O banquete após a matança

O Memorial da Democracia é um museu virtual, cujo o objetivo é resgatar a memória das lutas do povo brasileiro pela justiça social, pela igualdade e pela democracia. Ao longo dos séculos, aprendemos que nenhuma conquista é obtida sem luta. E que para mantê-las é preciso defendê-las permanentemente.

O Movimento de Pau de Colher, nome do povoado de Casa Nova, localizado na tríplice divisa entre Bahia, Pernambuco e Piauí, terminou de forma trágica, em 1938. Para lembrar do massacre dos caceteiros, como eram conhecidos os seguidores do beato José Senhorinho, relatamos este sangrento episódio da história do Brasil, a partir do que está publicado no Memorial da Democracia.

O povoado baiano de Pau de Colher foi dizimado por forças policiais de Pernambuco, Piauí e Bahia, com o apoio de um avião do Exército.

A comunidade era formada por sertanejos pobres, seguidores de Padre Cícero e de beatos que percorriam a região, eles foram acusados de serem fanáticos, violentos e comunistas, por viverem em um regime rigoroso, estabelecido pelo beato José Senhorinho.

Na comunidade, que chegou a reunir quatro mil pessoas, era proibido beber, fumar, comer carne e gordura. Os lavradores passavam a maior parte do dia rezando pela salvação de suas almas, usavam luto pela morte do padre Cícero e se tratavam como irmãos. Alguns homens do grupo usavam um porrete feito com madeira da árvore pau de colher. Por isso, todos os seguidores do grupo passaram a ser conhecidos como caceteiros.

Pau de Colher era uma extensão da comunidade cearense do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, massacrada em maio de 1937. No Caldeirão, extensão de terra doada por Padre Cícero para o beato José Lourenço, as pessoas viviam em sistema de mutirão, dividindo o que produziam conforme a necessidade de cada um, o que incomodava os poderosos da região. O povoado baiano era um local onde se reuniam todos que moravam próximo da divisa entre os três estados nordestinos e sonhavam em mudar para Caldeirão.

Com a notícia de que policiais e jagunços, com apoio de aviões do Exército, exterminaram a comunidade cearense, os lavradores de Pau da Colher se prepararam para o que chamaram de fim das eras. A situação se deteriorou e há relatos de mortes entre os que tentaram abandonar o local.

A possibilidade de Pau de Colher e outras comunidades se organizarem como Caldeirão deixou em polvorosa a classe dominante rural nordestina. O discurso anticomunista usado pelo Estado Novo para dar sustentação ao governo de Getúlio Vargas passou a ser utilizado como arma contra os beatos e seus seguidores.

Relatos de supostos ataques dos caceteiros começaram a circular, reforçando a versão de que ali vivia um bando de mais de 800 cangaceiros que se preparavam para atacar cidades vizinhas, destruir os poderes constituídos e implantar o comunismo. O que foi chamado de fim das eras pelos trabalhadores e religiosos começou com a chegada da PM da Bahia, apoiada por jagunços a serviço dos “coronéis”.

Em 10 de janeiro de 1938, houve o primeiro confronto. Os seguidores de Senhorinho reagiram e houve morte dos dois lados, inclusive a do beato. A segunda investida foi feita por policiais piauienses, também rechaçados.

A guerra havia apenas começado. O tenente-coronel Maynard, comandante das forças em operação no Vale do São Francisco, deslocou para o local batalhões do exército locados em Aracaju e Salvador. O coronel Dantas, interventor baiano, mandou um esquadrão motorizado e uma companhia de fuzileiros. Do Piauí, seguiu um novo grupo de policiais militares.

Pernambuco enviou 97 homens, liderados pelo capitão Optato Gueiros, temível comandante das forças volantes de combate ao cangaço. A tropa pernambucana comandou o massacre durante três dias. No dia 21 de janeiro tudo tinha sido destruído.

Em telegrama, diante do elevado número de mortos, Gueiros informou seu “êxito”:

Impossibilitado sepultamento determinei incineração (…) Fiz vasculhamento circunvizinhança encontrando apenas crianças e mulheres indefesas1

Jornal A Tarde publicou a foto de 40 órfãos de Pau de Colher trazidos para Salvador. Reprodução

Armados de metralhadoras, os pernambucanos abriram fogo, matando centenas de homens, mulheres e crianças. Depois de 42 horas de batalha, os sobreviventes foram caçados como animais. Os capturados foram degolados. Há relato de mais 400 mortes. Além disso, os pais perderam direito ao pátrio poder sobre os filhos, entregues como escravos a famílias da região e de Salvador.

Ao final do combate, as forças pernambucanas foram saudadas pela população de Casa Nova por ter comandado a destruição de Pau de Colher. A prefeitura ofereceu um banquete ao líder das tropas.

O jornal Diário de Pernambuco publicou que um avião bombardeio do Exército com duas metralhadoras partiu para a região no dia 24 de janeiro, com o intuito de cooperar na perseguição dos fanáticos. Nele estava o secretário de segurança do Ceará, capitão Cordeiro Neto. O presidente Getúlio Vargas enviou telegrama ao interventor baiano, felicitando-o pelo extermínio.

A versão das comunidades lideradas por fanáticos, organizados pelo Partido Comunista, no Ceará e na Bahia, vigorou. Os “coronéis” e seus jagunços continuaram dando as ordens na região”.

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Leia mais:

Pau de colher: o massacre não pode ser esquecido

 

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[1] Ana Lúcia A. L. Leandro (2003). “O movimento de Pau de Colher na perspectiva dos atores sociais” – UFPE.

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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