O segredo da pirâmide

534Q+XM, Zabelê, Vitória da Conquista. O estranho endereço no início da rodovia em direção a Anagé confunde os motoristas de Uber e faz algum deles tentar extorquir o passageiro, cobrando R$ 100 por uma viagem de ida e volta entre a Casa do Estudante e o Museu de Kard, que custa R$ 38,20. Há muitas outras dificuldades para chegar ao museu de arte contemporânea ao ar livre, instalado em uma área de 500 mil metros quadrados, onde era o antigo lixão da cidade.

Allan de Kard.. Foto: Paulo Oliveira

Não há sinalização que indique o local e ainda por cima o horário de funcionamento do museu – de 9h às 17 h – citado após busca no Google não corresponde à realidade. O expediente não tem horário fixo. Na verdade, o empreendimento criado pelo empresário do setor de construção civil e de tubos e conexões, também artista plástico, Allan Kardec Cardoso Alves, está em permanente construção desde 2019, quando ele decidiu ser mecenas de si próprio. Longe de ter uma estrutura ideal para receber turistas, é aconselhável telefonar antes de visitá-lo como fez Meus Sertões na segunda tentativa de entrar lá.

Superados estes problemas, encontramos esculturas gigantescas, duas galerias de exposições para as obras de Allan, e de outros artistas e um ambiente instigante para crianças e adultos. Inspirado no Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), considerado o mais importante acervo de arte contemporânea do Brasil e o maior museu a céu aberto do mundo, a instituição de Vitória da Conquista pretende se transformar na maior inciativa ao ar livre do Nordeste e Norte do Brasil.

Do portão, onde sobressai o contorno de uma árvore e a imagem da arara-canindé, se avista a galeria em forma de pirâmide. Nela, com exceção da exposição de fotografias “O Ensaio sobre o invisível”, de J.C. D’Almeida, e de uma escultura com galhos de árvore feita por Geraldo Bope, os demais trabalhos são de Allan de Kard, nome artístico do empresário.

Portão de entrada. Foto: Paulo Oliveira

O mesmo acontece na área externa, onde dezenas de objetos gigantes chamam a atenção. Na área onde foram plantados 160 mil metros quadrados de grama, a única peça de outro autor é “Flor de cacau”, de Mário Cravo Jr (13/4/1923 – 1/8/2018). A escultura pertencia ao Banco Econômico [1] e foi devolvida à família do artista quando o banqueiro Ângelo Calmon de Sá faliu.

Segundo Kard, um dos netos do escultor esteve em Conquista para tratar da restauração do Cristo [2] da Serra de Periperi, outro trabalho de Cravo, há dois anos:

“Ele nos visitou, gostou muito do espaço e doou a obra para o museu” – conta.

Flor de cacau (D), de Mário Cravo. Foto: Paulo Oliveira
DESAPARECIDOS

De suas peças imensas, Allan de Kard mostra preferência pelo labirinto em formato de digital, que trata do desaparecimento de crianças. Ele conta que se inspirou em um drama pessoal: o desaparecimento do filho, então com cinco anos, em uma praia por duas horas. Embora o caso tenha tido final feliz, o artista ficou assombrado com a intensidade da dor que sentiu.

“Fiquei imaginando o que sentem os pais de crianças desaparecidas e para onde elas vão. Por isso o labirinto tem a forma de digital relacionada com a busca da identidade perdida. O título desse trabalho é Quo Vadere (Aonde fostes?)” – revela.

Nos estreitos caminhos do labirinto tem-se, em alguns momentos, uma sensação claustrofóbica. A proposta é fazer os visitantes terem uma experiência sensorial. Nas paredes, fotos de crianças de vários países que sumiram sem deixar pistas.

Percorrendo o labirinto  Foto: Paulo Oliveira

Como é uma obra em construção permanente, Allan pretende colocar fotografias de meninas e meninos reencontrados, incluindo a de seu filho, do lado de fora da construção. Ele ressalta que algumas pessoas se perdem nos caminhos intrincados e precisa resgatá-las.

As cores das imagens, as obras inusitadas, tudo chama atenção nas duas horas em que se percorre o museu. No futuro haverá mais guias e código de resposta rápida (QR Code) para que as pessoas tenham acesso ao processo criativo e à história por trás de cada trabalho.

Ao se deparar com três fuscas coloridos pendurados ao vento, os visitantes saberão que os fazem parte da vida do empresário-artista. O vermelho foi da época em que ele começou a namorar a futura esposa.

“Era um fusquinha pirracento, que só pegava quando queria. Já o amarelo era de meu pai” – conta.

“Ao vento”. Foto: Paulo Oliveira

O azul tem uma história interessante. Allan negociava a compra do carro, sem avisar à namorada. Um dia ela disse que sonhou que ele ia compra um Volks daquela cor, sem o banco da frente. No dia do fechamento do negócio, o comprador soube que um fumante deixou um cigarro cair e o banco foi levado para ser consertado em uma capotaria. A premonição foi confirmada. Hoje, os veículos pendulam ao vento, cobertos com fibra de vidro e sem motor.

Mais adiante fica o “Xadrez Nordestino”, cujas peças representando o cangaço contra o Estado estão em um tabuleiro de 900 metros quadrados. As pretas têm Lampião e Maria Bonita como rei e rainha. Antônio Conselheiro é o bispo, o jumento é o cavalo e a torre é a do santuário de Bom Jesus da Lapa. Os peões são os cangaceiros.

Xadrez nordestino. Foto: Paulo Oliveira

O governador e a primeira-dama são o rei e a rainha das brancas. Padre Cícero é o bispo, o bode é o cavalo, o Elevador Lacerda é a torre e a volante, os peões. As peças têm cinco metros de altura e são feitas de fibra de vidro. Expostas ao tempo precisam de manutenção permanente. A intenção era que tivessem rodas para que os visitantes pudessem jogar empurrando-as, mas o tombamento de uma das torres causado por uma ventania fez com que tudo ficasse preso.

Fazemos um rápido desvio no roteiro para passar pelo “Conselho”, formado por sábios e notáveis que exercem o controle sobre as massas, antes de chegarmos à galeria Mix. São quatro pisos com exposições de outros artistas. No primeiro andar, quadros de Romeu Ferreira retratam o sertão. Há ainda telas e esculturas da paraibana Lilian Morais e de Alex Emmanuel. O segundo andar está ocupado por pinturas de Valéria Vidigal, que se dedica um único tema:

“Ela é apaixonada por café. O pai dela era pesquisador da Universidade de Viçosa (MG). É a maior artista em nível mundial desta temática. Ela tem mais de 1.200 obras sobre isso” – explica Allan.

Perguntado se as obras externas e as dos salões de exposições estão seguradas, o responsável pelo museu diz que não. De acordo com ele, cada artista assume os riscos. E acrescenta que nunca houve vandalismo, nem furto no local.

“Se alguém carregar as minhas obras está perdoado” – brinca, ressaltando que a segurança interna é eficiente.

Para administrar o empreendimento cultural foi criado o Instituto Museu de Kard. O projeto prevê ainda a construção de um hotel, um restaurante e uma cafeteria na vasta propriedade. Atualmente, ainda sem divulgação, o complexo cultural recebe entre 100 e 200 pessoas por mês, a maioria turistas de Goiás e de Brasília que passam pela região a caminho das praias do no Sul da Bahia. Com a desaceleração dos casos de covid-19, o instituto pretende incentivara visitação gratuita de estudantes das escolas da região.

A casa mais estreita do mundo. Foto: Paulo Oliveira

Depois de uma pausa para fotografias, Allan volta a mostrar o acervo. Dessa vez, se dirige à “Aquarela”, a casa “mais estreita do mundo”, em formato de caixa de lápis de cor. São três andares com cozinha, banheiro, quatro quartos, capaz de abrigar oito pessoas

“Casalzinho novo dorme tranquilo de conchinha” – troça.

O dono do museu conta que tem trabalhos expostos nas cidades vizinhas de Aracatu e Anagé. Ele diz que não divulga o museu porque se colocou em processo de isolamento para investir ainda mais na criatividade.

Allan de Kard não completa todo o circuito das esculturas externas. Alega que ter uma reunião com o pessoal da área de cultura do município. Antes de sair, mostra uma grande réplica do coronavírus espetada por uma seringa e conta que ela causou muita polêmica, quando foi exposta na principal avenida de Vitória da Conquista. Parte dos moradores interpretou como um desrespeito aos mortos na pandemia; outros entenderam que era uma homenagem à ciência. A exposição em área pública também causou transtornos para o artista, como veremos mais adiante.

O artista plástico costuma repetir que o seu empreendimento cultural é “um museu com alma” e que será seu legado para a posteridade. A única coisa que não gosta é de falar sobre quanto investiu para torná-lo realidade. Isso aguçou a curiosidade e fez Meus Sertões apurar de onde pode ter vindo o dinheiro aplicado ali.

MAIS PEÇAS DO ACERVO
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O EMPRESÁRIO

Kardec adotou o pseudônimo Allan de Kard para se diferenciar do filósofo e educador responsável pela sistematização e propagação da doutrina espírita, no século XIX (19). Nascido em Itapetinga (BA), permaneceu apenas 15 dias na cidade natal antes da mãe dele regressar a Vitória da Conquista, a 100 quilômetros de distância.

Na fase adulta ingressou no curso de agronomia na Universidade Estadual do Sudoeste Baiano (Uesb), ao mesmo tempo em que abriu seu primeiro negócio: uma gráfica. Tinha 23 anos à época, segundo o site Avoador. Em 1991 convidou o irmão Antônio Paulo Cardoso Lessa para ser sócio, pois a empresa não ia bem. A capacidade administrativa de Paulo fez a firma prosperar.

Fábrica de tubos e conexões. Divulgação

O empresário Antônio Epitácio da Silva Filho passou a fazer parte da sociedade em 1988. Foi dele a ideia de iniciarem uma fábrica de termoplásticos – tubos e conexões – para a construção civil e irrigação. Surgiu a KEP – iniciais de Kard, Epitácio e Paulo – Indústria e Comércio de Plásticos Ltda, conhecida como a “marca do golfinho”, em 2006. A empresa tem cerca de 150 funcionários.

Allan Kardec também é sócio nos empreendimentos imobiliários Residencial Portal do Sol, Residencial Mansão do Sol e Loteamento Kaipe, com o irmão e/ou com Epitácio. Mas o maior empreendimento é o Residencial Vitória da Conquista I SPE, cujo capital social em 2012 era de R$ 600 mil, de acordo com o declarado à Receita Federal.

Os irmãos Cardoso Lessa dividem o cargo de sócio administrador com o presidente do grupo Proeng, Lamberto Palombini Neto, e o investidor Hugo Fernando Iwaki Oliveira, além de nove outros sócios, cujas atribuições englobam a incorporação de empreendimentos imobiliários, obras de urbanização de ruas, praças e calçadas e construção de instalações esportivas e recreativas

Lamberto atua ainda no setor de engenharia, construção civil, shoppings, hotelaria, investimentos e postos de gasolina. Ele participa de, pelo menos, 37 empreendimentos e empresas no Espírito Santo, Goiás e Bahia. Já Hugo Iwaki é sócio de empresas de mineração, imóveis e de comércio exterior. A empresa mais antiga é a GSO Participações Societárias, com sede em São Paulo.

Portal do Sol. Divulgação

Voltando a Allan, ele acumula a parte empresarial com a diretoria do Núcleo Espírita Jesus de Nazaré e a presidência do Instituto Museu de Kard. A vice-presidência é ocupada pela cafeicultora, empresária e artista plástica Valéria Vidigal.

Allan, ex-sócio da emissora Jesus de Nazaré FM se envolveu em fatos polêmicos que ofuscam sua trajetória. No dia 30 de agosto de 2016, o empresário mandou demolir a casa de Valdete Silva, na época com 84 anos, e do filho dela Deusdete Francisco Almeida dos Santos, no bairro São Pedro. Alegou que o homem – seria doente mental segundo um blogueiro da região – , quebrou a vidraça de um de seus imóveis. Aproveitando a ausência dos dois, mandou destruir a residência da idosa com um trator.

Outra versão dá conta que o motivo da derrubada foi a negativa da família de vender para ele o terreno de três hectares, deixado como herança pelo pai de Deusdete. O imbróglio só foi resolvido em 26 de abril de 2018, quando Kardec concordou em pagar  um valor entre R$ 120 mil e R$ 180 mil pela reconstrução da casa.

Outras querelas estão relacionadas com as obras do artista que ocupavam o canteiro da Avenida Olívia Flores, uma das principais da cidade. A primeira autorização para um ano de permanência foi dada pelo prefeito Guilherme Menezes, em 2015. Vencido o prazo, Allan sugeriu que o município comprasse as cinco obras expostas por R$ 250 mil ou fizesse a permuta de um terreno no loteamento Alto da Universidade para a construção de um museu e um estúdio de cinema. A resposta foi negativa.

O empresário-artista disse que a manutenção das peças em espaço público foi renovada pelo prefeito Herzem Gusmão, no mandato seguinte. No entanto, ele não tinha documentação para provar a ampliação do prazo.

O Covidão. Foto: Paulo Oliveira

Diante da polêmica, o Conselho Municipal de Cultura chamou o artista para explicar porque continuava com as estátuas no local e tinha incluído mais uma obra, popularmente chamada de Covidão, no canteiro. A escultura, oficialmente chamada de “Monumento aos Heróis da Saúde”, consiste em uma vacina espetada em um vírus gigante da doença responsável pelo registro de 30 milhões de casos e 660.147 óbitos só no Brasil até o dia 3 de abril de 2022.

De Kard disse ter aquiescência de dois prefeitos e que Herzem definiu o melhor local para colocação da escultura, verbalmente. Acrescentou ainda que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) estava na iminência de tombar os trabalhos expostos na avenida. Em 2020, o Iphan indeferiu o pedido de tombamento. Dois dias depois, o Conselho recomendou a remoção imediata das peças e anunciou que seriam criadas normas para utilização do espaço público.

A maior parte das esculturas foi transferida para o museu.

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SERVIÇO
Entrada: R$ 15 reais
Horário de funcionamento: É irregular. Telefone para confirmar se está aberto
Telefone: (77) 98802-0428

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[1] O Econômico o sofreu intervenção do Banco Central, em 11 de agosto de 1995. Suas atividades foram suspensas por cerca de 9 meses até ser adquirido em 2 de maio de 1996, com recursos do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), pelo banco Excel.

[2] Com as feições do povo sertanejo, castigado pela seca, o Cristo esculpido por Mário Cravo em fibra de vidro sobre uma estrutura de concreto, tem 17 metros de altura. Ele é considerado o maior Cristo Crucificado do mundo. Projeto de 1963, feito na primeira administração de José Pedral Sampaio, o monumento foi instalado em novembro de 1980, por ocasião do aniversário da cidade, quando o prefeito era Raul Ferraz.

 

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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