O longo e desgastante trâmite no Congresso

Deputados ligados ou aliados ao Movimento Negro tentaram aprovar a obrigatoriedade do ensino de história da África e cultura afro-brasileira desde a promulgação da Constituição

Paulo Oliveira

O caminho percorrido até a sanção da lei 10.639 foi longo e repleto de percalços. Vale lembrar que o ensino de história afro-brasileira estava previsto em outras leis, mas não era obrigatório até o presidente Lula sancionar, com vetos, mudanças nas diretrizes e bases da educação nacional.

A Constituição Federal reconheceu a pluralidade cultural do Brasil e buscou combater a discriminação racial e valorizar as identidades étnicas. Com a promulgação, em 5 de outubro de 1988, a Carta Magna serviu de exemplo para as constituições estaduais. A da Bahia, por exemplo, foi publicada exatamente um ano depois e está em vigor.

No artigo 275, ela determina que o Estado tem o dever de garantir “a integridade, a respeitabilidade e a permanência dos valores da religião afro-brasileira”. E, para isso, segundo o inciso IV é preciso promover “a adequação dos programas de ensino das disciplinas de geografia, história, comunicação e expressão, estudos sociais e educação artística à realidade. A maioria das escolas descumpriu a lei.

Voltando ao Congresso Nacional, ainda em 1988, o deputado Paulo Paim (PT-RS), sindicalista, apresentou o Projeto de Lei (PL) 678/1988, que visava a inclusão de matérias da história geral da África e da história do negro no Brasil como disciplinas integrantes do currículo escolar obrigatório em todos os níveis de ensino. O embrião da lei 10.639 foi aprovado na Câmara e enviado para o Senado, onde permaneceu paralisado até o arquivamento em 1995.

Por solicitação do movimento negro de Pernambuco, no mesmo ano, o deputado Humberto Costa (PT-PE), médico e jornalista, apresentou o PL 859/95. Ele estabelecia a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, da disciplina “História da Cultura Afro-brasileira”. Aprovado por mérito na Comissão de Educação, foi igualmente arquivada.

TERCEIRA TENTATIVA

As derrotas no Congresso não fazem o movimento negro, nem políticos ligados a ele desistirem. Dessa vez, os deputados Ben-Hur Ferreira (PT-MS), advogado, filósofo e professor,  e Esther Grossi (PT-RS), matemática, professora e educadora, apresentaram o PL 259, que deu origem à lei 10.639, em 11 março de 1999.

A síntese da proposta era: ‘Dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e dá outras providências. Na justificativa, Ben-Hur e Esther mencionaram que o projeto era, originalmente, de autoria do ex-deputado Humberto Costa e visava “a restauração da verdadeira contribuição do povo negro no desenvolvimento do país, ressalvando o fato de que a sociedade dominante discrimina e inferioriza o povo negro em relação ao chamado SABER UNIVERSAL (maiúsculas dos autores)”.

Em 18 de dezembro de 2002, após três anos e nove meses de tramitação, que no Senado ganhou a identificação de Projeto de Lei Complementar (PLC) 17/2002, é finalmente aprovado e encaminhado para sanção do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Este, por sua vez, deixa a decisão para o sucessor.

Presidente Lula sancionou a lei 10.639, com vetos. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Luís Inácio Lula da Silva sancionou a 10.639, alterando dois artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [1]que estava em vigor. Os artigos 26-A e 79-B foram validados pelo presidente. O primeiro tem a seguinte redação, incluindo dois parágrafos:

Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

  • 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
  • 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.”

Já o 79-B estabelece: “O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.”

VETOS

Lula, porém, vetou um artigo e um parágrafo do texto aprovado no Congresso. Ele atendeu o parecer da subchefia para assuntos jurídicos da Casa Civil, que alegou “contrariedade ao interesse público”, após consulta ao Ministério da Educação.

O parágrafo 3º do artigo 26-A estipulava que “As disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu conteúdo programático anual ou semestral à temática referida nesta Lei.

As razões apresentadas para vetá-lo foram que, ao detalhar um percentual de conteúdo para o ensino médio, o PLC não levava em consideração a exigência de se observar, na fixação dos currículos mínimos de base nacional, valores sociais e culturais específicos das diversas regiões e localidades do Brasil. E, além disso, firmou os estados e municípios como responsáveis pela elaboração do conteúdo curricular, quando esta atribuição é da União, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios.

Para suprimir o artigo 79-A da lei – “Os cursos de capacitação para professores deverão contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria” – a justificativa é que a Lei 9.394/96, que até então definia as diretrizes e bases da educação, não disciplina e nem menciona cursos de capacitação para professores, portanto não poderia ser incluída matéria estranha ao seu objeto.

A pedagoga e doutora em educação, Ivanilda Cardoso considera que o processo educacional estaria em outro patamar caso o artigo 79-A não fosse vetado. Ela leva em conta as ações efetivas dos ativistas na área educacional.

“Com o que a gente está contando agora?  Tem uma experiência ou outra interessante, mas a formação inicial nas universidades é frágil. A formação continuada esbarra nas dificuldades das secretarias de educação. A gestão da política educacional tem sido desafiante” – diz.

A participação do Movimento Negro, no entanto, não foi de todo descartada do processo de implantação da lei. Ele está previsto nas “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”, lançado pelo MEC, em 2004.

 

Publicação com as diretrizes do MEC. Reprodução

Nas páginas 17 e 18, o documento consigna que “a autonomia dos estabelecimentos de ensino para compor os projetos pedagógicos permite que se valham da colaboração das comunidades a que a escola serve e do apoio direto ou indireto de estudiosos e do Movimento Negro”.

Esta é apenas uma das muitas discussões feitas desde que a lei 10.639 entrou em vigor.

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Nota de pé de página

[1]  Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996

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Legenda da foto principal: Capa do processo de tramitação do PL 259/199 que deu origem à lei 10.639. Reprodução

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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.

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Leia a série completa

PARTE I

A lei fracassou?  As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos

PARTE II

A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso

PARTE III

Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió

PARTE IV – FINAL

'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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