As relações entre as duas mais populares agremiações juninas da cidade de Barra (BA) variaram com o tempo, oscilando entre a troca de gentilezas, quando Humaitá e Curuzu desfilavam juntos e subiam no palanque um do outro, e disputas violentas. Hoje, há rivalidade, mas nem próximo do que aconteceu em 1959, segundo o ex-presidente e mestre fogueteiro Francisco dos Santos, o Chiota. É ele quem nos conta como foi a maior de todas as batalhas entre as duas agremiações, história repassada por gerações e que não sai da memória dos mais velhos.
Quando a disputa aconteceu Chiota estava presente. Ele tinha 9 anos, mas os fatos ocorridos o marcaram para sempre:
“ Em 1959, o presidente do Humaitá era o gerente do Banco do Brasil Élcio de Barros Carneiro. Foi ele quem implantou o desfile de carros alegóricos, sendo seguido pelo Curuzu.
Naquele ano, Élcio mandou fazer milhares de busca-pés. Não lembro quantos, mas sei que ele fez encomendas aqui para seis fogueteiros de Barra; um na comunidade de Icatu; dois, em Xique-Xique; dois, em Pilão Arcado; dois, em Paratinga; e dois, em Santa Rita de Cássia. E o Curuzu só tinha pessoal daqui. Acho que eram cinco fogueteiros fazendo busca-pé.
O controle dos busca-pés do Humaitá era feito diariamente. Os fabricantes procuravam os correspondentes do Banco do Brasil e passavam a quantidade de fogos fabricada. Estes passavam, na manhã do dia seguinte, telegramas codificados para a agência do banco em Barra.
No Correio, o chefe e muitos funcionários eram Curuzu. Eles recebiam os telegramas, mas não sabiam do que se tratava. Pensavam que eram mensagens, ordens de pagamento, coisas semelhantes. No banco, o gerente decodificava e fazia o controle. Quando tudo ficou pronto, ele mandou buscar todos os busca-pés, milhares deles.
E veio no desfile do dia 23, desfile bonito, com carro alegórico.
Um soldado que fazia parte da diretoria do Curuzu disse que o Humaitá não passaria na frente da sede de seu clube, que estava no roteiro do desfile. Criou-se uma discussão: “Passa ou não passa? ” Quando o Humaitá decidiu passar, eles botaram a cavalaria para tentar pisar nas moças que estavam desfilando. O Curuzu tinha mais de 40 cavalos. Foi aí que os soldados do Humaitá acenderam os busca-pés e enfrentaram a cavalaria.
Os cavaleiros recuaram e a linha de fogo deles entrou em ação, mas o Humaitá conseguiu encurralar todos eles em um beco. Segurou os rivais ali e botou nossa alegoria e ala feminina para passar.
Nós passamos e dobramos a rua. Quando voltamos, pensamos que eles não iam reagir. Engano. Diante da casa do nosso presidente, chegando na igreja, travou-se a batalha. Começou por volta das 22 horas.
Meia-hora depois, um soldado do Curuzu, sentiu que o busca-pé ia estourar. Em vez de manter o rojão na vertical para que o barro (cerâmica colocada no fundo do busca-pé para evitar que a pólvora saia por baixo) batesse no chão, ele deixou na horizontal.
O estouro saiu e atingiu o presidente do Humaitá, que quebrou o braço e rompeu uma veia. Fizeram um garrote e se prepararam para levá-lo para o hospital. Seu Élcio falou então para os soldados: “Eu vou para o hospital, mas não pare o fogo”.
Aí foi que a situação piorou. Por volta das duas horas da manhã, o Curuzu já não tinha mais busca-pés. Eles não sabiam mais o que podiam fazer. Se parassem o fogo ali, sem busca-pé, o pessoal do Humaitá ia dar carreira neles e eles iam ficar desmoralizados.
O que foi que fizeram? Pegaram o padre Edílson e pediram para ele ir para igreja, que ficava pertinho para tocar o sino, pedindo paz. A linha de fogo deles estava diminuindo, só tinha meia dúzia de soldados tocando busca-pé. A cidade estava enfumaçada. De longe, pensava-se que estava ocorrendo um grande incêndio. Muitos moradores pediram para pararmos. Paramos.
Era duas horas da manhã. Eu estava lá. Eu tinha nove anos e me lembro da cena: no chão, não havia calçamento era calcamento, a gente só pisava em taboca (pedaço de bambu onde a pólvora ficava acondicionada) de busca-pé.
No dia seguinte, a linha de fogo do Humaitá veio dar suporte ao desfile do Riachuelo. E saiu tocando busca-pé em todo o trajeto porque tinha muito fogos de sobra.
TOCAIA
Passados quatro dias, o Curuzu fez a eleição de presidente. O vencedor morava aqui em cima, próximo à Praça da Caixa D’Água. Os soldados de lá vinham trazer o presidente para cá. Iam passar aqui na rua.
O grupo do Humaitá, revoltado com o que aconteceu, se postou atrás do prédio que fica diante do Centro Cultural. Toda linha de fogo do Humaitá estava ali, esperando o Curuzu trazer o presidente.
Uma adepta do Curuzu, vindo da novena da Igreja Nossa Senhora do Rosário – lembro que era um sábado -, viu o grupo do Humaitá e desceu correndo para avisar seu pessoal que estávamos esperando para começar o fogo novamente. Aí, eles saíram pelos fundos. E quando a gente menos esperava, já tocavam o Adrianino na porta do novo presidente. Não teve jeito, perdemos a oportunidade”.
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REINA A PAZ
Hoje não existe mais confronto, o que é garantido por integrantes de todos os clubes. Um torcedor do Riachuelo, conta que anos antes dessa batalha uma pessoa morreu em um desses confrontos. Segundo Chiota, a vítima foi pisoteada durante a confusão. A história também registrou casos de queimadura e ossos fraturados. No passado, era guerra mesmo!
“O Riachuelo tem a fama de ter bons fogos de artifício e carros alegóricos. Toda vida foi tradição. Agora os outros: o Curuzu e o Humaitá, eles vão lhe falar, eles são guerrilheiros. Então tinha a coisa da guerra do Paraguai. E eles faziam a guerra de busca-pé completa quando se encontravam, mas aí morreu gente e não fazem mais esse encontro. Era um horror, gente de braço quebrado, gente queimada, muita confusão” – conta a presidente do Riachuelo, Hilda de Oliveira.
Com o tempo, a cordialidade entre os dois grupos voltou. Chiota, mestre fogueteiro, nove vezes presidente do Humaitá, por exemplo, costuma ajudar o outro clube na feitura dos busca-pés.
A disputa agora é para ver quem solta mais fogos, quem faz o espetáculo mais bonito.
(*) Imagem principal: Ilustração de Blanchard sobre a Passagem de Humaitá, após esboço de Paranhos, publicada em L’Illustration, Journal Universel, Paris, 1868
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.