Deitado em uma rede, João Ribeiro estava praticamente se entregando ao destino final quando obedeceu e abriu a boca para que o curador Mariano Teixeira cuspisse dentro dela.
Mariano era conhecido em toda região pelo antídoto natural que carregava no seu organismo. Cobras de todas as espécies o temiam.
“O meu cuspe já vinha misturado com sangue e sentia uma forte dor de cabeça. Parecia que ia explodir” – lembra João, o padeiro aposentado.
Um dos sintomas do agravamento da picada de jararaca é o sangramento pela gengiva.
O caso aconteceu há mais de meio século, na ilha do Coité, no Pernambuco, quando um grupo trabalhava para Geronso Pires, limpando um terreno às margens do São Francisco.
“Ele (o curador) mandou que quando o sangue aparecesse engolisse com o cuspe. E assim fiz. A dor de cabeça passou num estalar de dedos e logo fui me recuperando”.
O Coité ficava – ficava porque foi engolido pelas águas da barragem de Itaparica há pouco mais de 30 anos -, na zona rural da antiga Itacuruba.
O jovem trabalhador rural foi levado de jipe, à época, para ser atendido no Hospital Doutor José Lima, em Belém do São Francisco, a cerca de 40 quilômetros de distância.
“Além do veneno, tive medo de morrer na estrada esburacada, porque a velocidade foi alta e os sacolejos foram muitos” – conta.
Ele tomou o soro antiofídico e algum tempo depois voltou para a ilha, para que no final da tarde atravessasse o rio com destino ao Rudela*.
Entretanto, os sintomas do envenenamento não desapareceram.
Foi quando lembraram de Mariano Teixeira, que morava nas Umburanas, terra dos Freire em Itacuruba, cerca de quatro quilômetros de distância.
“Geronso disse que não acreditava nessas coisas de curador, mas se eu quisesse mandava alguém buscar o homem. Também não acreditava. Ô, tive que concordar” – relata.
João lembra que o curador chegou pouco tempo depois. Estava com um chapéu bem largo e uma rabo de égua de canos grandes na cintura, bem à vista de todos. Rabo de égua é uma pistola antiga de dois canos, geralmente calibre 22, muito usada naquela época e pejorativamente conhecida como ‘dois tiros e uma carreira’,
Primeiro perguntou se o jovem tinha tomado uma ou duas doses do soro. Foi informado que recebeu uma.
“Se fossem duas, nada poderia fazer por você” – foi duro na resposta.
Disse ainda que depois da cusparada, cobra nenhuma faria mais mal ao rapaz.
“Muito pelo contrário: elas sentirão medo de você” – disse.
Mariano mandou João Ribeiro abrir a boca – ele também fechou os olhos -, e despejou uma boa quantidade da saliva salvadora.
“Num aperto daqueles não dá para sentir nojo. Só vontade de ser salvo” – revela.
Depois, o curador disse que ele deveria ficar em quarentena e indicou um rol de alimentos que não deveria tocar.
“Eu lembro que me mandou evitar frutas e outros alimentos que dessem em rama, como melancia, maxixe e abóbora”.
Não deveria comer carne verde e evitar carne sem sal.
“Eu, um cabra novo, sofri com esta última determinação”. Carne sem sal é uma gíria matuta para relação sexual.
Depois disso, João afirma que perdeu o medo de cobra.
“A que aparecer eu mato” – sentencia.
Ele recorda que passados alguns dias do acidente, ao limpar uma roça de mandioca, com o pai, seu Zé Ribeiro, puxou com a enxada uma jararaca para os seus pés.
“Posso estar enganado, mas a danada parecia que queria fugir, se afastar de mim. Caiu no pau”.
outras histórias
Existem outras histórias de pessoas que tem um grande poder dentro delas. Como Zé Zezinho, também de Itacuruba. Onde ele estava cobra de qualquer espécie não encostava. Se arrancava.
Podia ser a inofensiva corredeira ou a temida cascavel, que, afirmam, quando fugia dele sequer balançava o guizo que carrega na ponta do rabo.
Não raro testava seu poder, visto por muitas pessoas, cuspindo na boca de uma serpente, que, solta, ficava se contorcendo até morrer. O homem era mais do que reimoso às cobras.
Uma das muitas histórias de domínio popular sobre, digamos, este seu sangue forte, conta que, tentou colocar uma cangalha no lombo de um burro depois da labuta diária.
O animal naquele dia estava de mau humor e não aceitou muito bem a cangalha.
Na luta, o bicho pisou no pé de Zé Zezinho, arrancando-lhe a unha de um dos dedões. O homem se contorceu de dor.
A sua reação foi desproporcional: deu uma forte mordida (ou dentada, mesmo) na orelha do burro, que caiu durinho, segundos depois.
O embate e a morte do animal aumentaram ainda mais a sua fama em toda a região.
Demazinho Ferreira contava que ele, pai de muitas crianças, como era normal para aquelas bandas décadas atrás, evitava segurar o seu filho quando estava molinho, com poucos meses de vida. Tinha medo de que um simples toque mais forte das suas unhas no bebê ganhasse proporções de acidente grave e com consequências imprevisíveis.
Arcilo Biana, do Rudela, era conhecido pelas mentiras que costumava contar. Mas algumas pessoas ainda dizem que cobras o temiam.
O policial aposentado Romi Nery conta que durante uma caçada na caatinga, Arcilo viu um rastro de uma cobra grande e resolveu procurá-la.
“Ele me pediu para que não o chamasse pelo nome, porque ela fugiria. Passamos a conversar por sinais. Adiante ele a encontrou num tronco de umburana”.
Romi disse que ficou intrigado. Em outra ocasião, novo rastro. E o mesmo pedido de Arcilo. Ele resolveu testar.
“Pensei que fosse mais uma mentira. Quando ele se aproximou da cobra, gritei o nome dele. Parecia que a bicha tinha pernas tamanha foi a velocidade para fugir do velho caçador. Ele se zangou comigo, mas logo passou. Ele não tava mentindo, não”.
(*) Rudela é como muitos moradores chamam até hoje a cidade de Rodelas, na Bahia.
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Florestano de nascimento, coração rodelense e alma feirense, admirador de forró, MPB, autores nordestinos e músicas dos anos 80, Batista Cruz Arfer trocou a administração de empresas pelo jornalismo há 27 anos. O gosto pela reportagem alimenta diariamente a paixão que nutre pela profissão que abraçou, incentivado pelo irmão Anchieta Nery, também jornalista e professor universitário. Descende dos tuxás, tribo ribeirinha do São Francisco, torce pelo Verde e pelo Bahia.
Uma resposta
Eita cabra bom…kkkkk