O futuro começa no semiárido – Final

Sem políticas públicas, a transição energética avança no Brasil, mantendo a exclusão

Guilherme dos Santos, Laysa Vitória e Letícia Barbosa/ Coletivo Caburé

Ibimirim é um dos sete municípios que compõem o Sertão do Moxotó, em Pernambuco. A cidade fica a 334,4 quilômetros do Recife, capital do estado. Quanto à distribuição demográfica, 44,74% dos 26.593 habitantes estão concentrados na zona rural, segundo censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A região, conhecida como a terra do santo e do mel [1], vem se destacando pelo potencial para um ramo de negócios cada vez mais importante na atualidade: a energia. Em outubro de 2023, a gestão municipal realizou evento com empresários da energia solar com projetos em andamento ou em implantação na cidade, o que representa a tendência de ampliação desse ramo de negócios.

Quem anda por Ibimirim percebe a expansão do segmento. Os carros com adesivos de empresas de Energia Solar indicam a presença delas no território. Em conversas com os moradores e moradoras, é possível entender que esse é movimento. Há cerca de um ano, o município recebe grupos empresariais do setor de luz solar.

O cenário acompanha as expectativas de transição energética para os próximos anos. Diante dos problemas ambientais, como o aquecimento global, o mundo vê a necessidade de reduzir a utilização de combustíveis fósseis e a emissão de gases. Desse modo, os meios de obter energia renovável aparecem como grandes aliados.

Porém, nem tudo é tão simples. A utilização das chamadas “energias limpas” também tem impactos negativos. Do ponto de vista ambiental, por exemplo, a confecção das placas solares exige a utilização de metais. Assim, a difusão desse modelo implica uma maior extração.

Sobre isso, Cássio Cardoso, engenheiro elétrico e assessor político no Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) aponta:

“É preciso fazer uma barragem para depositar os rejeitos da mineração das rochas, além de causar impacto ambiental com a exploração, incluindo elevado consumo de água. Isso pode comprometer o uso da população. Nós temos ainda risco [de rompimento] que essas barragens trazem” – explica.

Além dos problemas ambientais, o conflito de terra também costuma ser agravado. Cássio chama atenção para os latifúndios de energia solar, que causam problemas como o arrendamento das terras por valores irrisórios pagos pelas empresas e a disputa entre a energia solar e a produção de alimentos do campo.

ENERGIA SOLAR PARA QUEM?

Para Cássio Cardoso, a solução possível para uma transição energética justa seria a geração distribuída. Neste formato, a energia gerada em um território é direcionada às residências e estabelecimentos daquela localidade. Com essa estruturação, desconcentra-se a produção e abre-se um leque de possibilidades para a população mais vulnerável.

“Os produtores rurais poderiam usar a energia elétrica para fazer, por exemplo, um poço nas propriedades deles e instalar uma bomba, garantindo a segurança hídrica e aumentando a produção de alimentos, a segurança alimentar e o aumento da renda, graças a irrigação de água. Assim, a produção de alimentos poderá aumentar e ser vendida, ampliando a renda e evitando o êxodo rural”, esclarece o assessor do INESC.

Porém, a geração desconcentrada desse tipo de energia também tem suas contradições. O Brasil ocupa atualmente o 6° lugar no ranking global de energia solar fotovoltaica. No período do ranqueamento, o país contava com 37,4 GW de potência instalada. Desse total, 13 GW é gerado pelo segmento centralizado, constituído de usinas solares contratadas por meio de leilões de energia realizados pelo Poder Público. Já os 28 GW são gerados de forma distribuída, a partir de painéis instalados pelos próprios consumidores. No primeiro trimestre de 2024, este valor já foi superado, atingindo 41 gigawatts (GW).

O Brasil, entretanto, carece de políticas públicas para o setor. O que representa um obstáculo para sua expansão, e, principalmente, a conversão de uma ferramenta de combate à desigualdade em mais um instrumento para mantê-la. O problema fica evidente ao se analisar o panorama nacional da energia solar distribuída:

“A geração distribuída é destinada até agora a uma classe da sociedade que tem condições financeiras para instalar painel solar na sua casa lote. São pessoas que podem ir ao banco, fazer um empréstimo e instalar o sistema” – aponta Cássio.

O especialista se refere à normativa 482, em vigor desde abril de 2012, que estabelece a possibilidade de geração de energia a partir de fontes renováveis para consumidores em geral. Nela, está estabelecido que excedente pode ser fornecido para a rede de distribuição da cidade em que reside em troca de compensação no valor de seu próprio consumo de energia.

Contudo, o investimento para adotar o sistema está fora do alcance de grande parte da população. Estima-se que a instalação somada à aquisição de todos os itens – inversor solar, estruturas de suporte e fixação, cabeamento, caixa de junção e o painel fotovoltaico – custe em torno de R$25.000,00.

Mais recentemente, em fevereiro de 2024, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) regulamentou a Lei 14.300, sancionada em 2022. Considerada o marco legal da mini e microgeração distribuída, a resolução prevê a formação de cooperativas para geração de energia solar, permitindo o rateio dos custos e dos créditos de compensação. Outro ponto é o benefício do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE) para aqueles que instalassem as placas até 12 meses depois da promulgação da lei.

Após atualização aprovada, a isenção de subsídios passou a ser garantida até 2045 para os consumidores-geradores que solicitaram a conexão com a rede de distribuição da ANEEL até março de 2024.

SEMIÁRIDO SUSTENTÁVEL

Encabeçado pelo Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), o projeto Semiárido Sustentável é um exemplo da geração de energia solar de forma distribuída em pequena escala. A iniciativa beneficiou cinco famílias de Ibimirim com um protótipo do sistema agrofotovoltaico. O sistema, constituído por um módulo de placa solar, é adicionado a aquaponia, tecnologia que integra cultivo de hortaliças, reutilização de água e criação de peixes e galinhas.

 

Feira realizada com hortaliças plantadas com o sistema agrofotovoltaico. Foto: Serta

Instalada em 2021, a proposta, colocada em prática por meio de financiamento da Fundação Banco do Brasil, teve duração de 12 meses, incluindo a instalação e orientações quinzenais de manuseio do sistema. Na segunda etapa, cada família ficou responsável pela manutenção de seu próprio equipamento. Foi o caso da agricultora Geralda Nery, de 49 anos, e do engenheiro elétrico e também agricultor Dênis Fernandes, 35, dois dos contemplados.

Sobre como era a rotina no período que utilizava a estrutura agrofotovoltaica, Geralda conta que todo dia era preciso verificar o equipamento de manhã, meio-dia e à tarde. Hoje o sistema está desativado porque a placa de energia solar pifou.

Ela diz que há cerca de dois anos não via mais efeito do equipamento:

“Tentei manter o funcionamento das outras partes do sistema de várias formas. Eu não sabia mexer nesse negócio da energia. Eu tinha dificuldade para deixar aquela água girando. Tinha peixe, aí algumas vezes eu ficava jogando água no peixe. Aí depois parei porque não ia ficar fazendo isso direto porque esse era o papel da energia” – lembra.

Geralda apresenta o que restou de seu sistema agora desativado. Foto Leticia Barbosa/Coletivo Cabur

O caso de Dênis foi um pouco diferente. O sistema dele manteve-se em bom funcionamento até ele precisar desmontá-lo por precisar mudar de cidade. Ele, no entanto, tem expectativa de um dia reativá-lo.

Para ele, um dos principais benefícios da iniciativa estava no bolso.

“É um sistema que ajuda ao longo do tempo. Se eu deixo de comprar algo que produzo, eu também estou ganhando. Você não tem que sair de casa para comprar alguma coisa”, defende o engenheiro.

Entretanto, a realidade atual no Assentamento Mulungu, onde foram acomodados os equipamentos para o funcionamento da aquaponia e energia solar, só há vestígios e lembranças do que foi o sistema.

Das cinco casas que receberam o sistema, apenas duas continuam habitadas pelas mesmas pessoas, entre elas a de Geralda. Nenhuma delas mantém o sistema em funcionamento. O motivo foi a dificuldade de lidar com o equipamento. Na perspectiva da agricultora, se tivesse alguém ou alguma instituição que se encarregasse de acompanhar por mais tempo o desenvolvimento em cada residência, a proposta teria sido mais eficiente.

UM SOL PARA CADA UM

O projeto promovido pelo Serta, em Ibimirim, é um exemplo da potencialidade de uma transição energética que de fato acompanhe o desenvolvimento social.

Outra proposta funciona na cidade sertaneja de Itacuruba, em Pernambuco, viabilizada por meio da parceria do Centro Cultural Brasil Alemanha (CCBA) com a ONG alemã Atmosfair. As placas fotovoltaicas foram instaladas na Aldeia Serrote do Campos, onde vive a comunidade indígena Pankará. Por lá, a iniciativa liderada pelo professor Genival Barros não conta com a parte da aquaponia, mas as hortaliças também são cultivadas abaixo das placas solares.

Manari, também no sertão pernambucano, e Suape, localizado no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife, são outros pontos onde há experiências semelhantes de utilização da captação e utilização da energia solar. Em comum, todas elas são tentativas de promover melhor acesso à água, segurança alimentar e geração de renda para populações vulneráveis.

Nesse sentido, para Cássio Cardoso, políticas públicas são fundamentais para que pessoas mais vulneráveis, como pequenos produtores rurais e moradores de periferia possam usufruir do recurso e, como consequência, aumentar a presença de energia renovável no Brasil.

Leandro Carvalho, coordenador de projeto do Semiárido Sustentável, avalia que financiar iniciativas é um grande obstáculo. Além do Estado, as empresas poderiam ser aliadas, se não estivessem mais preocupadas com números.

“As empresas não têm interesses em aportar dinheiro em projetos pontuais. Prefere aportar recursos para um projeto de assistência técnica para atender 1000 famílias diretamente e 5 mil pessoas indiretamente”, afirma o coordenador.

Leandro analisa que financiamentos de origem corporativa têm a tendência de rejeitar ações mais complexas, com etapas mais profundas que se restrinjam a uma quantidade menor de beneficiados.

Em 2023, o Brasil apresentou na Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP28) novas metas de emissões de gases do efeito estufa. O país agora deve atingir 48% de redução até 2025 e chegar a 53% até 2030. No mesmo ano, a fonte solar chegou a gerar quase um terço da demanda nacional, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Dados dos primeiros meses de 2024 apontam a mesma tendência.

Apesar da perspectiva positiva que este cenário possa representar, o país demanda ainda de uma revisão legislativa e de mais políticas públicas para que o sol, esse bem que chega a todos e todas, possa ser aproveitado com equidade.

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Nota de pé de página

[1] Ibimirim tem na apicultura um dos principais pilares da economia. A cidade exporta mel de excelente qualidade para o exterior. Em 2011 produziu 250 toneladas do produto. O município também é conhecido pelos trabalhos feitos por mestres artesãos, como Manuel Santeiro, que produziu a imagem de Madre Paulina – primeira santa brasileira – e São Bento entregues pelo ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e o ex-governador pernambucano, respectivamente, aos papas João Paulo II e Bento XVI (16).

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Legenda da foto principal: Vista de Ibimirim. Foto Ascom Prefeitura

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Leia a série completa

 O futuro começa no semiárido 1: Potencial energético O futuro começa no semiárido 2: Elogios e problemas de manutenção’

 

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Esta reportagem integra a série “O futuro começa no semiárido”, realizada com recursos do Nordeste Potência e Clima Info.

 

Coletivo Cabure Contributor

O Coletivo é formado por Guilherme dos Santos, Laysa Vitória e Letícia Barbosa, alunos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Os três foram ganhadores do Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão 2023, promovido pelo Instituto Vladimir Herzog de Direitos Humanos.

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