Escola reflete filosofia africana

 Referência no ensino a partir de culturas afro-brasileiras é resultado das contribuições intelectuais e preocupações da ialorixá Mãe Aninha

 Cleidiana Ramos e Paulo Oliveira

 A escola Eugênia Anna dos Santos tem uma condição única entre 424 unidades da rede municipal. Ela está instalada no espaço do terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá. Fundada em 1910 pela ialorixá que dá o nome à instituição [1], a escola oferece aos alunos privilégios raros: um projeto pedagógico todo baseado nas culturas africana e afro-brasileira; um currículo que parte desses elementos para ensinar matemática, linguagens e outras disciplinas; e uma área verde com árvores diversas para as crianças brincarem durante o recreio.

Lá, se aprende que mulheres e homens negros podem ser cientistas, escritoras, médicos e o que mais desejarem. E o melhor: a interação com esses profissionais é constante. Volta e meia eles aparecem para contar suas histórias e responderem às perguntas das crianças. Além disso, se a conta de matemática está complicada, a professora mostra como as mães se viram somando as tranças para fazer os penteados descolados que as meninas exibem.

Professoras e diretora
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A leveza das crianças no ambiente escolar é uma das principais características da Eugênia Anna dos Santos. A comunidade de São Gonçalo do Retiro, no Cabula, bairro onde ficam o terreiro e a escola, enfrenta problemas semelhantes aos das localidades periféricas, incluindo o estigma de vulneráveis à violência. Mas as meninas e meninos sentados na calçada, aguardando a abertura dos portões, verbalizam a conexão com a escola. A pequena Bruna, por exemplo, diz com entusiasmo e orgulho que está cursando o 2º ano.

“Enxergar as características especiais da Eugênia Anna dos Santos é para quem tem sensibilidade”, diz a pedagoga e diretora da escola, Iraildes Nascimento.

Volta e meia a escola enfrenta problemas, como o preconceito de alguns gestores da Secretaria Municipal de Educação e das gerências regionais, que a consideram um projeto desvinculado do sistema de educação formal. Com frequência só lembram de suas práticas referenciais no mês de novembro, quando se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra.

As pedagogas Catarina Pedreira e Rejane Santana, atual vice-diretora, escutaram “alertas” quando decidiram se transferir de outras instituições para lá. Os discursos variaram em um ponto ou outro, mas o aviso de que iriam trabalhar na área de um terreiro de candomblé soava como desestímulo. Houve caso também de informações desencontradas, negando que havia vaga, quando, na verdade, estava faltando professora. Em pelo menos uma ocasião, foi preciso recorrer diretamente à então secretária de educação Dirlene Mendonça para a cessão de uma profissional.

Também existe preconceito entre pais evangélicos. Os que se mudam para o bairro preferem tentar vagas para os filhos na Escola Municipal São Gonçalo do Retiro, construída em 1990, a cerca de 100 metros da Eugênia Anna

“A nossa escola costuma ser opção para quem não encontra vaga em outra. Muitas mães e pais chegam aqui desconfiados. Muitos mudam de ideia. Lembro o caso de um pastor que matriculou as filhas aqui e depois disse que havíamos o surpreendido de forma positiva”, conta Iraildes Nascimento.

A escola Eugênia Anna dos Santos, diferentemente de instituições católicas ou protestantes, não é confessional. No candomblé não se busca a conversão de ninguém. Os terreiros se abrem para quem busca ajuda em outro processo que não tem a ver com nenhum tipo de proselitismo.

Catarina Pedreira diz estar encantada em trabalhar os temas da cultura afro-brasileira de uma forma consistente com base em um projeto pedagógico próprio. Já Rejane Santana ressalta a potencialidade de se debater sobre identidade negra.

“Na literatura que a gente leva para a sala de aula percebemos como as crianças se enxergam no conteúdo” – acrescenta.

A ORIGEM DA ESCOLA

Quando se olha para a proposta da Lei 10.639/2003 percebe-se que a Eugênia Anna dos Santos é a síntese do que se colocou como norma. Mas, para compreender o processo que a tornou referência, é preciso recuar à Salvador do final do século XIX, quando africanos integravam a população em números significativos.

Em seu livro Rebelião Escrava no Brasil, o historiador João José Reis exibiu um levantamento sobre os habitantes da cidade em 1835. Os africanos somavam 7.371 (33,6%) do total. Suas origens remontavam a civilizações de três grandes áreas: Angola, Benim e Nigéria, hoje países. Eles foram trazidos de Oyó, Ketu, Oxogbó e de outros territórios para viverem a tragédia da escravidão na capital baiana. E conviveram com os “crioulos”, filhos de africanos nascidos no Brasil

Dentre as muitas articulações para preservação de identidades, resistência e sobrevivência desse grupo, surgiu o candomblé. Uma das primeiras comunidades institucionalizadas nessa prática religiosa, mas sobretudo política por reunir habitantes de cidades-estados da África, foi o Ile Axé Iya Nassô Oká, mais conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federação [2].

Com pais africanos, de origem grunci [3], Eugênia Anna dos Santos foi iniciada no candomblé na Casa Branca, no final do século XIX. Em 1910, fundou o Ilê Axé Opô Afonjá em Salvador. O terreiro tem Xangô como patrono, o mesmo orixá para o qual Mãe Aninha foi consagrada. O nome sagrado dela era Obá Biyi. Em uma tradução aproximada para o português, significa “O rei está aqui”.

Ialorixás
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Mãe Aninha era muito respeitada pelo profundo conhecimento dos fundamentos religiosos, como afirmava o babalaô [4] Martiniano Eliseu do Bonfim, o etnólogo Édison Carneiro e a antropóloga americana Ruth Landes. Quando Édison e Martiniano realizaram o II Congresso Afro-Brasileiro, em 1937, ela foi uma das principais colaboradoras, inclusive com a apresentação de um texto sobre a comida sagrada.

Foi Mãe Aninha quem teve a percepção do quanto a educação formal era a maneira de se quebrar as amarras que a pobreza, o racismo e outras mazelas da escravidão mantinham em torno de africanos e seus descendentes. E foi com essa reflexão que cunhou uma das suas máximas mais famosas: “Todo negro com anel no dedo deve colocá-lo aos pés de Xangô”.

Sabendo o quanto era difícil conquistar esse “anel”, a ialorixá, segundo as memórias da comunidade do Afonjá, se lamentava a cada ciclo de festa em que suas filhas de santo passavam meses com suas crianças no terreiro, sem que houvesse a oportunidade de que pudessem aprender a ler e escrever.

Mãe Aninha morreu aos 68 anos, em 1938.

Em 1976, Maria Stella de Azevedo Santos, filha de Oxóssi, com nome sagrado de Odé Kayodé (“O caçador trouxe alegria”), tornou-se a quinta ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Ela era formada em enfermagem, sendo a única negra da turma. Desde que assumiu o terreiro, tinha o objetivo de tornar real o sonho de Mãe Aninha.

A escola começou a tomar forma em 1978, com a construção da creche Mini Comunidade Obá Biyi para crianças com idade entre 6 meses e 5 anos. O prédio da escola, que oferecia cursos de 1ª a 4ª série, virou realidade em 1986, graças à captação de recursos e à assinatura de convênios. A incorporação da unidade à rede municipal ocorreu em 1998. O projeto político-pedagógico Irê Ayó, desenvolvido pela doutora em educação Vanda Machado, foi uma das ações inovadoras da Eugênia Anna dos Santos.

LIÇÕES PRECIOSAS

Mãe Stella sempre reiterava que a Eugênia Anna era uma escola em um terreiro de candomblé, mas não uma instituição de confissão religiosa. Ela acompanhava a rotina da unidade, sem grandes interferências. Tanto que, desde a fundação, Iraildes Nascimento é a primeira diretora que tem o candomblé como prática religiosa. Filha de Omolu, orixá da cura e da doença, ela trabalha ali há 19 anos e é diretora há oito.

A visão de Iraildes sobre o que deve ser uma escola é muito parecida com a noção filosófica de considerar todas as questões a partir da comunidade não do indivíduo, como pontua o sociólogo e jornalista Muniz Sodré em seu livro Pensar Nagô.  Reunião com mães, escuta ativa para alunas e alunos, luta para conseguir alimentação – que agora é servida a partir do café da manhã – são algumas das prioridades da gestora.

A Eugênia Anna dos Santos tem 242 alunos. Os cursos que oferece vão da Educação Infantil (4 e 5 anos) ao 5º ano do Fundamental I, além do programa de regularização de fluxo Acelera [5]. A escola conta com 13 professores para as disciplinas de português, matemática, história, geografia, educação física, inglês e dança.

Ao término dos anos iniciais do fundamental, os alunos têm direito à cerimônia de diplomação, realizada, geralmente, nas dependências do campus da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), localizada no mesmo bairro.

ALUNOS, ATIVIDADES E INSTALAÇÕES
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“Fazemos questão de mostrar às nossas meninas e meninos que a educação é o lugar para elas e eles, inclusive a superior” – diz Iraildes.

Uma das lembranças mais emocionantes da diretora é a da formatura da turma de 2018. Mãe Stella já estava doente, mas foi decidido manter a cerimônia. Assim que terminou, a diretora ligou o celular e lá estava a notícia da morte da ialorixá.

“Ela, que foi a responsável por fundar essa escola, esperou o ano letivo terminar para partir. Essas relações são muito fortes”, completa.

A ligação de Mãe Stella com as crianças da escola era potente. As meninas e meninos tinham uma admiração profunda pela líder religiosa e por seu protagonismo. Bastava encontrar com ela para arrastá-la, em abraço coletivo, que terminava com uma roda de conversa em que eles queriam saber das muitas histórias dela.

Escritora de livros como Oxóssi, o caçador de alegrias (2006) e Meu Tempo é Agora (1991), dentre outros, a ialorixá era membro da Academia de Letras da Bahia (ALB) [6]. Sua posse na cadeira de nº 33, que tem como patrono o poeta Castro Alves, ocorreu em 2013.

A escola, que será reformada e ampliada no próximo ano, já formou desenhista industrial, jornalistas, bailarinos e profissionais diversos. Também em 2024 será implantada uma creche em tempo integral. É a ampliação do sonho de Mãe Aninha, a fundadora.

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Notas de pé de páginas

[1]  Eugênia Anna do Santos era mais conhecida como Mãe Aninha

[2]  O terreiro foi reconhecido como patrimônio brasileiro pela Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O tombamento da Casa Branca resultou em um intenso debate, pois até então os patrimônios materiais eram sobrados e igrejas católicas, ou seja, obras de origem europeia. Este foi o primeiro bem cultural afro-brasileiro reconhecido como patrimônio nacional. Além da Casa Branca há mais dez terreiros tombados no Brasil, inclusive o Ilê Axé Opô Afonjá onde fica a escola Eugênia Anna dos Santos. Ele foi tombado em 2000.

[3]  Povos que falavam essa língua e se situavam entre a Nigéria e o Congo.

[4]  É o sacerdote exclusivo de Orumilá-Ifá do Culto de Ifá (adivinhação) na religião iorubá.  Orumilá é a divindade da profecia, ligada ao mundo espiritual (Orum). As funções principais do babalaô são a preservação do segredo e a transmissão do conhecimento para iniciados.

[5] O Acelera é voltado para o aluno alfabetizado, com distorção de conteúdo.

[6]  Um dos seus antecessores na cadeira foi o professor Ubiratan Castro de Araújo, ex-presidente da Fundação Palmares, doutor em história pela Universidade de Paris e uma das maiores autoridades brasileiras em economia da escravidão.

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Legenda da foto principal: Na Eugênia Anna dos Santos as crianças sentem-se à vontade. A Casa de Xangô fica em frente ao prédio da escola. Foto: Olga Leiria

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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.

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Leia a série completa

PARTE I

A lei fracassou?  As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos

PARTE II

A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso

PARTE III

Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió

PARTE IV – FINAL

'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento

Cleidiana Ramos Contributor

Cleidiana Ramos é jornalista, mestra em estudos étnicos e africanos e doutora em antropologia. Professora visitante na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus Conceição do Coité, produz a coluna semanal Memória, no jornal A Tarde. É especialista em religiões afro-brasileiras e católica. Outro tema que domina são as festas populares baianas.

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