Peixe. Deixa eu te ver, peixe

O jornal Correio da Manhã foi fundado no Rio de Janeiro e publicado pela primeira vez em 15 de junho de 1901. Na data de seu 50º aniversário, uma das matérias de destaque tinha como título, todo em letras maiúsculas, “Começou num tacho de doce de goiabada”, e contava a história das Indústrias Alimentícias Carlos de Brito, mais conhecida como Fábricas Peixe, criada informalmente em 1987, em Pesqueira, no sertão pernambucano.

O autor do texto, não identificado, revela que o casal Carlos Xavier de Brito, “chamado de bandeirante da indústria no Brasil”, e a mulher Maria Conceição Cavalcanti de Brito, a dona Yayá, se estabeleceram na cidade como comerciantes de tecidos, mas os períodos de secas atrofiavam os pés de algodão. Diante das dificuldades, dona Maria teve a ideia de aproveitar as goiabas que existiam em abundância na cidade e iniciou a produção de doce de goiaba.

Para isso, mandou comprar um tacho de cobre com capacidade para produzir a sobremesa adocicada e cortada em pedaços para quinze pessoas. Além disso, revela a reportagem, colocou os doces em papel recortado em pontas em um tabuleiro coberto com toalha bem alva. “Os doces vermelhos ficaram luzindo como jóias (sic) em cima do linho”, segundo o Correio da Manhã.

WordPress Gallery Plugin

Já no primeiro dia, a “empregada (…) voltou mais cêdo (sic) do que era de esperar”. A “empregada”, ao que tudo indica, era uma negra de ganho escravizada. Ela teria dito algo que pode ser fruto da imaginação do autor: “Não sobrou nem um docinho para remédio, Sinhá!”

A partir daí os negócios prosperaram. Logo, a produção passou a ser feita em dois tachos. Em 1897, dezenas de tabuleiros “transbordavam” no quintal e na cozinha da família, utilizada como uma “indústria caseira”. Três anos depois, já com a marca que seria conhecida em todo país e até no exterior, eram produzidas 17 toneladas de goiabada.

O jornal explicou ainda que o nome da marca foi escolhido por causa da devoção de dona Maria, que escolheu Peixe por ser o símbolo cristão da fartura, referente ao milagre da multiplicação de alimentos citados nos evangelhos de Marcos e Mateus.

Em 1902, a latoaria que atendia a Peixe não dava vazão aos pedidos. Carlos construiu a própria oficina. Seis anos depois, ele viaja para a Europa a fim de ver como funcionavam empresas semelhantes no velho continente. Ele compra maquinário, moderniza a Peixe e a expansão se acelera Brasil afora.

Seis anos depois, Carlos viaja para a Europa, onde visita fábricas de doces, e decide modernizar sua empresa. O reconhecimento internacional acontece em 1910, quando os produtos Peixe receberam o Grande Prêmio da Exposição Internacional de Bruxelas, na Bélgica, tornando-se o principal produtor brasileiro, segundo relatou Claudia Maia, trineta de dona Yayá, no LinkedIn.

Dos quatro filhos do casal fundador dois morreram – Carlos Filho e Joaquim Cavalcante. Coube a Manoel e Cândido tocarem os negócios. Em 1951, eram eles que estavam à frente de tudo. O primeiro se dedicou às indústrias. Independente de onde estivesse (Recife, Pesqueira, São Paulo, Rio de Janeiro ou qualquer outra filial) acordava cedo, ia para a fábrica, inspecionava todos os setores, antes de voltar ao escritório e passar pelo menos 10 horas e meia por dia trabalhando, de acordo com o Correio da Manhã.

O irmão, Cândido, cuidava das plantações e das terras. Para o jornal carioca, a Peixe não devia nada a empresas americanas e europeias ao completar 54 anos de existência.

Produtos da fábrica.  Instagram @fabricapeixe

Os elogios foram retribuídos na mesma edição com um anúncio de página inteira pago pelas Indústrias Alimentícias Carlos de Brito para homenagear o cinquentenário do jornal. Nele, os anunciantes fazem questão de ressaltar que as Organizações Peixe, fundada há meio século, possuía o seguinte patrimônio: uma fábrica no Distrito Federal (na época, a cidade do Rio de Janeiro); duas fábricas no Estado do Rio (nos municípios de Rio Bonito e São Fidélis); duas fábricas  e duas fazendas em Minas Gerais ( respectivamente na cidade de Delfim Moreira, no distrito de Queimada e nas localidades de Tabuão e Alegria), duas fábricas em Pernambuco (Pesqueira e Recife, “a maior de todas”; e cinco fábricas em São Paulo – duas da Peixe, uma da Sul América, uma da Duchen e uma em construção em Monte Alto, em construção, com projeto de Oscar Niemayer.

Além disso, o grupo possuía a Usina de Açúcar e Álcool Central Barreiros, com 46 propriedades de produção “verdadeiramente assombrosa”; uma estrada de ferro com 200 quilômetros para escoar os produtos; um porto próprio em Gravatá (PE).

UMA JOVEM FUNCIONÁRIA

Ainda na primeira metade dos anos 1950, Eunice Radicetti, então com 22 anos, soube através da irmã, Maria Rodrigues, funcionária do setor de estamparia da Peixe, que o Sesi iria ministrar um curso de corte e costura para as operárias. Maria alegou não ter tempo para participar das aulas, mas perguntou ao gerente se a irmã poderia ficar com a vaga dela, o que foi autorizado.

Eunice trabalhou dois anos na Peixe, mas guarda boas lembranças da fábrica do Rio . Reprodução

Semanas após terminar o aprendizado em primeiro lugar, Eunice voltou à filial carioca da Peixe, localizada na rua Ribeiro Guimarães, em Vila Isabel, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Ela acompanhava uma amiga que foi pedir emprego. Para sua surpresa, no entanto, o gerente da empresa, que já a conhecia do curso, ofereceu trabalho para Eunice e ficou de conseguir uma vaga para a outra jovem.

“Ele pegou um papel, preencheu e me encaminhou para tirar a carteira de trabalho. Eu estava noiva, estava precisando mesmo de dinheiro. Fiquei toda contente” – contou.

A primeira função da nova empregada era despachar notas fiscais dos pedidos de goiabada, marmelada, marrom glacê, sucos em lata, extrato de tomate e frutas cristalizadas. Eunice morava em Marechal Hermes, a 21 quilômetros ou uma hora e meia de ônibus. Levantava às 5 horas da manhã para não se atrasar. A jornada de trabalho começava às 7 horas e terminava às 16 horas.

Eunice, que completa 91 anos em outubro, relatou que foi chamada para substituir a enfermeira do patrão por esta ter entrado em férias. Uma de suas atribuições, além de atividades no escritório, era aplicar insulina no chefe diabético, que ela insiste de chamar de Carlos de Brito. Na verdade, o fundador da empresa morreu em 1920 e quem assumiu o comando do parque industrial foi Manuel de Brito.

A dublê de enfermeira também se recorda de um almoço na data de aniversário do fundador Peixe Ela foi escolhida, dentre diversas funcionárias, para ler o discurso que o gerente da fábrica, “doutor Valoir” tinha escrito para homenagear o criador daquele império industrial. Ela ganhou um dia de folga na véspera para poder se arrumar para o evento. Na fotografia que guarda até hoje, Eunice é a única mulher no grupo constituído por 26 homens.

“Depois da leitura, eu me retirei. Tinha muitos convidados, nenhum deles era operário” – acrescentou

Dia da homenagem ao patrão. Foto cedida por Eunice Radicetti

Não demorou muito para a jovem funcionária pedir demissão. Após dois anos na empresa, ela ia se casar e se mudar para São Paulo. Aproveitou os dias que ainda tinha para se despedir dos amigos, das amigas e do patrão, que chama de major. O fundador da Peixe tinha ganho ou adquirido o título de coronel da Guarda Nacional. É possível que seu filho fosse chamado de major, uma patente abaixo da que seu pai possuía. Para surpresa da funcionária, ela ganhou um mês de salário a mais como presente de aniversário. Em 1956, Eunice saiu pelos portões da Peixe, seu primeiro e único emprego, e nunca mais regressou. Nem mesmo quando voltou a morar no Rio.

Os dois anos na fábrica renderam lembranças por cerca de sete décadas. A conversa vai longe. Eunice não esqueceu Diva, uma colega que falava muitos palavrões. Nem de João Leite, o chefe imediato que foi ao seu casamento e a visitou quando a primeira das duas filhas da ex-funcionária completou um ano. Ela também lembrou o tempo todo da irmã Maria, que era responsável pelo fechamento das caixas de doce no setor de estamparia.

“Minha irmã ficou mais tempo. Pena que ela morreu há três anos, ela teria muitas histórias para contar. Antes de ser indenizada, ela ficava na fábrica, vendendo biscoitos Duchen” – revelou.

BISCOITOS E ESPINHA DE PEIXE

Uma pausa na conversa com dona Eunice para falarmos da Duchen, inaugurada em 1903, na rua Borges de Figueiredo, no bairro da Mooca, em São Paulo. Ela surgiu como Casa Pierre Duchen, fabricante de delicados biscoitos amanteigados. Em 1949, foi vendida para as indústrias Carlos de Brito. Com a aquisição, a direção da Peixe decide expandir a produção e melhorar a logística. Para isto comprou uma área às margens do que viria ser a Rodovia Presidente Dutra. O terreno ficava no Parque Novo Mundo, zona norte de São Paulo.

Maquete das fábricas Peixe e Duchen, projetada por Niemeyer. 

Para fazer o complexo industrial que contaria com fábricas da Duchen e da Peixe, foram contratados os arquiteto Oscar Niemeyer e Hélio Lage Uchôa. A obra, concluída em 1951, tinha um conjunto de edificações com telhados em formato de uma espinha de peixe e suaves formas arredondadas. O projeto inovador foi agraciado com o primeiro prêmio na Primeira Bienal de São Paulo, na categoria construção industrial.

Na década de 1970, a Duchen foi vendida para o Grupo Fenícia, dono da Arapuã, da Etti e de muitas outras empresas. Na década seguinte, encerrou as atividades, mas a marca passou para a General Biscuits do Brasil, que a revendeu para a Parmalat. A empresa italiana faliu em dezembro de 2003. E, posteriormente, passou a ser uma subsidiária do grupo francês Lactalis.

O prédio na Presidente Dutra ficou muito tempo fechado e entrou em processo de tombamento pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) por ser um marco na história da arquitetura industrial do Brasil. Durante o processo, ele foi adquirido por uma transportadora, que iniciou sua demolição em 1990. Consultado pelo colegiado do Conselho de Defesa do Patrimônio, o arquiteto Oscar Niemeyer não se opôs a demolição. Em consequência, o Condephaat, seguiu o princípio de autoridade do artista, negou o tombamento e a construção foi demolida.

MARRON GLACÊ

Dona Eunice jogou sua carteira de trabalho fora há um ano. Durante a entrevista, ela mostra um pouco de arrependimento, pois não tem mais noção do local da fábrica carioca e a memória não ajuda para falar de alguns detalhes que estavam escritos no documento. Só lembra do nome da rua, mas não há mais resquícios da Peixe lá, segundo ela.

A ex-faturista e ex-enfermeira improvisada, porém, se lembra que os funcionários tinham muito medo do patrão rigoroso. Ela contou que quando o “major” aparecia no canto da seção, os funcionários ficavam quietos porque poderiam ser enviados para receber uma punição na secretaria.

Pergunto se Eunice consumia muitos doces à época, ela disse que gostava de frutas cristalizadas e marrom glacê, que no Brasil é feito com batata-doce, mas agora evita por causa da idade e porque a fábrica fechou. Aliás, o fechamento a deixou chateada porque nunca mais viu os amigos e amigas, nem pode visitar as dependências da antiga indústria,

“Tudo era produzido na fábrica:  os doces, as lataria, as formas, os desenhos das embalagens. Era muito trabalho mesmo. Hoje no lugar da fábrica tem edifícios” – lamentou.

WordPress Gallery Plugin

A decadência da Peixe, ainda de acordo com Claudia Maia, trineta de dona Yayá foi motivada pelo clima árido, que provocou a escassez de frutos, e o aparecimento de pragas, o que aumentava os custos de produção com adubos e defensivos agrícolas. Além da dificuldade de obter matéria-prima, a concorrência com grupos do sul do país fez a família Brito vender o negócio decadente para o Grupo Círio do Brasil, controladora da Bombril, em 1998.

No Instagram @fabricapeixe, que possui 1.327 seguidores, há um vídeo em duas partes, no qual o então governador Miguel Arraes e diversos secretários assinam um protocolo de intenções com a direção da Círio para ampliar a fábrica de Pesqueira e implantar atividades industriais, de acordo com o projeto da Agência de Desenvolvimento de Pernambuco. A iniciativa, porém, fracassou e todos os funcionários foram demitidos.

O prédio da Fábrica Peixe virou patrimônio de Pesqueira e passou a abrigar a feira livre da cidade. O presidente da Círio na Itália, Círio Cragnoti, foi preso em 2004, por fraudes que afetaram 30 mil investidores italianos e dívidas equivalentes a R$ 1 bilhão.

A Círio Brasil se viu em meio a disputas judiciais pelo seu controle. A Bombril tentou diversificar os negócios nos primeiros anos desse século, chegou a lançar a linha Bril Cosméticos. Ela se endividou e pediu recuperação judicial. Três anos depois, continuava muito endividada. Na fase mais crítica, entre 2013 e 2015, sumiu das prateleiras dos supermercados por falta de capital para produção. Além disso, o endividamento atingiu R$ 900 milhões.

A partir de 2017, segundo a Folha de S. Paulo, a dívida era de R$ 430 milhões em abril deste ano. Para se manter ativa, ela precisou recorrer a um empréstimo de R$ 300 milhões. A Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ) reduziu sua participação acionária de 7,79% para 2,10%, em setembro de 2019. A Sociedade Corretora Paulista (Socopa) vendeu toda participação de 15, 54%, em abril de 2020.

NO VINAGRE

A Peixe original não existe mais. No entanto, a Unipe Indústria e Comércio, fabricante de alimentos e conservas, aberta em 29 de outubro de 1998 e sediada no centro de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, comercializa duas linhas de produtos: Peixe e Única. Com logotipo preto e dourado ou preto e amarelo, ela fabrica e comercializa 17 tipos de vinagre, cinco molhos diferentes, quatro conservas de azeitonas e seis outros produtos.

Atualmente, a Unipe, na Baixada Fluminense usa a marca Peixe. 

Meus Sertões entrou em contato com a fábrica e foi orientado a enviar um e-mail para a funcionária Cíntia Silva para saber se ela registrou a marca Peixe, caso ela tenha caducado, e outras informações sobre a empresa e seus produtos. Até o fechamento da reportagem não houve resposta. A qualquer momento que as informações sejam dadas, elas serão publicadas.

 

–*–*–

Para ler mais sobre as Indústrias Alimentícias Carlos de Brito

Toada para a Fábrica Peixe

–*–*–

Legenda da foto principal: Maria Rodrigues (à direita), irmã de Eunice, fazendo propaganda para a Peixe. Álbum de família

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

follow me
Compartilhe esta publicação:
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sites parceiros
Destaques