Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Diversidade da Uneb, Íris Verena acompanha os desafios da formação na graduação e no estudo continuado
Cleidiana Ramos
Esperança foi a palavra escolhida pela professora Íris Verena Oliveira, 41 anos, para definir a sua avaliação dos 20 anos da Lei 10.639/2003. Doutora em Estudos Étnicos e Africanos ela ensina no Campus XIV da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em Conceição do Coité. A professora atua na graduação em História e atualmente coordena o Mestrado Profissional em Educação e Diversidade (MPED), que funciona nos campi de Jacobina e de Conceição do Coité. Ela acompanha quem está iniciando a formação básica, fundamental e média, mas também quem busca a educação continuada.
“Eu vi processos, na chegada da lei, como a corrida de editoras para preparar material didático que não estava disponível antes e, por isso, não tinha qualidade. Hoje é uma surpresa boa chegar em uma livraria e ter uma seção de livros didáticos sobre questão étnico-racial. Não é um otimismo vazio o meu, pois, como diz o antropólogo Kabengele Munanga, o racismo no Brasil se apresenta de forma capciosa, como o crime perfeito que nos faz duvidar de nossa capacidade. Mas, mesmo com todas as dores que o racismo causa no espaço escolar, o que vejo é uma geração de professoras e professores querendo fazer diferente”, analisa;
Desde 2014, quando foi implantado, a princípio no campus de Jacobina, o MPED já formou cerca de 200 mestras e mestres. As mulheres costumam ser maioria no quadro de discentes do programa, em um reflexo do que acontece na educação básica e fundamental. Em Conceição do Coité, o programa de pós-graduação passou a funcionar há seis anos. O curso traduz muitas das inquietações que se observam em relação à aplicabilidade da Lei 10.639/2003, afinal como um mestrado profissional ele exige projetos de intervenções como parte do projeto de pesquisa.
“Eu tenho sentido muito uma certa angústia de professoras e professores que ingressam no MPED. Elas e eles trazem uma questão que explodiu na escola e os mobilizou tanto que os fizeram ingressar no programa. Mas aí vem o problema de não conseguir a licença ou no retorno sofrer o assédio moral pelo entendimento dos gestores de que o afastamento de dois anos é como se fosse uma folga”, destaca Íris Verena.
Há outras características do mestrado que se destacam. Ele é um programa de uma universidade pública gratuita e está instalado em duas cidades de médio porte. Jacobina, a 337 quilômetros de Salvador, tem pouco mais de 80 mil habitantes e está no Território de Identidade Piemonte da Diamantina. Conceição do Coité chega perto dos 70 mil (67.825 em números exatos do Censo de 2022). A distância para a capital é de 216 quilômetros. De ônibus comercial a viagem dura quatro horas.
Essa oferta de um curso de mestrado no interior faz muita diferença. Afinal é uma oportunidade de que docentes das cidades-sede e de municípios do entorno possam continuar a sua formação e tirar proveito de critérios da progressão na carreira por titulação, sem a necessidade de deslocamento e permanência na capital. No entanto, nem sempre a licença para fazer o curso é concedida pelas prefeituras ou pela representação do Estado.
“Muitas vezes não há a sensibilidade da gestão escolar. Quando essa profissional retorna à sala de aula, a atuação dela beneficia diretamente a escola e a rede onde ela está inserida” – esclarece Íris.
APRENDIZAGENS
Os temas que mais surgem nos projetos das alunas e dos alunos do MPED são os relacionados à educação no campo, cotidiano escolar, formação docente, educação quilombola, gênero, raça e sexualidade nas escolas. Em muitos casos, a percepção sobre essas questões ganha mais corpo ou complexidade a partir dos debates nas disciplinas do mestrado profissionalizante.
“Em Educação no campo, por exemplo, quando eu estou com o componente intitulado Docência e Diversidade eu costumo dar uma chacoalhada na turma. Pergunto se lá existem os professores gays e as professoras lésbicas. Pergunto se são quilombolas, pretas, ciganos. Nesse momento, percebemos o quanto a diversidade não é pensada em categorias como ‘pessoas do campo’. É como se esse adjetivo fosse suficiente para dar conta da complexidade que as pessoas vivenciam” – diz a coordenadora.
Íris destaca situações práticas em relação a essa generalização. Tanto em Jacobina como em Coité, percebe-se o fenômeno de omissão da origem de moradia em povoados. Alunas e alunos preferem usar os distritos, subdivisões maiores de um município, como identificação de residência. Isso levanta questões sobre a territorialidade e as desigualdades que incidem em relação a essa categoria.
Também há o caso de uma aluna que se reconheceu como uma mulher negra a partir do desenvolvimento de sua pesquisa. Além disso, ela encontrou-se com sua árvore genealógica ao reunir dados que a revelaram bisneta de Martinha, uma referência na luta de mulheres escravizadas pela sua emancipação na região do sisal. Essa região durante muito tempo registrou indicadores negativos como exploração do trabalho infantil e mutilação de trabalhadoras e trabalhadores por conta da estrutura de beneficiamento da planta usada na fabricação de cordas e iytris artefatos.
O hoje Território de Identidade do Sisal inclui 19 municípios, além de Conceição do Coité. A região foi área de concentração de terras, o que gerou conflitos contra quilombolas e indígenas. Atualmente, o município tem forte tradição de associativismo.
“Essas experiências no MPED mostram, por exemplo, que a questão racial não pode ser discutida nas mesmas bases que as de Salvador e do Recôncavo. A categoria do sertanejo, por exemplo, é muito mais complexa em seus marcadores raciais que envolvem descendência africana, mas também indígena e as intersecções entre elas.” – aponta a coordenadora do programa.
Entretanto, há um componente que preocupa os educadores do programa em bases semelhantes às da capital: o elevado índice de mortes violentas de jovens negros.
“Esses dados geralmente são analisados como questão de segurança pública. Mas no MPED estamos começando a analisá-la como tema de educação. Os meninos assassinados são alunos da escola pública ou egressos. São meninos negros que, geralmente, estavam no final do curso fundamental”, afirma.
De acordo com a professora, muitas das vítimas tinham uma relação tensa com a escola em alternância de abandono e retorno. E ao mesmo tempo demonstravam uma relação de carinho com a comunidade escolar.
“Enquanto eles são apresentados em conteúdos sensacionalistas de plataformas de mídias, na escola são os que perguntavam para a professora por que ela estava triste. É aquele menino que a gente sabe quem é a mãe, a avó. O genocídio da juventude negra tem impactado diretamente a escola”, diz.
Segundo Íris Verena, essa questão já está sendo debatida como ponto a ser inserido no currículo do MPED. O objetivo é manter uma discussão contínua e não apenas em datas específicas, como o Dia Nacional da Consciência Negra. É o esforço para fazer do espaço de formação continuada um local em que os gritos devem ecoar para a busca de ajuda, como o som retumbante da lição deixada por Oyá-Iansã de solidariedade vigilante aos seus protegidos.
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O ITAN DO DIA
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Legenda da foto principal: Doutora em Estudos Étnicos e Africanos, Íris Verena Oliveira analisa desafios, mas também conquistas da Lei 10.639/2003. Foto: Arquivo pessoal
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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.
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Leia a série completa
PARTE I
A lei fracassou? As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos
PARTE II
A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso
PARTE III
Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió
PARTE IV – FINAL
'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento
- Author Details
Cleidiana Ramos é jornalista, mestra em estudos étnicos e africanos e doutora em antropologia. Professora visitante na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus Conceição do Coité, produz a coluna semanal Memória, no jornal A Tarde. É especialista em religiões afro-brasileiras e católica. Outro tema que domina são as festas populares baianas.