“O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” – Gênesis 2:7.
Do barro que os homens foram feitos, segundo a Bíblia, são produzidas peças artesanais divinas, em Barra (BA). Da tabatinga do rio São Francisco e do tauá do Rio Grande também são extraídas as tintas brancas e amarela – esta depois da queima fica vermelha -, usadas para colorir a cerâmica tradicional da cidade, produzida por seis artesãs e dois ajudantes nas instalações cedidas por comodato pela Igreja Nossa Senhora de Fátima.
Quem vê os barqueiros, casas, caqueiros e a moringa-moça não imagina as dificuldades que as artesãs têm para preservar uma tradição secular. A começar pela associação, criada em 1971, e hoje desativada por conta do baixo número de integrantes e de uma dívida que beira R$ 1 mil com a Receita Federal.
Durante o restante da narrativa, a ceramista Leonor Pereira dos Santos Neta dirá quais todos os outros problemas, mas deixemos isto para depois porque um dos propósitos deste texto é exaltar a beleza das peças estocadas no galpão e nas oficinas, feitas à mão, sem o auxílio do torno.
Márcia Rodrigues Evangelista, 26 anos, estudou até a sexta série. Aprendeu com o marido a arte da cerâmica. Levou um ano até se aventurar a fazer copos e porta-joias, que vende a R$ 2, a unidade. O trabalho mais caro e mais difícil é a moringa em forma de mulher, criada pelas antigas artesãs da cidade:
“Primeiro tem que fazer o corpo, depois os braços. O pescoço é o mais complicado. Os mais experientes fazem uma peça dessa por dia”, explica.
Assim como os outros dois ceramistas que estavam trabalhando, Márcia indica Leonor para falar pelo grupo. Ex-presidente da associação, mantém os livros em dia, com dados sobre estoques e quanto cada colaborador ganha.
A ex-presidente conta que a igreja cedeu o espaço para a associação quando irmã Cândida, missionária italiana chegou à cidade e viu a dificuldade que as artesãs tinham para produzir o artesanato em casa. Cada uma tinha um forninho improvisado em seu quintal e guardavam as peças em tábuas, em cima das mesas, em tamboretes ou espalhadas pelo chão. A religiosa pediu o espaço para a paróquia e ele foi cedido em comodato, renovado a cada 10 anos.
No novo espaço, funcionam uma oficina, local de exposição e armazenamento, quatro fornos e área para guardar barro e lenha. Desde então, com uma única exceção, o artesão Gerard, que montou a oficina de criação de santos e orixás, ninguém mais trabalha em casa.
FALTA DE APOIO
Leonor se incorporou ao grupo em 1995, três meses depois do nascimento do filho – ela tem mais uma filha e dois enteados. Na época, o Instituto de Artesanato Visconde Mauá, responsável pelo desenvolvimento, divulgação e incentivo do artesanato na Bahia promovia cursos e foi em um deles que a artesã se especializou. Em 2015, o instituto foi desativado pelo atual governador Rui Costa.
A tia de Leonor era uma das professoras e a incentivou a trabalhar com cerâmica. Desempregada, ela se dedicou. Aprendeu as técnicas, ganhou espaço e chegou a ser tesoureira e presidente da associação que contava com 15 artesãs e artesãos. Desse grupo, só restam ela, Elizabeth e Maria Aparecida. Os demais desistiram da atividade.
“Na minha opinião, artesanato é luxo. Ainda mais com essa crise que está aí. Quando a pessoa vem comprar acho que é porque não tem mais nada para presentear. Primeiro compram roupa, perfume…Quem adquire uma peça é porque tem uma ‘condiçãozinha’ melhor. O fraco já não compra. Tem muita gente que visita aqui, diz que é muito lindo, mas levar é bem pouco. Uns dizem que não têm espaço no carro, outros dizem que vai dar trabalho para levar, que não tem dinheiro e que só veio a Barra visitar mesmo a família” – relata.
O desânimo de Leonor é visível, mas basta ouvir um elogio às peças que seu estado de espírito ganha um sopro de alento. Diante do elogio à moringa-moça, ela conta que é uma criação das trabalhadoras da região e que passou por uma atualização. Ressalta que a peça foi premiada em uma exposição em Minas Gerais.
A artesã chega a dar um sorriso quando mostra o “cofre Sílvio Santos”, feito por um dos rapazes que trabalham no local em homenagem ao apresentador e empresário, dono da emissora de televisão SBT. A associação do objeto com a riqueza de Sílvio é evidente.
No passado recente, moringas, potes e caqueiros eram os objetos mais vendidos. Isso diminuiu quando a energia elétrica chegou aos brejos (povoados) de Barra e os moradores compraram geladeiras. Hoje, o líder do ranking é o barqueiro.
A esperança de ganhos maiores dos ceramistas são os turistas que visitam o município, principalmente, nas festas de final de ano e no São João. Às vezes, o mês de julho, férias no sul do país, é melhor do que o das festas juninas. No entanto, é na participação de eventos em outras cidades que a renda de quem vive de artesanato melhora.
Leonor cita como exemplo a feira de agronegócios de Barreiras. A ida só é possível porque a prefeitura cede transporte para os trabalhadores, que arrecadam, em média, R$ 250 reais. No dia a dia, em Barra, o livro que registra as vendas mostra que um ganha R$ 5 um dia, outro retira R$ 10. Os ganhos são esporádicos.
O último grande evento que Leonor participou foi realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, no Museu do Folclore, Rio de Janeiro, em dezembro de 2016. Ela recebeu passagens, diárias e verba para levar 120 peças do artesanato barrense.
“O frete das peças daqui para lá foi R$ 2.800. Eu não sei se as peças cobriam esse valor. Então foi só mesmo o interesse de ajudar a gente” – diz.
O transporte, aliás, é um dos problemas citados por Leonor. Segundo ela, o preço é caro e o serviço, deficiente. A artesã conta que comerciantes de Capão da Canoa (RS) encomendaram vários objetos de barro. Quando receberam o material, metade estava quebrado.
MEDIDAS EMERGENCIAIS
Uma das providências necessárias para a reativação da associação de artesãs, além do pagamento da dívida com a Receita, é ampliar o número de sócios. Leonor admite que não sabe se pode incluir pessoas que trabalham com outro tipo de matéria-prima. Nos brejos da cidade, há quem utilize palha e couro. Sem este esclarecimento e sem saber como obtê-lo, nada é feito.
Na relação de dificuldades, estão dificuldades para utilizar a internet: não há verba para wi-fi, a rede é lenta, os artesãos não sabem utilizá-la adequadamente. Os remanescentes da associação criaram uma página nas redes sociais, mas esqueceram o endereço porque utilizavam pouco.
No âmbito local, a queixa é a inexistência de placas que indiquem onde funciona a oficina dos artesãos. Leonor já pediu ao prefeito e seus assessores para que fossem instaladas pelo menos três delas – duas nas entradas da cidade por Xique-Xique e Ibotirama – e uma no centro. Ouvi como resposta que não havia verba.
Enquanto não resolvem questões básicas, só um dos quatro fornos da oficina funciona. O menor deles. Uma vez por mês.
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Serviço: Quem quiser ajudar a associação ou adquirir peças deve ligar para Leonor. Telefones: (74) 9 8844-8355 e (74) 9 9816-8595
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.