Capítulo 7: As encomendadeiras
Leonardo Lima e Luísa Carvalho
“Essa é a realidade da região:
onde a gente banhava com medo de jacaré,
lagartixa hoje passa de um lado para outro.”
Marcos Beltrão, especialista em cerrado,
olhando para a grama amarelada.
Quando eu e Luísa Carvalho entrevistamos os militantes Iremar Barbosa e Marcos Beltrão, o Marquinhos, em nosso primeiro dia em Correntina (BA), perguntamos se eles conheciam as encomendadeiras de almas, que haviam participado de um protesto no início dos anos 2000. Elas integram um grupo de mulheres que rezam pelos mortos nos velórios e, no começo deste século, tinham se organizado para rezar pela alma de um riacho morto após a ação desmedida de retirada de águas pelo agronegócio.
Durante nossa pesquisa sobre o tema, ouvimos os cantos e rezas delas em uma reportagem do Globo Rural no YouTube. E naquele instante sabíamos que as ouvir era indispensável. Mais do que uma história impactante, teríamos um som forte para o podcast “Guerra da Água”, que mostra como o agronegócio ameaça conservação do bioma e subsistência de comunidades tradicionais no cerrado baiano.
Iremar e Marquinhos até conheciam algumas mulheres que participaram dos atos realizados há vinte anos, mas eles nos contaram que a maioria das encomendadeiras havia falecido. Disseram, porém, que talvez pudessem ajudar, pois a irmã de Marquinhos participava do grupo e poderia ser entrevistada.
Na manhã do nosso segundo dia em Correntina, Catiuscia Beltrão encheu o whatsapp de Luísa com 16 mensagens de áudio. Ela falava rápido e de forma repetitiva. A voz de Catiuscia era aguda e com o forte sotaque cantado do oeste baiano. Marcamos com ela e com Marquinhos de irmos juntos a um local na beira da estrada que havia sido o leito de um rio.
O dia estava até tranquilo. De manhã falamos via Google Meet com a ex-secretária de educação da cidade, Joselita Neves, em uma conversa com internet péssima, mas que deu para quebrar o galho. Arrumamos nossas malas e deixamos tudo no carro para a viagem de volta à Santana no fim daquele dia.
Depois de almoçarmos em um restaurante por quilo na beira de estrada, fomos até a rua de Catiuscia. E lá estava ela, parada na calçada. De estatura baixa e com um chapéu de palha com detalhes em verde, a encomendadeira vestia uma camisa preta com a frase que representava toda sua luta: “Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida”.
Como imaginávamos pelos áudios, ela não teve muito rodeio com a gente. Quando saímos do carro, Catiuscia começou a falar sobre o clima, a fé e o agronegócio, tudo junto e misturado.
RIO SECO
Com menos de 40 anos, ela aparentava ser a encomendadeira mais nova da cidade e não tinha participado dos atos de 2000. Mas mesmo sem a mesma quantidade de anos de experiência das companheiras, não tinha histórias que ela não conhecesse sobre os milagres e mistérios de seu grupo.
Luísa rapidamente ligou o microfone e, na rua mesmo, a mulher que encomendava almas falou sobre os rituais do grupo, as vestes brancas que usavam e o cordão que levavam na cintura. O poderoso amarrilho era como uma arma. Se uma encomendadeira fosse provocada e não gostasse da pessoa, bastava um toque.
“Esse cordão tem muito poder, se pegar e triscar na pessoa, desse ano ela não passa, a pessoa morre. Mas jamais tenho coragem de utilizá-lo, nunca se pode pagar um mal com mal” – disse.
São histórias assim que deixam claro porque não é à toa que quando o grupo sai pelas ruas, cobertas de branco e com seus cordões balançando, é comum as crianças correrem direto na direção oposta. Há diversos outros casos contados como se fossem reais que reforçam essa mística, como por exemplo o de uma senhora que recebeu uma vela à noite e ela se transformou em osso humano ou a crença de que as almas avisam, através dos sonhos, se algo de ruim vai ocorrer com uma encomendadeira.
Catiuscia falava com tanta empolgação, que mal conseguíamos interromper para levá-la de volta à pergunta principal: Qual era a relação das encomendadeiras com os rios de Correntina? Quando retornou ao assunto, ela deu uma resposta óbvia: “Os rios têm alma”. Acrescentou que se um rio morre de maneira violenta, é preciso rezar por ele. Foi o que as mulheres fizeram em 2000.
Metade da entrevista foi feita com todos nós em pé na calçada. A situação complicou quando os carros passavam com o som alto, tocando música sertaneja, ou simplesmente buzinando, atrapalhando a gravação.
Entramos na casa da entrevistada. Lá, Catiuscia contou que a camisa preta que usava era como uma farda e representava sua luta no grupo de resistência e articulação chamado “Mulheres do Cerrado.”
“Tem gente que até hoje tem medo de vestir a blusa porque o governador mandou a polícia pra cima e tudo. Eu não tenho medo” – garantiu.
No horário combinado, fomos encontrar Marquinhos. Catiuscia não parou de falar durante o trajeto. Contou que os pais eram agricultores familiares; falou sobre os protestos dos últimos anos, quando um dos maiores rios da cidade começou a baixar o nível; e relatou histórias antigas da cidade.
Encontramos Marquinhos e seguimos no carro do pai de Luísa, Marcos Carvalho, para ver o rio seco. No banco de trás, nós e a encomendadeira continuávamos a entrevista. Os dois Marcos iam na frente. Depois de uns 15 minutos paramos no acostamento da estrada em um longo trecho reto. Ali estava o que um dia fora um rio, passou a ser pântano e hoje estava seco e coberto de grama amarelada. Ficamos ali na estrada observando de cima o lugar e nos perguntando: “Qual era o futuro dos outros rios ainda vivos da cidade?”
Um pouco antes, Catiuscia nos disse que dava azar uma encomendadeira cantar fora de lugar e sem o propósito certo. Certa vez, quando ensaiava sozinha, ela diz ter sentido, repentinamente, cheiro de cadáver. Mas eu e Luísa queríamos – e precisávamos – do canto dela para nossa reportagem.
Pedimos que cantasse e ela concordou. Nos preparamos com tudo que podíamos: Luísa gravando o vídeo, eu com o microfone colocado na blusa de Catiuscia, com o play do gravador apertado. Como estávamos na estrada, os carros passavam o tempo inteiro e estouravam nosso áudio. Naquele momento só precisávamos de alguns segundos de som para conseguirmos o material. Eu e Luísa quase suando, torcendo com todas as forças para nenhum carro passar.
Catiuscia começou:
“Luz preciosa, Deus nos salve, onde Deus fez a morada, onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada”.
Cantou e rezou por três minutos. Depois ajoelhou no chão e rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria. Durante esse tempo, carro nenhum ousou passar. Agradecemos, bem emocionados, e voltamos para o carro. Deixamos Catiuscia e Marquinhos em suas casas e saímos de Correntina muito felizes. Tínhamos uma boa história, bons personagens e um ótimo material.
BASTIDORES DA REPORTAGEM
Capítulos I e II Capítulo III Capítulo IV Capítulo V Capítulo VI Perfis dos autores Guerra da água
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Estudante de jornalismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA), nasceu em São Paulo, mas mora na Bahia desde os cinco anos. Dentre as coisas que não viveria sem estão aipim frito, Legião Urbana e viagens com perrengue. Já fez dois mochilões com seu pai pela América Latina. Apaixonado por Machado de Assis e por Elis Regina, tem certeza que os dois seriam as primeiras pessoas com quem conversaria caso máquinas do tempo existissem. Estagia no jornal A Tarde, apesar de nunca ter pisado no prédio da empresa. Em 2021, junto com sua amiga e colega Luísa Carvalho, venceu a 13ª edição do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog, onde investigou como o agronegócio está secando os rios no oeste da Bahia.