santa Brígida “promessas”, na verdade, esculturas de madeiras usadas para agradecer graças alcançadas). Muita gente vivia do ofício, mas eram poucos os que caprichavam na feitura de peças que reproduziam os membros do corpo humano e animais de estimação, incluindo cães e bois.

O artesão José Valdo (D) e suas esculturas de pássaros. Foto: Paulo Oliveira
José Valdo (D) e suas esculturas. Foto: Paulo Oliveira

Encontrou dificuldades, inicialmente: as peças não ficavam bonitas, o processo de produção era lento e, por ser desconhecido no mercado, tinha dificuldades para comercializar seus produtos. Concluiu que a maioria dos problemas seriam resolvidos com a prática. Produzia nos dias úteis e se aventurava na feira de Paulo Afonso, a cerca de 50 km de sua cidade natal, no final de semana.

Um elogio feito por Dona Dalva, professora de corte e costura, impediu que desistisse. Mudou de estilo e ganhou agilidade. Em três horas, usando machado, faca e facão produzia uma peça bem-acabada e cobrava entre R$ 30 e R$ 100, dependendo do esforço que fizesse.

O passo seguinte foi se filiar à Associação de Artesãos de Santa Brígida, sediada no povoado de Morada Velha, a nove quilômetros da sede do município. Juntou-se com outras 21 pessoas –  13 mulheres e oito homens – que trabalham com palha de licuri (palmeira sertaneja) e madeira.

APRENDENDO COM A NATUREZA

Quando os pedidos de ex-votos sofreram redução, os artesãos inovaram A solução veio com a observação da natureza. Iniciou a produção de pássaros e arranjos que reproduzem o ambiente em que eles vivem.

As esculturas de galos-de-campina, azulão, sofrê, sabiá e corujas eram menores, fáceis de transportar e custavam menos. Resultado: vendiam mais. A proporção passou a ser de 100 bichinhos vendidos para cada ex-voto.

“Passarinhos de madeira todo mundo quer. Ex-voto é só para quem vai pagar promessa” – explica o artesão.

José Valdo  também aprendeu a trançar a fibra de licuri e produzir conjuntos de mesa (cobre-bolos, descanso de panela e porta-copos) e cuias. Virou professor para ensinar seus camaradas.

Trinta e cinco artesãos e artesãs de Santa Brígida, Euclides da Cunha e Jeremoabo trabalham com fibra de licuri e madeira. Foto: Paulo Oliveira
Artesãos de três cidades se uniram para fazer belos trabalhos

Uma ave deu um toque especial ao trabalho de fibras e de madeira: a arara-azul-de-lear, cujos espécimes, em risco de extinção, estão sendo preservados em Jeremoabo, a 53 quilômetros de Santa Brígida.

Assim, 45 artesãs e artesãos de três comunidades –  Morada Velha, Chuquê (Jeremoabo) e Serra Branca (Euclides da Cunha) – se uniram, com o apoio do Sebrae (Sistema Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). E criaram o sistema de trabalho, que visa a preservação desta arara e dos licurizeiros.

O licuri (fruto) é o principal alimento destes pássaros. Em vez de derrubar as palmeiras, os artesãos passaram a aproveitar apenas as folhas, tiradas criteriosamente. A derrubada acabaria com a fonte de renda dos humanos e aceleraria a extinção das aves.

As folhas retiradas são rapadas até ficar a fibra. Em seguida, o material é posto para secar e passa por processo de tingimento natural com cascas de outras árvores, sementes e frutos – dentre eles, jenipapo, castanhola, urucum, pau-ferro e São João.

Trançadas, as fibras se transformam em conjuntos de mesa (cobre-bolo, descanso de panela, porta-copos) e cestos. Para dar um toque ainda mais criativo, são afixadas pequenas esculturas de araras-azul-de-lear ou de outros pássaros. A cestaria custa, em média, R$ 20, a unidade.

Já a escultura das aves é feita com madeira de umburana caída. Os galhos para arranjos são retirados verdes de árvores com copas frondosas.

A reprodução do habitat do João de barro é feita com madeira, coco, areia e cola. Foto: Paulo Oliveira
Ninho de joão-de-barro é feito com coco, areia e cola. Foto: Paulo Oliveira

Incrível também é o arranjo de um ninho de joão-de-barro, feito com coco, areia e cola.

MAIS RENDA

Aos 54 anos, José Valdo, casado com Dona Lourdes e pai de quatro filhos, diz que a vida melhorou graças à Associação de Artesãos, que também tem como parceiros, a ONG Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecologia (Aghenda), o Centro Público de Economia Solidária (Cesol) da Secretaria Estadual de Trabalho, a Associação Movimento João de Barro, o Instituto Mauá de Salvador.

“Um trabalho desse, de geração de renda, é ótimo. Antes, vivíamos da agricultura. Parou de chover. Quando plantamos, não vinga. Então, o artesanato é uma excelente opção”

A associação de artesãos fica com 10% de cada peça vendida para manter sua estrutura. Normalmente, as peças de madeira são vendidas “cruas”, mas podem ser pintadas na cor dos pássaros.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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