‘Hoje a gente não está dando conta nem de alfabetizar’

Depoimento de Gedalva Neres da Paz, terceira diretora da Escola Malê Debalê

Paulo Oliveira

“Eu sou pedagoga, psicopedagoga junguiana, terapeuta de análise corporal, analista cognitiva e escritora. Eu entrei na Secretaria Municipal de Educação (SMED) como professora de ensino fundamental da Escola Lagoa do Abaeté, na comunidade Nova Brasília de Itapuã. Depois fui trabalhar como subcoordenadora de uma das 11 regionais de Salvador, onde fazia formação de professores.

Passei ainda pela coordenação do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) de Salvador e pela coordenação de ensino do município, que englobava 300 escolas dos ensinos fundamental 1 e 2 e da educação especial. Também fui diretora da Escola Comunitária Novo Marotinho, no bairro com o mesmo nome.

Um ano depois da inauguração, fui nomeada professora da escola Municipal Malê Debalê. Depois fui vice-diretora e diretora, a terceira da unidade, entre 2007 e 2009. No início, era muito bagunçado. Era tudo junto e misturado, bloco afro e escola municipal. Foi preciso separar o material de cada uma, os alimentos. Isso gerou a resistência de algumas pessoas, mas continuei fazendo o meu trabalho. Afinal, a secretaria me nomeava para lugares que precisavam de arrumação e eu colocava tudo em ordem.

O conteúdo das disciplinas era pautado na lei 10.639. Incluía história da África, história dos Malês. Então a gente fazia estudos, seminários para que os professores pudessem conhecer os temas e passar para as crianças, que tinham autoestima extremamente baixa, prejudicada pelo local em que que moravam e pelas condições que tinham. A gente também priorizou elevar a autoestima delas.

Tinha uma funcionária, que fazia parte do Malê, a Jane Sales. Ela dançava e a gente empreendeu um grupo de dança para os alunos e alunas. Eu também decidi levar as crianças para se apresentar na abertura de seminários e conferências. Os estudantes eram tratados como artistas. Aquilo foi de uma riqueza enorme para a autoestima deles. Eles se apresentaram no Instituto Anísio Teixeira (IAT), em hotéis, em creches, na secretaria de Educação.

Outro trabalho importante foi realizado pela artista plástica, Míriam. Esqueci o sobrenome dela. Como estudávamos as questões africanas, do povo negro e do povo negro local, a gente focava em autoconhecimento, nas histórias que não eram contadas, para que as crianças tivessem posicionamento crítico. Para que entendessem porque o bairro da barra é todo asfaltado e não falta água, enquanto elas moram na ladeira e o esgoto é a céu aberto

A gente esbarrava na dificuldade que é do município, às vezes, porque o pessoal tem uma dificuldade muito grande de alfabetizar.  Então, eu fazia formação, porque eu sempre fui formadora e eu sei alfabetizar. Agora, dá muito trabalho. Você só falta infartar e o coração vir na boca e sair pulando na sala. Mas é possível fazer.

Dá mais trabalho porque você tem uma deficiência anterior, que vem já da educação infantil. Mas é possível. As crianças se alfabetizam, as crianças leem, escrevem, questionam, cantam, dançam, declamam. As crianças sabem fazer absolutamente tudo, se você der oportunidade.

Como essa deficiência era muito grande, eu também chamei as famílias. Os responsáveis chegavam na porta da escola praticamente brigando. Era um horror. À medida que participavam das formações, as mães passaram a se arrumar melhor, passaram a ter uma oralidade mais gentil, mais étnica.

DESATIVAÇÃO

Eu não sei porque a escola foi desativada. Suponho que a nomeação de pessoas que não tinham a ver com a lei 10.639 contribuiu para isso. A Geneci foi nomeada pela história pessoal, pela negritude e pelo conhecimento que ela tem. Eu fui convidada porque daria continuidade ao trabalho sobre a questão negra, a questão comunitária.

Para trabalhar em comunidade, tem que saber lidar com ela, tem que ter um perfil específico. Não dá para você colocar uma pessoa que mora na Barra e só vai lá para ganhar o dinheiro dela e preencher os formulários que a secretaria pede. Eu acho que isso colaborou para a escola do Malê ir se afundando.

Outro problema tem a ver com a violência. Em algumas comunidades, a migração é frequente. As pessoas mudam por causa de ameaças, de agressões domésticas. Isso ocorre de forma repentina.

Eu não posso saber que uma criança chegue espancada, com marcas no corpo, ou que uma mulher está com o corpo machucada e fingir que não estou vendo aquilo. A gente tem que fazer esse enfrentamento, levar para o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), para o Conselho Tutelar, encaminha as vítimas para casas de proteção. Hoje, a gente não está dando conta nem de alfabetizar, quanto mais ajudar nesse âmbito.”

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Legenda da foto principal: Gedalva da Paz, ex-diretora da escola de Malê de Balê. Foto: Olga Leiria/Meus Sertões

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Para ler a série completa

PARTE I

A Escola Municipal Malê Debalê: auge e declínio Adaptações feita para o bloco virar escola A primeira diretora da Escola Malê Josélio Araújo: “Consegui transformar lixo em luxo” Editorial: Sem transparência a verdade não aparece

PARTE II

Prefeito de Salvador não cumpre promessa feita ao MalêObra feita em período eleitoralGedalva, ex-diretora da Escola Malê e escritora

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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