Desenterro do cão

Sob o sol escaldante e em silêncio, o cortejo alternava o ritmo da caminhada, de acordo com o terreno. Suado, Quinho de Manoel Guarda, em passos apressados, carregava uma caixa de papelão e Ancelmo de Lourdes Libânia levava nos ombros uma pá. Dentro estava o cadáver de Mimo, um cachorro chato que foi companhia de Carmelita Cruz durante anos. Seguiam em direção a um riacho. Estavam numa missão: enterrar o animal. Tinham sido pagos para a tarefa. Mas não queriam cumprir o acordado.

Não consideravam nada cristão enterrar o animal. Uma heresia. Não se tem notícia de que na história da pequena e calorenta Rodelas o cadáver de um animal tenha tido tal destino. Quem presenciou o episódio, acontecido há mais de dez anos, não o esqueceu. Algum dos personagens tivesse lido ou visto o clássico da literatura nordestina, “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, as coincidências com o que estavam protagonizando não seriam tantas.

Só que não contavam com a determinação da dona do cão que, desconfiada das intenções da dupla, queria ver o animal ser enterrado. Não segurava a emoção só em imaginar seu camarada sendo devorado por urubus. Os dois caminharam muito. E Carmelita Cruz, quase octagenária, não desistia. Eles imaginaram que ela não os acompanharia por muito tempo. A ideia era descartar o cadáver na primeira oportunidade. E voltar para pegar o dinheiro. Numa terra seca, deram com os burros n’água.

E a realidade cruzou com a ficção quando Dora, do “Auto da Compadecida”, pagou para que o enterro da cadelinha de estimação fosse acompanhado pelo padre João e com recomendações da alma do animal em latim. No enterro de Mimo não se chegou a tanto, mas houve acompanhantes que não seguravam o riso. De vez em quando, a gaitada. Eram repreendidos pela dona do cão, que não admitia tal desconsideração.

PEITO DE FRANGO E OUTRAS REGALIAS

Mimo tinha regalias de cachorro rico, outra coincidência com a história de Ariano Suassuna. Além das rotineiras visitas ao veterinário, tinha uma alimentação que causava inveja a muita gente. O cachorro gostava muito de peito de frango. E a sua dona fazia suas vontades. Esta parte da ave era dele, e apenas dele. E nem os próprios filhos e netos tinham o direito de dividir o filé. Também gostava de presunto com arroz e de uma aguinha gelada. Ela chegou a ouvir de um amigo que gostaria de estar no lugar do cachorro pela comida de primeira que ao cão era oferecida. E não foram poucas as vezes que  Mimo torceu o focinho para o que fora colocado no prato.

D. Carmelita usava o pau de pereiro para proteger Mimo

Várias foram as vezes que dona Carmelita interveio nas brigas de Mimo com outros cães, que com certeza invejavam a sua vida boa. Entrava no meio da arenga. Se arriscava levar uma mordida ou cair e ter um osso partido. Levou algumas quedas nestas intervenções. Não gostava de ver Mimo tomar dentadas – mas quem foi mordido por ele, sim. Para prevenir, quando saía com o animal levada um pedaço de pau de pereiro, árvore conhecida pela resistência. Dizia que o objeto servia como muleta. Mas, na verdade, era usado como porrete, para bater nos inimigos do seu amiguinho.

O nome foi emprestado de Mimo, índio fulni-ô, da aldeia localizada em Águas Belas, zona da mata pernambucana. Dona Carmelita achava engraçada a maneira que dona Nair, que o criou, o chamava, com uma voz bem aguda.

MEDO DO CASTIGO DIVINO

Quinho e Ancelmo chegaram ao riacho com a dona do cão nos seus calcanhares.

Os dois temiam os castigos que cairiam sobre o Rudela, caso se concretizasse o desejo da dona do cachorro. Um deles seria uma estiagem de mais de cinco anos. Bem, numa região que quase não chove uma cidade ficar meia década sem chuva, seria demais. Chegaram a um local e tiveram que cumprir o trato. Cavaram um buraco e jogaram o cão dentro, a caixa serviu como urna funerária. Depois, os dois tomaram umas doses de cachaça. Não para beber o morto, mas para enfrentar os problemas de consciência.

E retornaram preocupados. Afinal, a cidade nunca assistira um enterro de um cachorro. E eles seriam os responsáveis pelo castigo aplicado num município já castigado, além da gozação eterna.

O DESENTERRO

Já com o dinheiro no bolso e depois de outros goles de cana, resolveram voltar ao local onde tinham enterrado o animal.  Antes, observaram se Carmelita não tinha colocado um espião. Desenterraram o cadáver e o jogaram ao relento.

“Enterrar um cachorro não é coisa de Deus, não”, comentava Quinho, arrependido.

“Nunca mais faço uma coisa dessas”, lamentava Ancelmo Mamãe.

Mimo deve ter ido para o céu dos cães, mas chegou lá aos pedaços: foi devorado pelos urubus, como manda a cadeia alimentar.

Quanto a regularidade das chuvas nada mudou. Como costumava afirmar maldosamente Dão Soldado: em Rodelas só chove quando nenhum outro lugar quer.

Dona Carmelita nunca soube que seu cão foi desenterrado.

Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer  trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.

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