Sempre gostei de geografia, talvez porque minha mãe seja licenciada na disciplina e eu tenha crescido abrindo seus mapas, que considerava gigantes (hoje nem tanto), aprendendo sobre as divisões políticas e geográficas do Brasil e dos continentes.
No início de 2016, já jornalista, me inscrevi para o primeiro concurso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar de gostar da parte de pesquisa, a vaga pleiteada era para trabalhar com as redes sociais. Faltei a prova pois tinha um compromisso no mesmo dia.
Em 2017, fiquei sabendo do Censo Agro. Eu me inscrevi sem muitas pretensões porque não teria tempo de estudar muito. A prova seria realizada a duas quadras da minha casa. Não custava tentar. Passei.
Já para os demais envolvidos no Censo havia muitas surpresas. Eles conheceram a estrutura do IBGE para o trabalho. Até aqueles que acumulam mais de 30 anos de trabalho se deparam com o amplo uso da tecnologia.
Desde o Censo Agrícola de 2006 foram feitos questionários através de pequenas máquinas chamadas de Assistentes Pessoais Digitais (PDA’s na sigla em inglês), menores em tamanho e eficiência em relação aos Dispositivos Móveis de Coleta (DMCs) utilizados atualmente. Além disso, o banco de dados foi modernizado com um indicador gerencial e buscador mais eficientes.
Muita gente ao abrir a porta de suas residências para o IBGE deve se perguntar como são escolhidas as equipes de recenseadores. Elas são selecionadas através de concurso público para atividade temporária. Os outros cargos são preenchidos da mesma forma – servidores administrativos, pesquisadores e supervisores. São os recenseadores que fazem o trabalho de campo para obter informações que formarão o retrato da produção agropecuária do país.
Eu fui uma das sete pessoas que ocuparam o cargo de supervisora na área de Vitória da Conquista, subárea de Brumado, que também compreende os municípios de Malhada de Pedras, Guajeru e Aracatu.
O trabalho começou em meados de 2017. Alisson Porto, Beatriz de Paula, Eliabe Rodrigues, Fabiano Santos, José Vicente e Suzana Almeida eram os outros companheiros. Nós estávamos subordinados a Reynaldo Fontenelle, pesquisador há mais de 30 anos. Tínhamos ainda o apoio de Gabriel Couto, coordenandor de Conquista.
Na segunda semana, recebemos treinamento junto à equipe de Barra da Estiva afim de estarmos aptos para treinarmos os recenseadores. Esta fase durou duas semanas. Treinei o pessoal que atuaria em Guajeru e Malhada de Pedras.
O COMEÇO
A coleta de dados começa com perguntas pessoais que não serão divulgadas no resultado final do Censo, mas serão incluídos no banco de dados do IBGE. Por não ser um órgão fiscalizador, o IBGE não se importa se você tem o nome sujo civil ou criminalmente nem se você usa mais agrotóxico por ano do que devia.
Eu sei que pode parecer insensível falar assim, mas como você acha que as pessoas iriam prestar informações com tranquilidade se sua privacidade não fosse mantida? Apesar disso, tem gente que tenta enrolar, mesmo quando o recenseador diz que assinou termo de sigilo e não pode divulgar informações pessoais.
Nesse caso, tem que ter jogo de cintura para segurar a entrevista.
Depois dos dados pessoais coletados, era a vez de obter informações de produção, venda e gastos relacionados ao setor agropecuário realizados dentro do estabelecimento. Por conta de contradições geradas, muitas vezes os questionários tinham que voltar para revisão.
Alguns entrevistados davam informações erradas pensando que estávamos fazendo levantamento sobre empréstimos ou éramos fiscais. Quando explicávamos que era o Censo, corrigiam.
Os supervisores do posto de coleta do Censo, em Brumado, onde fiquei lotada, eram responsáveis pela leitura dos questionários. Conferíamos quantidades exageradas das safras, valores de aposentadorias incompatíveis com o que é pago pelo INSS, quantidade de combustível utilizada em excesso mesmo que a pessoa não tenha carro.
Alguns dados absurdos. Imagine um pé de alface que não precisa de água para sobreviver no sertão? Teve. E uma galinha que bota dois ovos e meio por dia, 365 dias por ano? Também foi declarada esta estranha produtividade. Tudo que destoava tinha que ser corrigido.
CORREÇÕES
Isso foi destaque no Censo deste ano. A supervisão avançou anos luz em relação ao que levantamento de 2010, graças ao avanço da tecnologia que citei anteriormente. Nós tínhamos acesso a rota utilizada pelo recenseador para chegar às comunidades e estabelecimentos. Imagens de satélite ajudavam a monitorar se algo havia sido deixado para trás.
Nós sabíamos o tempo gasto na realização da entrevista e comparávamos com o resultado para detectar possíveis fraudes. Quando surgia uma suspeita era hora de pegar o “Uninho”, como chamávamos os Fiat do instituto, e ir conferir se as informações registradas eram reais. Meu pai, que me viu fazer o trabalho de supervisão em campo, disse que o apelido dos carros devia ser “jegue” pelo “valor histórico e cultural” que eles tinham.
Dizem que a função de supervisor era mais tranquila antigamente porque a conferência era feita por amostragem. Agora, graças a tecnologia, conferimos todos os dados. Quando estávamos em campo checando informações, alguém fazia as correções em nosso lugar para não atrasar o trabalho. A equipe se ajudava e demonstrava gostar muito do que estava fazendo.
No início do Censo, tivemos problemas com a divisa entre Guajeru e Rio do Antônio, próxima ao município de Malhada de Pedras, minha cidade natal. Um território que eu e praticamente todos moradores da região acreditavam pertencer a Rio do Antônio era, na verdade, parte da cidade vizinha.
Ali descobrimos que as divisas seriam um grande problema. Guajeru por ter suas extremidades distantes da sede praticamente não era reconhecida. Tivemos problemas semelhantes em Malhada de Pedras, Condeúba e Caculé.
Um episódio curioso ocorreu entre Guajeru e Condeúba. A estrada de terra que pegamos parecia um labirinto interminável. Quando chegamos no estabelecimento, a proprietária se recusou a responder o questionário porque ela afirmava que suas terras estavam em Condeúba e não no outro município. Não teve jeito de convencê-la do contrário e demos a viagem como perdida.
Eu e Eliabe nos perdemos quando fomos para Malhada de Pedras. Uma informação errada dada por um morador nos fez pegar uma estrada que nos levou até bem próximo do município de Jânio Quadros. Para ter uma ideia da volta que demos é como ir de Feira de Santana para Salvador, pegando um “atalho” por Alagoinhas.
Quando chegamos em Malhada de Pedras, o produtor que procurávamos estava na sede do município. O jeito foi rir da situação e voltar pela estrada certa.
RECENSEADORES
É impossível classificar os recenseadores pelo desempenho deles no início do treinamento: alguns que pareciam super-rápidos não agiam de acordo com os procedimentos estabelecidos e tiveram de nos deixar; outros pareciam que iam se dar mal, mas no campo mostraram grande eficiência e atingiram suas metas. Tímidos ganhavam confiança à medida que o treinamento avançava, quem esbanjava autoconfiança aprendia que um pouco de humildade não faz mal a ninguém.
Infelizmente, a gente sabe que a corrupção no Brasil é sistêmica. A população reclama que os políticos são corruptos, mas tem muita gente que não perde a oportunidade de tentar dar um “jeitinho brasileiro” para resolver as coisas, adiantar o trabalho, tentar passar por cima de certas regras.
Em um serviço como o Censo onde quem busca informação depende do preenchimento de questionários para definir quanto ganhará, o supervisor passa sete meses (no meu caso foram oito) com um olho no peixe e outro no gato, sem dormir com os olhos do outros, como dizem esses ditados antigos.
O salário mensal dos supervisores era de R$ 1.600 mais auxílio alimentação. Para o recenseador o ganho era por questionário, o que permitia aos mais dedicados receber R$ 400 em um dia, além da ajuda para transporte.
Como disse no início, sempre fui encantada pelo IBGE e adoro pesquisa, levo muito a sério isso. Assim como o investimento imenso que o Estado faz para realizar uma operação censitária. Tive sorte em fazer parte de uma equipe honesta, mas é claro que lidando com muita gente sempre surge uma história ou outra.
Nós buscávamos cortar pela raiz qualquer tipo de “jeitinho”. Os transgressores eram demitidos. Além disso, respeitando todo o processo, o supervisor Alisson teve a ideia de utilizar o sistema de busca do banco de dados do Censo Agro para criar um sistema que nos permitisse corrigir os questionários dez vezes mais rápido do que o previsto.
De início fui totalmente contra, mas totalmente mesmo. Queria provas de que não estávamos fazendo nada igual a recenseadores que tentavam adiantar o tempo das coletas e nos entregavam dados incompletos. Eliabe e Fabiano se juntaram a Alisson e testaram o método várias vezes, encontrando falhas, testando de novo até tornar o processo infalível. Isso nos permitia passar um pente fino no que já tinha sido considerado concluído.
O método consistia em corrigir cada quesito em vez de ler um questionário de cada vez. Quando cruzávamos os dados de cada item, os erros apareciam. Mesmo depois da verificação, usávamos o algoritmo para acelerar o trabalho e ter resultado preciso.
BRUMADO DÁ SORTE
Reza a lenda que a agência do IBGE em Brumado dá sorte. É só participar da operação censitária que surgem oportunidades de empregos, a pessoa passa em concurso e processos seletivos.
No caso da equipe que fiz parte nem foi preciso a operação terminar, cinco meses depois de iniciada Beatriz foi convocada para trabalhar em sua cidade, Vitória da Conquista.
Pouco mais de um mês depois, foi a vez de Suzana nos deixar. Faltando poucas semanas para o fim do trabalho, Alisson passou em uma seleção e começaria no novo emprego após o censo. Fabiano conseguiu uma boa colocação em um concurso. No fim de oito meses quatro de seis pessoas estavam bem empregadas. É preciso levar em conta que Vicente já era dono do próprio negócio quando entrou. Pouco mais de um mês depois eu e Eliabe também fomos contratadas. Sete de sete. Profecia concretizada com sucesso!
Olhando de dentro posso afirmar que o IBGE consegue registrar com a maior fidelidade possível os dados agropecuários e demográficos do país. Com toda a tecnologia que vem sendo utilizada as informações ficarão cada vez mais precisas. A minha expectativa para 2027 é ter acesso ao campo em tempo real, sabendo exatamente onde cada recenseador estará.
Ao final do trabalho, fiquei com a impressão que aumentou o acesso à internet e à telefonia móvel, há mais disponibilidade de água e energia. Fiquei surpresa com a atitude de algumas pessoas que declaravam ter menos terras para não colocar a reserva legal do tamanho correto. Também me surpreendeu descobrir que há tosa de lã em Malhada de Pedra e que há grande quantidade de plantações de tomate em Aracatu.
DEPOIMENTOS
“Foi um grande desafio, principalmente pra mim no que diz respeito a gerir pessoas. Eu achei muito interessante a forma que nós (inconscientemente) formávamos um ecossistema, onde cada um desempenhava um papel fundamental: a séria que mantinha a cabeça no lugar; o cara que contornava qualquer tipo de situação; o engraçado que mantinha o ambiente sempre mais leve; a carinhosa que dava aquele toque de amor no recinto e assim por diante…” – Alisson Porto
“Tive o privilégio de trabalhar com uma ótima equipe, que teve como principais características a parceria, a responsabilidade e a leveza para enfrentar os percalços. Surpreendeu-me as tecnologias usada durante a pesquisa, agilizando o trabalho para que as informações colhidas fossem as mais fiéis possíveis ao ambiente pesquisado. Foi muito interessante conhecer diferentes nomenclaturas, formas de medidas, conhecer um pouco mais da nossa região, do trabalho, dos produtos, da economia e da geografia local.” – Suzana Almeida
“O mais curioso para mim foi a forma como as pessoas do campo nos recebiam. Sempre muito hospitaleiras, ofereciam lanche e almoço. Eu esperava uma experiência de trabalho que me fizesse crescer tanto pessoal como profissionalmente e foi isso que encontrei. O que me surpreendeu foi o ambiente de trabalho, muito leve e descontraído, sem faltar comprometimento e profissionalismo.” – Eliabe Rodrigues
“Como já havia trabalhado no Censo 2007, possuía toda uma expectativa de como seria meu trabalho no Censo Agro. Não podia estar mais enganado, a tecnologia proporcionou um acompanhamento mais dinâmico e próximo dos trabalhos dos recenseadores, revolucionando totalmente a missão da supervisão. A experiência de gerenciar e cooperar com pessoas de valores e temperamentos diferentes foi uma única. É bastante gratificante a sensação contribuir com algo bem maior que é a coleta de dados das zonas rurais de nosso país.” – Fabiano Santos
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Nordestina de corpo e alma, jornalista. Nasceu em uma cidade de menos de 10 mil habitantes, Malhada de Pedras – BA, e tem sede de explorar o mundo. Adora conhecer lugares e personagens, seja através de livros, música, telenovelas, séries, viagens ou qualquer outra forma. Se encantou pelo jornalismo por meio dos grandes eventos esportivos, mas descobriu na fotografia e nas ruas uma nova vontade de contar histórias longe dos limites de um campo e dos quadros de medalhas. Quando criança decidia se gostava de um time ou não pelo o uniforme. É corintiana.