A hora da verdade

Secretaria de Educação de Salvador fez mudanças estruturais, formou professoras e professores, firmou convênios e adquiriu livros diversos para implantar a lei 10.639

Paulo Oliveira

Daniela Fernanda da Hora Correia [1] iniciou a carreira de professora em 1995, um ano após ter se formado em pedagogia pela Faculdade de Educação da Bahia. Seu primeiro trabalho como professora de séries iniciais foi em uma escola, em uma comunidade carente, no bairro do Uruguai, na Cidade Baixa.

A primeira vez que ela trabalhou com questões como ancestralidade foi através do projeto “Escola cadê sua história?”, que estimulava a busca de contatos com a comunidade a fim de desenvolver um projeto pedagógico próprio.

A Coordenadoria de Ações Socioeducativas (CAS) da Secretaria Municipal de Educação (Smed) deixou claro que baianas de acarajé, moradores antigos do bairro, feirantes e agentes de saúde podiam se tornar parceiros da pesquisa. Integrantes de blocos afros, como o Malê Debalê, realizaram palestras sobre cultura afro-brasileira em diversas escolas.

“Eu vivi isso com meus alunos, construindo esse documento na escola. Eles contavam como o bairro foi criado. Mostravam que cada rua tinha uma escola municipal, inclusive em terreiros de candomblé. Era tudo entulhado em palafitas” – lembra.

Daniela da Hora, gerente de inclusão da Smed. Foto: Paulo Oliveira

Em entrevista para Meus Sertões, a doutora em educação e gerente de inclusão e transversalidade da Smed refez o percurso da implantação da Lei 10.639, que determinou a obrigatoriedade do ensino de história da África e de cultura afro-brasileira. A professora Consuelo Almeida e o coordenador pedagógico Eduardo Santana também participaram dessa reconstituição.

Em 2002, Daniela foi convidada para assumir um posto na secretaria e tocar o projeto “A escola entra em cena”, em parceria com representantes dos blocos afros, com o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e o Ceafro [2]. Essas entidades faziam parte do fórum de parceiros, criado cinco anos antes pela secretária de educação Dirlene Matos Mendonça. O acordo de cooperação previa que os alunos tivessem contato com temáticas como africanidade e identidade.

“Foi aí que comecei a trabalhar mais de perto essas questões. Eu participava de reuniões com os parceiros e da formação de professores – recorda a gestora.

Quando a lei 10.639 foi sancionada, Dirlene ainda tinha dois anos pela frente. Era a segunda gestão dela na pasta. A secretária não finalizou o processo, mas preparou o terreno para a implementação da legislação. Uma de suas iniciativas foi firmar parceria com o Ceao/Ceafro para oferta de bolsas de pós-graduação para as docentes. As aulas eram às quartas-feiras, à noite. Daniela foi uma das participantes.

Segundo Consuelo Almeida, o pessoal do Ilê Aiyê, a educadora Ana Célia da Silva e seu irmão Jônatas Conceição, ambos do Movimento Negro Unificado (MNU), realizaram um curso de extensão com a mesma finalidade, aos sábados, no Pelourinho.

Além das formações, os preparativos para operacionalizar a aplicação da lei contavam com cadernos de apoio e material didático – revistas e vídeos produzidos pelo bloco Malê Debalê. O material, a princípio, era distribuído para quatro escolas de Itapuã. Em seguida, era replicado em escala pela secretaria para ser distribuído em toda a rede municipal. Um incêndio anos depois na secretaria destruiu o que restava dos exemplares produzidos nesse período.

A SECRETARIA ‘ENEGRECEU’

Olívia Santana, pedagoga, militante do movimento de mulheres negras, fundadora da União de Negros pela Igualdade (Unegro) e filiada ao Partido Comunista do Brasil (PcdoB), sucedeu a Dirlene. Iniciava ali um momento de efervescência da temática étnico-racial.

“Ela formou uma comissão, com representantes de todos os setores da secretaria para implementar a lei. A gente estudou, mas era iniciante no processo, e ela e os seus assessores já tinham o caminhar da militância. Nos debruçamos sobre a proposta e a secretaria ‘enegreceu’” – diz Consuelo, referindo-se à colocação de pessoas negras nos cargos de chefia da Smed.

Na mesma ocasião, a prefeitura instituiu o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) para reverter o que definiu como “o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica”. Dois representantes da Smed foram designados para o PCRI, que realizava oficinas, palestras e seminários a fim de evitar ações discriminatórias em repartições públicas. O programa atualmente está vinculado à Secretaria Municipal de Reparação (Semur).

Um dos textos da pasta dos professores. Reprodução

Outra providência foi a elaboração da pasta da professora e do professor [3], na qual foram disponibilizados nove textos de pessoas renomadas com a finalidade de fundamentar o planejamento de aulas. Os autores eram convidados a ministrar cursos e debater questões relevantes com o corpo docente.

As universidades federal (UFBA) e estadual (Uneb) da Bahia, que tinham know-how em pós-graduação, também firmaram parcerias no campo da formação. E o trabalho com o Ceao resultou nas diretrizes curriculares para o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Em 82 páginas, foram relacionados os assuntos prioritários, a abordagem metodológica e os objetivos.

Todas as iniciativas foram implantadas e debatidas pela comissão. A falta de representação de negros em livro didático foi um dos temas mais discutidos pelo grupo à época e fez a Smed ir às compras.

Em outubro de 2005, por exemplo, a Secretaria Municipal de Educação de Salvador adquiriu 30.000 exemplares do gibi “Luana e sua turma”, lançado por Aroldo Macedo, o fundador da revista Raça, no final dos anos 1990. A personagem de oito anos, capoeirista, mora em Cafindé, uma vila fictícia remanescente de um quilombo. Luana é considerada a primeira heroína negra das histórias em quadrinhos brasileiras [4]. Ela combate um vilão que quer destruir o meio ambiente e o mundo.

Além das HQs, ficou decidido que o kit que seria distribuído para os alunos da rede pública teria também o livro “Luana, a menina que viu o Brasil neném”, de Aroldo e do jornalista Oswaldo Faustino, no qual a mesma personagem ganha um berimbau mágico e viaja no tempo até a chegada dos colonizadores portugueses. Para mostrar como o material deveria ser utilizado em sala de aula, foi organizado um seminário para 200 educadores e educadoras, intitulado “Esqueceram de mim”. Cidades de todo o país seguiram o exemplo da capital baiana.

A heroína Luana. Reprodução

A diminuta oferta de livros infantis com personagens negros motivou professoras a se lançarem no universo da literatura. Gedalva Neres da Paz foi uma delas. Uma de suas obras mais conhecidas é “Cabelo Belo”, que mostra como essa parte do corpo influencia no desenvolvimento e na autoestima das crianças, além de fazer com que elas repensem questões como a ancestralidade e os padrões de beleza impostos por uma sociedade eurocêntrica.

Já em “Maria Eduarda Agotiné”, a professora conta a história de uma menina preta, empoderada, que tem orgulho de sua história. O livro é um misto de experiências pessoais em sala de aula e de tributo às mulheres negras.  O sobrenome da protagonista, que questiona a falta de bonecas pretas na escola, é uma homenagem à rainha do Daomé, hoje Benin, cujo legado é celebrado no culto do Tambor de Mina, religião afro-brasileira originada em Gana e praticada, principalmente, no Maranhão.

 

Gedalva da Paz se dedica a escrever livros infantis. Foto: Olga Leiria

O investimento no ensino de história e cultura da África e afro-brasileira não obteve só elogios. Ele também resultou em críticas e resistência. Em uma apresentação teatral no Solar da Boa Vista, prédio tombado no Engenho Velho de Brotas, alunos e professores foram embora durante o espetáculo, alegando que não estavam ali para um culto de candomblé. Eles nem quiseram ouvir o argumento de que a peça tratava da cultura soteropolitana.

Consuelo acrescentou que vários docentes se negaram a tratar de temas afros.

“Uma professora que se recusava a aplicar a lei 10.639 não teve a mesma oportunidade que nossas crianças estão tendo hoje” – diz Daniela.

NOVA ESTRUTURA

Em dezembro de 2005, foi criado o Fundo Municipal para o Desenvolvimento Humano e Inclusão Educacional de Mulheres Afrodescendentes (Fiema). Por conta de um erro na redação da lei [5] , ele nunca teve recursos. Mesmo assim, seus integrantes organizaram atividades e firmaram parcerias para permitir o acesso e a permanência de mulheres afrodescendentes, em situação de vulnerabilidade social, nas escolas.

O Fiema trabalha diretamente com as comunidades, realizando cursos, palestras e oficinas com foco no empreendedorismo feminino, na saúde da mulher, no combate à violência familiar e na melhoria da autoestima. Ele é direcionado para mães dos estudantes da rede municipal e para as alunas do segmento da Educação para Jovens e Adultos (EJA).

Olívia Santana permaneceu pouco tempo no cargo. Ao sair em 2006, a comissão de implantação da lei 10.639 foi desativada. Nesse momento, a pedagoga e assessora técnica Eliane Boa Morte sugeriu a constituição do Núcleo para Ações Étnicos Raciais (Nuper), ao qual o Fiema seria vinculado. O então secretário Ney Campello vetou a proposta.

Dois anos depois, o Núcleo foi criado com a finalidade de propor, implementar e acompanhar políticas públicas educacionais, relativas às questões raciais. Formado por pessoas do órgão central e do Conselho Municipal de Educação, as discussões não saíam do lugar.

Somente  em 2017, o Nuper incluiu em sua estrutura representantes das 10 gerencias regionais da Smed e uma gestora das escolas quilombolas da Ilha de Maré e de Paripe, bairro do subúrbio ferroviário. Com a descentralização, a ações se tornaram mais efetivas.

Diretrizes curriculares

Apesar de todos os esforços, a aplicação da 10.639 ainda pode ser driblada por preconceito ou falta de interesse.

“Existe a legislação, mas existe também a especificidade de cada escola. As diretrizes e normativas apontam para a necessidade de contemplar a lei, mas um diretor e um grupo de professores podem optar apenas por temas indígenas [6] ou ambientais” – explica Consuelo.

Os percalços, embora os gestores digam que são raros, impedem que o ensino de história e cultura da África e afro-brasileira corra de forma fluída. Para a obtenção de resultados efetivos, tem que haver um acompanhamento sistemático e permanente, além de outras políticas públicas.

“Quando você junta a legislação à política de cotas, vemos uma inserção muito maior de jovens negros nas universidades. Se você entrar na UFBA hoje e comparar com 2003 verá que é um outro território. A negritude está presente, jovens fazendo direito, medicina e engenharia; usando seus torços e blacks poderosos. A força deles é reflexo da lei 10.639, que os empoderou. Eles chegam no território da elite, conscientes de que têm direito de estar lá – afirma a professora.

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Notas de pé de página

[1]  Posteriormente, Daniela se formou em direito, na Universidade Católica de Salvador (2012); e em letras, na Universidade Federal da Bahia (2020). A pedagoga também fez cursos de especialização em altas habilidades/superdotação (2021) e atendimento educacional e psicomotricidade (2020).

[2]  Programa de formação, vinculado ao Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), surgido quando a internet começou a ser operada comercialmente no Brasil. De sua criação participaram as professoras Maria Nazaré Mota de Lima, Valdecir Conceição e Vanda Sá Barreto.

[3]  Dentre os nove primeiros trabalhos constavam “Gênero e raça: desafios da escola”, de Maria de Lourdes Siqueira, pós-doutora em antropologia e professora da Ufba; “Contribuição dos povos africanos para o conhecimento científico e tecnológico universal”, de Lázaro Raimundo dos Passos Cunha, engenheiro mecânico e diretor de projetos especiais do Instituto Steve Biko; “Quilombos do Brasil e singularidade de Palmares”, de João José dos Reis, professor da Ufba; ”A revolta dos malês em 1835”; “Mitos africanos e Vivências Educacionais”,  de Vanda Machado, doutora em educação e criadora projeto Irê Ayó; e “Educação para convivência pacífica entre religiões”, professora aposentada e makota do terreiro Tanuri Junçara.

[4]  A primeira protagonista do sexo feminino em uma HQ brasileira foi Luana. No entanto, dois personagens masculinos surgiram antes em revistas: Pererê, de Ziraldo, em 1960, e Pelezinho, de Maurício de Souza, em 1976.

[5]  A legislação não permite a existência de dois fundos com objetivos semelhantes. E a secretaria já contava com o Fundo Municipal de Educação (FME).

[6] O ensino de história e cultura indígena também se tornou obrigatório em 10 de março de 2008 (lei 11.645).

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Legenda da foto principal: Prédio da Secretaria Municipal de Educação, na Praça da Inglaterra. Foto: Paulo Oliveira

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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.

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Leia a série completa

PARTE I

A lei fracassou?  As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos

PARTE II

A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso

PARTE III

Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió

PARTE IV – FINAL

'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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