O futuro começa no semiárido – Parte 2

O sistema agrofotovoltaico proporciona benefícios para famílias sertanejas, mas a falta de recursos impede a manutenção adequada e a continuidade de funcionamento

Guilherme dos Santos, Laysa Vitória e Letícia Barbosa

Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), publicado em julho de 2023, revelou que 70,3 milhões de pessoas viviam em situação de insegurança alimentar moderada, ou seja, com dificuldades de se alimentar, em 2022. O Brasil, que em 2014, chegou a sair do “mapa da fome”, voltou a configurar nele oito anos depois, durante a pandemia de Covid 19

Para o coordenador de Inovação e Pesquisa Tecnológica do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), Sebastião Alves, projetos como o do sistema agrofotovoltaico, que une a energia solar com a agricultura e a criação de animais, podem resolver grandes problemas, inclusive o da fome. Sebastião crê que a produção coletiva em larga escala é possível com o equipamento.

Foi com o intuito de compartilhar conhecimentos e distribuir tecnologias que podem aprimorar a vida no campo que o Projeto Semiárido Sustentável, iniciativa do Serta, surgiu.

Executado entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, o projeto teve a finalidade de distribuir dois tipos de sistemas projetados para atender necessidades humanas, causando o mínimo de impacto possível (ecotecnologias) para os municípios de Ibimirim e Manari, no sertão do Moxotó [1]. As cidades foram escolhidas pelo baixo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) [2] que apresentam.

Quarenta famílias, 20 de cada cidade, foram beneficiadas pela ação do Serta. Os contemplados foram selecionados a partir da indicação de lideranças, como presidentes de associações comunitárias ou de sindicatos.

As famílias também precisavam atender alguns critérios, como explica Leandro Carvalho, coordenador do Projeto Semiárido Sustentável:

“Fizemos um diagnóstico socioeconômico e avaliamos se essas famílias se enquadravam no perfil. Os agricultores deveriam ter a atividade comprovada no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e morar na propriedade. Precisavam fazer parte de alguma associação ou sindicato, ter o Número de Identificação Socia (NlS) em dia e ser fazer parte do grupo de baixa renda.”

A participação ativa das famílias em todos os processos do projeto também era uma condição. Elas precisavam estar presentes em formações sobre o funcionamento, a finalidade e a manutenção das tecnologias, bem como escolher o local de implantação na propriedade. Com isso, a proximidade criada era consequência:

“A gente cria esse vínculo. Eles abrem a porta de casa pra gente, e mostramos nossa gratidão pela receptividade” – diz o coordenador.

Formação no Serta com os agricultores. Divulgação

Um dos sistemas distribuídos no projeto foi o de reuso de água, o qual reaproveita água da pia, do chuveiro e da lavagem de roupa na irrigação de plantações. O outro foi o agrofotovoltaico, que integra a produção de peixes, galinhas e vegetais através da recirculação de água e nutrientes em um sistema fechado, movido à energia solar. Em cada município, cinco famílias foram contempladas com esse último, enquanto o restante recebeu o sistema de reuso.

O projeto teve um custo total de R$350 mil, financiados pela Fundação Banco do Brasil, através do Projetos de Inclusão Socioprodutiva (PIS).  Cada sistema agrofotovoltaico está avaliado em R$2.814, fora a placa solar, cujo preço é de R$3.900.

Para Leandro Carvalho, o Projeto Semiárido Sustentável foi uma experiência profissional que o fez testemunhar realidades que antes eram distantes dele.

“Aprendi muito com as famílias e com a região. Vimos muitas mudanças: a emancipação e empoderamento das mulheres, além de tiramos agricultores da depressão. Foi muito satisfatório” – conta.

‘SISTEMA FAMILIAR’

Com chapéu na cabeça e um sorriso fácil no rosto, Geralda Nery Fernandes, 49 anos, recebeu a reportagem enquanto cuidava da plantação no terreno do filho. Residente do assentamento Mulungu, em Ibimirim, ela é natural de Buíque, município agrestino localizado no portal do sertão pernambucano.

A agricultora foi uma das pessoas contempladas com o sistema agrofotovoltaico. Junto com a família, Geralda vai à feira no centro da cidade todos os sábados. Lá vende coentro, rúcula, espinafre, couve e salsa. Para ela, o equipamento possibilitou o aumento de sua produção, já que algumas hortaliças, como hortelã, eram muito mais fáceis de se desenvolver no sistema do que no solo.

Escoamento de água para criação de peixe. Foto: Guilherme dos Santos /Coletivo Caburé

A agricultora se mudou para Ibimirim há cerca de treze anos. A mudança foi uma tentativa de recomeço, após algumas frustrações em seu casamento. Ela chegou no município com o marido, os quatro filhos, as doze vacas que criava em Buíque e a esperança de dar certo na nova cidade. Suas expectativas, no entanto, escorreram como água em solo raso.

“Aqui não tinha nem uma cerca. Faltou o que comer, e eu nunca tinha passado por isso” – recorda.

As vacas não se acostumaram com o calor do sertão. O marido dela as trocou por um carro, que foi trocado por uma moto, que virou um amontoado de tijolos perto do muro de casa.

A saída para se reerguer e superar os infortúnios foi o cultivo de alimentos. No início, apostou em coentro e feijão de corda, depois de alface. Sem conhecer ninguém, saía pela cidade para vendê-los e comprar o que faltava na residência.

Com a ajuda de uma feirante, que indicou clientes e cedeu um espaço da própria banca para Geralda, a situação melhorou. Para se deslocar até o centro, Geralda recebeu ajuda do primo, Denis, também agricultor. Hoje, está aliviada porque o filho tem um carro.

“Era sofrido porque eu carregava as coisas na mão e não tinha mais 20 anos”, comenta.

Plantação de coentro. Foto: Guilherme dos Santos/Coletivo Caburé

O último golpe que Geralda sofreu foi quando o marido decidiu sair de casa.

“Eu fiquei sem saber o que fazer” – diz.

Um ano após a separação, o Projeto Semiárido Sustentável e o Serta se aproximaram dela e de outras famílias.

“Eu estava limpando a horta e ele (Leandro Carvalho, coordenador da iniciativa) veio falar comigo. Contei a minha história e começamos tudo de novo” – relata a agricultora,

O sistema agrofotovoltaico foi implantado na casa da agricultora a partir desse contato. Cuidar da aquaponia, onde são cultivadas as hortaliças foi fácil. “

“Não tinha terra, eu achei bom” – pontua.

Os técnicos a ensinaram o manuseio e a cada quinze dias faziam a manutenção no equipamento. Na feira, Geralda passou a levar principalmente cebolinha e hortelã provenientes da ecotecnologia. De acordo Geralda, havia produtos toda semana para comercializar.

Após um ano, todo cuidado com o sistema passou a ser responsabilidade das famílias. A partir daí, a pequena produtora percebeu as dificuldades. Hoje, o equipamento permanece em frente à casa dela, mas não está funcionando. Já não é possível ver sinal de peixes, de galinhas ou do cultivo de hortaliças, pois a placa de energia solar deixou de funcionar há um ano, impedindo o bombeamento de água necessário para a criação de animais e plantações.

“Eu não sabia mexer nesse negócio da energia. Às vezes, eu chamava o Denis, mas depois ele foi embora” – lamenta.

Sistema agrofotovoltaico desativado.Foto: Guilherme dos Santos/Coletivo Caburé

O engenheiro elétrico Denis Fernandes, 35, primo de Geralda, também foi uma das pessoas contempladas pelo Serta, além de ter atuado como estagiário no Projeto Semiárido Sustentável. Assim como a agricultora, ele se adaptou rapidamente e sem grandes dificuldades ao sistema.

“Como a gente vinha de um trabalho da agricultura, não tivemos problema quando adotamos a aquaponia Só tivemos que agregar outros conhecimentos, como o cuidado com o peixe e com a limpeza do reservatório de partículas sólidas” – conta Denis.

A facilidade, segundo ele, se dava pelo fato de ser um sistema pequeno e “bem familiar”. Por isso, na casa do engenheiro, cada pessoa tinha uma atribuição.

“Meu filho tinha uma parte do serviço dele, minha enteada também. Tanto no sistema, quanto no solo” – explica.

Alface, morango e hortelã foram protagonistas na nova horta da família de Denis, que ficou encantado por fazer parte daquilo. Uma das coisas que mais o surpreendeu foi a possibilidade de criar animais.

“Achei muito interessante criar peixes. Eu me pergunto por que isso não entra de fato em Ibimirim e em outras regiões. É um negócio que você vai ter lucratividade em um pequeno espaço de produção e criação” – avalia.

Desde outubro de 2022, Denis mora em Petrolina (PE). Ele saiu de Ibimirim para se dedicar a outra profissão: manutenção de máquinas. Seu sistema agrofotovoltaico ficou.

“Se eu tivesse uma área aberta, eu o montaria. Tenho certeza que iria plantar e fazer uma horta urbana”.

Por enquanto, o equipamento, está em Ibimirim, desmontado.

Geralda lamenta não poder consertar ou trocar o equipamento danificado. Ela gostaria de que fosse reativado. Enquanto isso não acontece, ela continua plantando hortaliças no método tradicional e a criar ovelhas e uma bezerra nova. Ela mostra o fruto de seu trabalho e diz que não quer saber de outra profissão. Certa vez trabalhou como doméstica, mas desistiu:

“Tinha 19 pessoas para eu cozinhar. Era trabalho de duas pessoas” – lembra

O SOL DO SERTÃO
Sebastião Alves, coordenador do Serta. Foto: Letícia Barbosa /Coletivo Caburé

As experiências com o sistema agrofotovoltaico mostra o potencial do projeto em trazer segurança alimentar, as possibilidades para o cultivo no semiárido e novas formas de pensar o uso da energia solar. Ao mesmo tempo, revela dificuldades para a implantação do projeto em larga escala e manutenção.

Em Ibimirim, dos cinco sistemas implantados, nenhum está funcionando, enquanto em Manari dois estão em operação.

Segundo o coordenador Sebastião Alves, é inviável para o Serta conservar os equipamentos uma vez que o recurso do financiamento da Fundação Banco do Brasil foi destinado somente ao período em que o projeto estava sendo executado.

“A falta de compromisso social do governo de divulgar projetos semelhantes é um desafio. Se houvesse uma política para a gente fazer aquaponia e instalar biodigestores, estaríamos em condições econômicas e sociais muito melhores” – diz Sebastião.

O especialista acredita ainda que falta visibilidade ao sistema agrofotovoltaico, que é desconhecido pela maioria das pessoas.

Para ele, a produção de alimentos em larga escala e com utilização de agrotóxico não resolve o problema da insegurança alimentar no Brasil.

“No final do governo Bolsonaro tinha 30 milhões de pessoas passando fome e o agronegócio estava produzindo alimento que dava para alimentar mais do que o Brasil inteiro” [3] 

Sebastião defende a produção de energia através de sistemas independentes.

“As grandes usinas solares estão sendo implantadas à custa do desmatando da Caatinga. Estão pegando nossos raios de sol e transformando em energia caríssima. E antigamente, nós, os pobres, que éramos donos do sol” – reflete.

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Notas de pé de página

[1] A região tem sete (Arcoverde, Betânia, Custódia, Ibimirim, Inajá, Manarí e Sertânia) uma população de 233.99 mil habitantes O Produto Interno Bruto (PIB) da região é de R$ 2,3 bilhões, cerca de 1% do PIB de Pernambuco, com uma composição de 5,8% para a agropecuária, 6,9% para a Indústria e 87,3% para serviços. As principais cadeias produtivas da região são Cultivo de melão, ovinocaprinocultura, indústria têxtil e de alimentação e polo de serviços regionais, com destaque para saúde e hotelaria.

[2] O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) é um número que varia entre 0,000 e 1,000. Quanto mais próximo de 1,000, maior o desenvolvimento humano de uma localidade. Até 0,499 ele é muito baixo. De 00,5 até 0,599 é baixo. De 0,6 a 6,99 é médio. De 0,7 a 0,799 é alto. De 0,8 a 1,0 é muito alto. O índice é formado por três quesitos: educação, longevidade e renda. O de Ibimirim era 0,552 (baixo), o equivalente ao 5.169º lugar entre os 5.570 municípios brasileiros; e o de Manari, 0,487 (muito baixo), o 5,547º colocado. Ver mais em https://www.undp.org/pt/brazil/desenvolvimento-humano/painel-idhm

[3] Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que 29,2 milhões de brasileiros viveram algum tipo de insegurança alimentar no final de 2021. O número representa mais de 10% da população do país.

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Legenda da foto principal: Geralda Nery em sua horta. Foto: Guilherme dos Santos/Coletivo Caburé

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Leia a série completa

 O futuro começa no semiárido 1: Potencial energético O futuro começa no semiárido Final: Cadê as políticas públicas?’

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Esta reportagem integra a série “O futuro começa no semiárido”, realizada com recursos do Nordeste Potência e Clima Info.

 

Coletivo Cabure Contributor

O Coletivo é formado por Guilherme dos Santos, Laysa Vitória e Letícia Barbosa, alunos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Os três foram ganhadores do Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão 2023, promovido pelo Instituto Vladimir Herzog de Direitos Humanos.

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