“Quando despersonalizamos o rio, a montanha. Quando tiramos deles os seus sentidos,
considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que
se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações
e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos.”
Ailton Krenak – líder indígena e escritor
Taquaril dos Fialhos é uma comunidade rural de Licínio de Almeida, a 744 quilômetros de Salvador, capital da Bahia. É graças às águas de 11 nascentes da Serra do Salto e à terra fértil que sobrevivem as 33 famílias instaladas na região há mais de 100 anos. A produção de cana-de-açúcar fez os moradores prosperarem.
A cana foi substituída nos últimos anos pelo maracujá, vendido para a Ceasa, em São Paulo. O censo agropecuário de 2017 mostra que Licínio de Almeida produziu 1.973 toneladas da fruta – boa parte em Taquaril – e arrecadou R$ 2 milhões no ano. A manga é a segunda colocada na preferência dos trabalhadores rurais que cultivam frutas, hortaliças e legumes, além de criarem pequenos animais. Seus produtos abastecem feiras e municípios vizinhos.
A tranquilidade, a garantia de trabalho na roça e a qualidade de vida são responsáveis por um êxodo às avessas de jovens. Escola, posto de saúde, lojas e mercados estão localizados no povoado de Jurema, a 9 km de distância ou no centro de Licínio, a 25 km.
oásis do sertão
Localizado em área de transição entre o cerrado e a caatinga, este oásis sertanejo está em risco desde que começaram as investidas de mineradoras para exploração de minério de ferro, em 2008. A mais recente iniciou, ano passado, quando a Vale do Paramirim Participações S.A (CVP), do empresário e geólogo João Carlos de Castro Cavalcanti recebeu autorização para realizar pesquisa mineral no que chama de Área T.
Com o preço do minério de ferro em alta (US$ 123 ou R$ 639) no mercado futuro internacional e com o prazo para conclusão do trabalho se esgotando, João tem pressa para provar a viabilidade econômica do negócio, atrair investidores e obter licenciamentos. De acordo com ele, o potencial exploratório de Taquaril é de 423 milhões de toneladas de minério com teor de 55% de ferro. Por enquanto, mera especulação.
Acostumados a travar batalhas contra mineradoras – as primeiras foram a Bahia Mineração (Bamin) e a Greystone Mineração do Brasil Eireli- a Associação dos Pequenos Agricultores de Taquaril dos Fialhos (Aspat) utilizam as redes sociais como aliadas na luta pela preservação.
De junho para cá, a entidade divulgou nota de repúdio, que viralizou na internet; criou um abaixo-assinado para fazer com que os vereadores aprovem o projeto que cria a Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra do Salto para preservar as nascentes; e lançou a campanha “Águas que brotam vida – Em defesa das nascentes da Serra do Salto”, visando proteger os recursos hídricos ameaçados pela mineração. O movimento inclui páginas no Facebook e no Instagram , e a produção de um documentário, disponibilizado no You Tube.
O curta-metragem “Não é só uma terra…Nada paga a vida que temos aqui”, criação coletiva da do diretor e roteirista austríaco Thomas Bauer, 46 anos, e da comunidade, mostra os estragos causados por mineradoras próximas e distantes e a angústia dos lavradores.
“O documentário serve como ferramenta metodológica para questionar o que é mais importante: a água ou o minério. As comunidades têm direito de escolher? Se tem, o que fazer para o projeto da CVP não avançar? O Brasil que eu conheço é muito injusto” – diz Bauer.
Após o lançamento da campanha, João Cavalcanti voltou à comunidade. Foi barrado e recorreu à justiça. Perdeu em primeira instância. Apelou para a segunda instância e obteve liminar favorável para iniciar os trabalhos. O assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra (CPT), João Batista Pereira, 47 anos, fez duas manifestações no processo, tentando reverter a decisão.
Batista lembra que quem judicializou a questão foi a Vale do Paramirim. No início, segundo ele, João Cavalcanti alegou que não precisava de licença ambiental para fazer a pesquisa mineral, mas mudou o discurso e contratou um engenheiro, que está elaborando o estudo de impacto. Desde o início do processo, o advogado da CPT argumenta que o processo de mineração afeta direitos difusos, individuais e fundamentais, como o acesso à água.
A exploração mineral, de acordo com o advogado, independente de sua modalidade, provoca danos irreversíveis como o rebaixamento do lençol freático, o que pode comprometer o potencial hídrico da região. Outra questão levantada pelo assessor jurídico é que não há processo de mineração, sem produção de rejeitos:
“Onde eles serão despositados? De um lado é o rio, do outro a comunidade” – questiona.
RESISTÊNCIA
A agricultora Maria Neri de Carvalho, 63 anos, vive na comunidade desde que casou há 46 anos. Só sai de lá para dar um passeio ou acompanhar o neto em tratamento de saúde, em Salvador. Ela esclarece que a primeira mineradora a chegar foi a Bamin, em 2008. Na época, alguns moradores autorizaram a entrada dos funcionários. Quem não permitiu o acesso, teve suas terras invadidas
“Eles derrubaram cercas e abriram picadas” – relata.
No início, a estratégia de resistência consistia em adiar as reuniões marcadas pela empresa. Quando não deu mais resultado, os moradores preparam um vídeo mostrando quão produtiva era a comunidade.
“Nós quebramos um pouco a força deles. Eles queriam apresentar um projeto e nós tínhamos outro mais importante.” – conta Maria.
Na audiência seguinte, com a presença do secretário estadual de Meio Ambiente do estado, a companhia tentou reduzir a importância da economia local. Segundo Maria, disse que ali era um local desabitado e improdutivo. Discurso semelhante ao que é feito hoje por João Cavalcanti.
“Quando as autoridades viram a produção de cana e de uma série de alimentos e souberam da existência de uma fábrica de cachaça artesanal de boa qualidade, registrada no Ministério da Agricultura, o projeto foi barrado” – diz.
O interesse por minério de ferro recrudesceu em 2011, através da Greystone Mineração do Brasil Eireli. No entanto, o relatório de pesquisa que ela produziu foi desaprovado pela Agência Nacional de Mineração (ANM). O veto foi justificado com o inciso II do artigo 30 do Código Mineral: constatação de insuficiência dos trabalhos ou deficiência técnica na sua elaboração.
A professora e mestranda em linguística Andreia Muniz Lisboa, 28 anos, também se recorda dos primeiros anos de luta. Ela foi morar em Taquaril ainda criança. Em 2008, sem entender o que acontecia, participou das primeiras reuniões e testemunhou a truculência e a arbitrariedade do pessoal da mineradora. Seu avô, José Francisco Lisboa, morador mais antigo da comunidade, hoje com 90 anos, foi forçado a assinar procuração, autorizando a entrada em sua propriedade.
Quando a Bamin parou a pesquisa – a versão que circula é que só teriam encontrado minérios de ferro de baixo teor de ferro -, Andreia já tinha afinidade com os movimentos sociais.
Mal o processo (871.159/2011) da Greystone foi arquivado, outro foi instaurado na mesma área de 1278,17 hectares. Mudou a numeração (872.079/2015) e o requerente, mas o objetivo era o mesmo: explorar minérios de ferro e de manganês. O titular passou a ser a SRA Mineração, microempresa localizada no distrito de Brejinho das Ametistas, em Caetité.
A SRA pagou as taxas anuais por hectare (equivalente hoje a R$ 4.538), exigidas pela agência, mas não cumpriu o prazo para a entrega do relatório final. Após pedir prorrogação, repassou o direito para a Vale do Paramirim Participações S.A (CVP), do geólogo e empresário João Carlos de Castro Cavalcanti.
Inspirada pelo documentário “Enquanto o trem não passa”, da Mídia Ninja, e pelo o que aprendeu em formações ministradas por movimentos sociais, Andreia se tornou militante do Movimento pela Soberania Popular da Mineração (MAM), voltado para a defesa dos direitos de camponeses, quilombolas, indígenas e populações ribeirinhas atingidos pelo setor. O objetivo do MAM é incidir sobre o processo político para que a população decida onde haverá e qual será o ritmo da extração mineral.
“Comecei a mostrar o outro lado da história para a comunidade. Para minar a luta, a mineradoras preferem conversas individuais. Eles procuraram fazer amizade com as pessoas para usá-las” – revela.
Carlito Fialho, primo de Andreia, foi uma dessas pessoas. Ele acabou permitindo a entrada dos funcionários da CVP em sua propriedade, exatamente um dos locais onde a pesquisa está sendo feita. Quando percebeu o equívoco, mudou de opinião, mas a decisão não foi aceita pelos dirigentes do empreendimento.
Em busca de apoio, o representante da CVP foi à comunidade, acompanhado pelo prefeito de Licínio de Almeida, a quem pediu ajuda para intermediar a conversa. Segundo Andreia, o prefeito, respeitado pelos trabalhadores, ficou calado, mas o geólogo abordou a comunidade de forma “truculenta e irresponsável”.
“João Cavalcanti chamou as pessoas de ignorante, mandou elas calarem a boca e falou palavrões. Disse que entraria ali de qualquer jeito porque tinha licença” – conta.
Na versão do geólogo (para ver a entrevista completa com ele clique aqui), os agricultores só faltaram bater nele. Sem conseguir atingir o objetivo, ele foi embora.
Nem a Covid-19 foi capaz de deter a CVP. Seus funcionários retornaram, desrespeitando o isolamento social, e disseram que tinham de fazer a pesquisa de qualquer jeito. Eles vieram de Caetité, município vizinho onde, desde o início da pandemia, foram registradas três mortes e 121 casos da doença causada pelo novo coronavírus.
Andreia Muniz diz ter consciência de que a pesquisa mineral não vai dizimar a comunidade, mas é o ponto de partida para que isto ocorra. Cita como exemplos Antas e Palmitos, povoados abastecidos com água de excelente qualidade, que deixaram de existir após a instalação de mineradoras.
Após intenso período de pressão, nos últimos dias não houve movimentação no local. A falta de licenciamento seria um dos motivos.
DOIS JOÕES
O projeto Fronteiras Minerais Brasileiras: a Província Mineral do Vale do Paramirim foi lançado por João Cavalcanti, no auditório da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM) , autarquia da secretaria estadual de Desenvolvimento Econômico (SDE).
Na apresentação, em junho, o dirigente da CVP declarou que, com base em estudos de geologia básica realizado pelos governos estadual e federal e no trabalho de jovens geólogos e engenheiros, a CVP integrou oito distritos minerais conhecidos desde 1938.
A província mineral é formada por 32 municípios da região centro-sudoeste da Bahia, onde haveria abundância de ferro, zinco, cobre, grafite, ouro, lítio e terras raras (17 elementos químicos usados como condutores e na produção componentes de carros híbridos, smartphones e computadores).
Nos slides do Powerpoint da apresentação foram aplicados os logotipos do governo da Bahia e da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM). A projeção permanece no site da CBPM. Assim como o texto elogioso “Bahia vai investir em novo polo mineral no Vale do Paramirim” está no site da secretaria estadual de O Comunicação Social.
A matéria institucional, assinada pela assessoria de imprensa da SDE, comandada pelo vice-governador João Leão, se refere ao projeto como “uma das maiores descobertas do século XXI” e informa que a secretaria quer atrair investidores para o projeto. Leão, por sinal, é o político baiano mais elogiado por Cavalcanti. O geólogo o considera empreendedor e diz ter gratidão por ele lhe ter apoiado em outras ocasiões.
Para esclarecer o vínculo do governo estadual e da SDE com o projeto, Meus Sertões encaminhou uma série de perguntas ao secretário. Dentre elas, se o governo estadual sabia das reivindicações dos moradores de Taquaril dos Fialhos.
A resposta veio em forma de nota oficial, encaminhada pela assessoria de comunicação, no dia 13 de agosto.
“A Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado da Bahia (SDE) informa que a Companhia Vale do Paramirim não possui protocolo de intenções firmado com o Governo para exploração mineral na região. O que eles têm é uma autorização dada pela Agência Nacional de Mineração (ANM) para realizar a pesquisa mineral (…).
Além disso, a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), autarquia ligada à SDE, não tem nenhum trabalho de pesquisa nesta área e também não tem contrato com a companhia Vale do Paramirim”.
A nota diz ainda que o que está em curso é o desenvolvimento de um novo polo mineral na Bahia para dinamizar a economia e gerar empregos, de Ilhéus a Caetité. E que este foi o tema da reunião entre João Leão, Dr. Fred e outros dois prefeitos, na primeira quinzena de agosto.
O site Meus Sertões também dirigiu questionamentos ao Instituto do Meio Ambiente e recursos hídricos (Inema) sobre requerimentos, licenciamentos e eventuais danos causados pela CVP, em Taquaril dos Fialhos.
A assessoria de comunicação da diretoria geral do órgão informou, no dia 18 de agosto, que tinha recebido dois requerimentos da Vale do Paramirim. O primeiro, no dia 4 de junho, foi registrado como 2020.001.039970/INEMA/REQ. Ele se encontrava com pendência de enquadramento na escala de impacto ambiental. Não foram dados detalhes.
O segundo (2020.001.053245/INEMA/REQ, de 20/07/20) específico para a Área T, que engloba Taquaril dos Fialhos, foi enquadrado como classe 4, médio impacto ambiental, em uma escala que vai até 6. Nesse caso, o decreto estadual 14024/2012 prevê a elaboração de estudo ambiental. O instituto acrescentou que a empresa não entregou todos os documentos necessários para a formação de processo.
O instituto informou ainda que o procedimento padrão para a realização de pesquisa mineral de ferro consiste em sondagens e abertura de trincheiras. E, em casos mais avançados, “pode-se fazer desmonte da rocha”. Sobre fiscalização realizada a pedido da comunidade, declarou não ter identificado ação que caracterizasse infração ambiental.
Antes da publicação desta reportagem, foi feita consulta ao Sistema Estadual de Informações Ambientais e de Recursos Hídricos (SEIA). Assim, foi possível encontrar mais um requerimento da CVP e atualizar os dados dos demais.
O procedimento de 4 de junho identifica o empreendimento como Processo ANM 872.079/2015. Embora seu status ainda conste como pendência de enquadramento, ele está classificado como de pequeno porte e avaliado como de médio impacto ambiental. Segundo o responsável técnico do empreendimento, Mauro Vinícius Lessa Fróes, a pesquisa será feita através de “sondagens, poços, trincheiras e planos inclinados, geofísicos e geoquímicos”.
Com relação à segunda solicitação, específica para a área T, o solicitante diz que haverá intervenção em área protegida. Também responde “sim” no quesito uso de água, lançamento de resíduos líquidos e/ou intervenção em corpo hídrico.
O terceiro requerimento (2020.001.064455/INEMA/REQ) começou a tramitar em 24 de agosto de 2020.Ele foi identificado como “pesquisa mineral (AA+ASV) no povoado de Taquaril dos Fialhos”. As siglas significam autorização ambiental e autorização para supressão (eliminação) de vegetação.
O preposto da CVP e responsável técnico pelo empreendimento, engenheiro Mateus Mendes Caetano, acrescenta que será necessária intervenção em reserva legal, informa que a área suprimida será de 0,4- provavelmente hectare já que não foi definida a medida agrária – e pede autorização para captura, resgate ou transporte de animal silvestre, a fim de salvar a fauna. O engenheiro aponta ainda que a pesquisa de ferro não é a principal, mas não indica a prioridade.
Até o momento o Inema não abriu processo de licenciamento para a Vale do Paramirim, O prazo para realização da pesquisa caduca em 2021.
Na sexta-feira, o assessor jurídico da CPT e trabalhadores rurais de Taquaril se reuniram, na Câmara Municipal. Os nove vereadores se comprometeram a apoiar e acelerar o processo de criação da Área de Proteção Ambiental da Serra do Salto, em trâmite desde 2010. Apesar disso, aprovação não deve ocorrer nesta legislatura.
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.