Presos suspeitos de comandar milícia rural em Correntina

Grupo prestava serviços a fazendeiros e ameaçava comunidades tradicionais

– Paulo Oliveira e Thomas Bauer –

Segunda-feira, 25 de março de 2024. Em Correntina, no oeste da Bahia, o calor era intenso, beirava os 30 graus. Na Câmara Municipal, porém, o tempo estava propício para amenidades. Tanto que o vereador Nelson da Conceição Santos, o Nelson Carinha, apresentou projeto concedendo título de cidadão correntinense para o policial militar Carlos Erlani Gonçalves Santos, o “Cabo Erlani”.

Nas palavras do político, Erlani, que na reserva remunerada passou a ser primeiro sargento, merecia reconhecimento pelos “bons e relevantes serviços prestados ao município”. Carinha apresentou como justificativa o fato de o PM ser “um homem de bem, de conduta exemplar, cidadão honrado e trabalhador, cumpridor fiel de seus deveres para com seus semelhantes”. Acrescentou que ele entrou para a polícia na década de 1980, comandou o destacamento da cidade, foi delegado de polícia ad hoc (designado) e vereador na cidade de Jaborandi.

Por fim, destacou que “Cabo Erlani” atuava há mais de 20 anos em Correntina, Coribe, Jaborandi, Cocos e Rosário como empresário da área de segurança. E, além disso, era pastor da Assembleia de Deus ADS Correntina.

Um ano e um mês após a homenagem do vereador., o “cabo-sargento” foi preso na “Operação Terra Justa”, A detenção foi realizada por policiais da Companhia Independente de Ações no Cerrado (Cipe), da Polícia Civil e pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público da Bahia.

Na mesma ocasião foi detido o vigilante José Carlos Alves dos Santos, subordinado de Erlani. Ambos são acusados de crimes contra a paz pública e constituição de milícia privada. De acordo com o Ministério Público, a prática dos crimes perdura há pelo menos 10 anos.

Os crimes contra a paz pública, segundo o site Jusbrasil, estão definidos como condutas que ferem a segurança pública, que causem danos ou incitem alguma infração que fere a sociedade em questões de segurança do indivíduo como um todo. Eles englobam o artigo 288 (associação criminosa) e 288-A (constituição de milícia privada [2]).

O primeiro crime prevê pena de reclusão, de um a três anos, podendo ser aumentada em até 50% se a associação é armada ou houver a participação de criança ou adolescente. O segundo estipula de quatro a oito anos de prisão.

Nelson Carinha, por sua vez, já tinha sido preso no dia 26 de outubro de 2017, na “Operação Último Tango”. Ele, o presidente da Câmara e quatro outros vereadores foram acusados de formarem organização criminosa e cometerem crimes de peculato e corrupção passiva.

Denúncia do Ministério Público dá conta que eles fraudaram processos licitatórios e desviariam verbas públicas através de distribuição irregular de cotas de combustível, inserção de gratificações nas remunerações dos servidores da Casa e “rachadinhas”. Segundo os promotores, a prática foi perpetrada de 2015 até outubro de 2017. Carinha foi solto quatro dias depois.

SÉRIE DE CRIMES

A violência em Correntina recrudesceu em setembro de 2022. Temendo a derrota do então presidente Jair Bolsonaro nas eleições, latifundiários intensificaram a contratação de pistoleiros e empresas clandestinas de segurança para expulsar integrantes de comunidades tradicionais.

As sucessivas ameaças de morte, disparos de tiros, abertura de trincheiras em estradas e destruição de ranchos e cercas foram ações encomendadas por fazendeiros. Os grandes proprietários rurais visavam tomar as áreas de cerrado repleta de nascentes e com a vegetação preservada por integrantes das coletividades de fundo e fecho de pasto, que há mais de dois séculos se estabeleceram na região.

 

Carteira de Identidade de Carlos Erlani apreendida pelos PMs [1]. Reprodução
Os fecheiros como são chamados criam gado e sobrevivem do extrativismo e da agricultura de subsistência. Um dos atentados contra o grupo aconteceu no dia 6 de novembro daquele ano. Dois idosos foram abordados por motoqueiros que haviam cortado arame e destruído cercas da comunidade para que os animais dos pequenos criadores fugissem.

Um dos idosos, seu João [3], 81 anos, foi rendido por um pistoleiro. Com arma de cano curto na cintura e outra de cano longo, encostado no guidão da moto, o criminoso gritou:

“De quem é o gado que está aqui?”.

Diante da resposta de fecheiro, confirmando ser o proprietário de 10 cabeças de gado, o jagunço disse que ia matar os animais e os donos, caso os bois não fossem retirados do local. Falou ainda que veio do Mato Grosso para resolver a situação e que já tinha abatido uma rês para comer.

“Vocês deram sorte de estar fora do fecho. Seu velho safado”, berrou, enquanto se dirigia em direção a João, que estava montado em uma mula.

O pistoleiro estava com um pedaço de pau retirado da cerca na mão. Ele arremessou a madeira em direção ao idoso que não foi atingido porque o animal que montava mudou de posição e recebeu a pancada destinada ao vaqueiro. Tudo isso foi testemunhado por Pedro*, 69 anos, que acompanhava o vizinho.

Ainda aos berros, o bandido mandou os dois se retirarem. A essa altura, apontava o rifle para o fecheiro mais idoso.

“Não falei nada, sai devagar porque velho não corre. Minha pressão subiu e passei o resto do dia assustado. Não consegui dormir porque toda hora lembrava da arma apontada para mim” – relatou a vítima.

Um atentado ainda mais grave ocorreu no dia 11 de abril de 2023 contra um grupo que fazia mutirão no Fecho de Pasto do Cupim. Três pessoas foram feridas a tiros, uma delas em estado grave. Os atingidos foram G., 58 anos, alvejado na barriga; A., 43 anos, ferido no braço e na costela; e V., 68 anos, baleado na clavícula.

Médicos de Correntina decidiram transferir G. para o Hospital de Barreiras, mas como ele perdeu muito sangue e corria risco de morte, resolveram fazer a cirurgia de urgência. V. e A. foram operados para retirar as balas alojadas em seus corpos.

Estes são apenas dois exemplos das dezenas, talvez centenas de ações de empresas de segurança clandestinas e pistoleiros, que atuam na região há uma década. Eles agem contratados por fazendeiros interessado em tomar as terras das comunidades tradicionais..

TERRA JUSTA

No último dia 25 de abril, finalmente, a PM, Polícia Civil e o Ministério Público da Bahia realizaram uma operação, que atingiu em cheio o grupo de milícia privada, comandada por Erlani. Foram cumpridos dois mandados de prisão e quatro de busca e apreensão nos municípios de Correntina e Jaborandi.

José Carlos Alves dos Santos, o Coquinha, 48 anos, considerado pelos investigadores como integrante do segundo escalão da súcia, foi capturado na Fazenda AgroThati, em Correntina, onde atuava como chefe de segurança. No momento da abordagem, os policiais encontraram com ele uma mochila com uma pistola turca modelo k2, nove munições intactas, um revólver Taurus 38 e um porta munições.

Na casa de Coquinha, foram apreendidos mais um revólver Taurus 38, duas escopetas sem numeração, carregadores, rádios comunicadores, centenas de munições calibre 22, 24, 32, 36, 38 e 45. Alguns projéteis estavam deflagrados.

 

José Carlos. Reprodução

A AgroThati é uma propriedade de 24.500 hectares, localizada em Correntina. No vídeo promocional no site da empresa consta que ela pretende produzir etanol, biodiesel e biometano no local, além de criar gado e suínos. A fazenda também investe na plantação de milho e cereais.

Já Carlos Erlani agia por meio da empresa Empreiteira & Segurança CE do Corrente LTDA. Embora promotores e policiais afirmem que José Carlos “Coquinha” fosse subordinado a Carlos Erlani, na Receita Federal consta que os dois são sócios da firma. A CE, iniciais do PM da reserva, é considerada clandestina por não ter autorização da Polícia Federal para funcionar.

A promotoria acusa os dois suspeitos de usarem o negócio para praticar “ameaças, lesões corporais, grilagem de terras e expulsar posseiros de comunidades tradicionais a mando de fazendeiros.

Quadro de sócios da Empreiteira & Segurança CE do Corrente LTDA

Para prender os acusados, Luís Ferreira de Freitas Neto, coordenador do Gaeco, e mais seis promotores e promotoras analisaram boletins de ocorrências e fizeram a oitiva de dezenas de pessoas de oito comunidades tradicionais. Contaram ainda com representações feitas por advogados da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), com dados obtidos a partir de escutas telefônicas e telemáticas autorizadas pela justiça e declarações colhidas pelo Grupo Especial de Mediação e Acompanhamento de Conflitos Agrários e Urbanos (Gemacau) da Polícia Civil.

O trabalho bem fundamentado fez a justiça considerar que os dados apresentados são contundentes e comprovam a liderança e a presença dos denunciados no cenário de conflito agrário local e atuando de forma violenta como prepostos da empresa de segurança. Ela ressaltou que o poderio bélico da milícia rural era usado para impingir temor nas comunidades e no cometimento de delitos sob o comando de fazendeiros.

No processo fica clara a existência de um áudio denunciando Erlani por pistolagem e solicitando arma curta e munição para a realização de um trabalho. Não escapa o fato de o “cabo-sargento” ter admitido em um depoimento na delegacia de Cocos, que não possuía registro da Polícia Federal para sua empresa funcional e o fato de o suspeito ter uma extensa ficha criminal.

Pesquisa feita por Meus Sertões no site Jusbrasil mostra que Carlos Erlani possui 31 processos em andamento, sendo 17 na área criminal. No relatório judicial consta ainda que o PM da reserva foi condenado no processo 8000437.69.2022.9.05.0060 por ameaçar uma pessoa que tinha ido à Fazenda

 

Policiais fazem buscas no endereço de um dos suspeitos. Foto: Polícia Militar

Santa Cruz, em Cocos, para tratar de uma divergência. A vítima, que veio do sul do país, foi ameaçada por Erlani, que o expulsou do local, armado. Por este crime, o dono da empresa CE Segurança foi condenado a cinco meses de detenção em regime aberto. Na ação, Erlani estava acompanhado de José Carlos e mais cinco pessoas.

A violência pratica há anos pelos dois fez justiça concluir que a liberdade de ambos é um risco à ordem pública. Ela diz ainda que o padrão de violência, intimidação e restrição de acesso às terras permite concluir que existe um sério conflito no campo e que o grupo criminoso exercia poder paralelo no âmbito desses confrontos.

Já os integrantes do Gemacau apontaram a inércia das autoridades policiais locais, que não agiam para resolver as questões, um provável indicativo da influência do PM da reserva.

Além de Erlani e José Carlos, os investigadores cumpriram mandados de busca e apreensão nos locais onde vivem e trabalham outros dois supostos cúmplices e funcionários da CE Segurança.

Um deles foi identificado como Divino Claro dos Santos, 41. Subordinado a Erlani, estaria envolvido em episódios violentos contra comunidades tradicionais, Ele estaria vinculado às fazendas Santa Tereza e Talismã, sobrepostas com as comunidades de fundo e fecho de pasto.

“A atividade miliciana de Divino no grupo (…) se trata de unir forças para defender os interesses espúrios dos latifundiários com quem tem vínculo. (…) A função do Divino é também de informante dos latifundiários das atividades realizadas nas comunidades de fundo e fecho de pasto que vão de encontro aos seus interesses “– relataram os investigadores.

Já Camilo Silva Lauro seria integrante da milícia e trabalharia para o PM reformado. Ele, se acordo com os policiais, possuiu vínculos com as fazendas Talismã e Bandeirantes. O suspeito teria se unido à empresa clandestina para tornar mais eficaz a defesa dos interesses dos latifundiários.

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NOTAS DE PÉ DE PÁGINA

[1]  Dados com números dos documentos foram apagados digitalmente

[2] Constituição de milícia privada quando o sujeito constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal.

[3] Nomes fictícios por questões de segurança.

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Legenda da foto principal: Armas, munições e transmissores foram apreendidos durante a ação policial. Foto: Polícia Militar

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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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