Pesquisa mostra realidade brasileira

Bahia está abaixo da média nacional de aplicação da legislação que tornou obrigatório o ensino de história da África e cultura afro-brasileira

Paulo Oliveira

Pesquisa divulgada pelo Instituto Alana [1], em parceria com Geledés Instituto da Mulher Negra [2], em abril deste ano, revelou que 71% das secretarias municipais de educação não cumprem a lei 10.639 e que apenas 29% das redes de ensino realizam ações consistentes e perenes para implementá-la. O levantamento sobre o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, reuniu informações de 1.187 secretarias (21%) das 5.570 existentes no Brasil.

Sancionada há 20 anos, a lei depende principalmente de iniciativas individuais de professores, muitos deles militante de movimentos negros. A maioria das secretarias não prioriza a implantação, não oferece estrutura administrativa, nem condições financeiras para atender o que está previsto na legislação e nas diretrizes curriculares.

O recorte sobre o Nordeste mostra que das 1.793 secretarias municipais de Educação existentes, 491 (27,3% do total) responderam ao questionário da pesquisa. Com isso, a região foi a que teve maior adesão [3] ao estudo. No entanto, na Bahia apenas 25% (106) das 417 redes municipais participaram da pesquisa.

Embora Salvador tenha sido a capital pioneira na implantação da 10.639 e o estado sempre tenha ficado à frente de discussões sobre questões étnico-raciais, apenas 28 gestores (27% do total) disseram que seus municípios realizam ações consistentes para cumprir a legislação. Os outros 72% admitiram que não realizam nenhum tipo de atividade ou executam práticas menos estruturadas. Isso deixa a Bahia abaixo da média nacional em termos de aplicação da lei.

Além disso, a percepção dos dirigentes sobre os desafios para a implementação da lei é que falta apoio de governos, organizações e outros parceiros. Eles também ressaltam dificuldades dos gestores e professores e professoras em transpor o que está previsto nos currículos para os projetos das escolas.

Diante do cenário sombrio, a analista de políticas públicas do Instituto Alana, Beatriz Soares Benedito, é instada a responder se a lei 10.639 fracassou:

“A gente não pode dizer que a lei não pegou porque a lei funciona superbem na sala de aula. O que a gente precisa fazer é que ela aconteça de forma intencional, planejada e ao longo do ano inteiro” – diz.

Beatriz acrescenta que a lei é pouco institucionalizada e poucas secretarias (trabalham a aprendizagem com recorte raça e cor, o que só ocorre em 24% [4] das redes que responderam à pesquisa. Portanto, sem discussões sob esta perspectiva não há direcionamento para efetivar políticas públicas que reduzam a desigualdade no Brasil.

Embora não avance na velocidade esperada, a lei, considerada o principal instrumento de combate ao racismo nas escolas. Beatriz Benedito ressalta que, graças a professores, coordenadores pedagógicos e diretores comprometidos com a educação antirracista, existem experiências exitosas no sentido de garantir aos alunos o direito de conhecer a história e cultura do país e dos povos que o constituíram.

Um dos questionamentos feitos pelos pesquisadores aos responsáveis pelas secretarias de educação foi sobre os temas étnico-raciais tratados com os estudantes. Os mais citados foram literatura negra e alimentação, temáticas, segundo a analista, importantes para criação de referências, valorização da cultura e para iniciar os debates:

“No entanto, assuntos relacionados à manutenção de privilégios, hierarquização do saber, construção do racismo em si, eles são muito pouco abordados. Isso precisa ser aprofundado para que se possa fazer uma discussão que fale mais sobre o racismo estrutural” – diz.

Outro gargalo é a falta de intencionalidade para a criação de bibliotecas e para a articulação de discussões com outras escolas.

“O que a gente vê é um papel muito reativo à discriminação racial. Quando há uma denúncia, a secretaria se mobiliza para dar uma resposta, mas muitas não assumem o papel de propor e avançar na discussão”.

Ações de Diadema (SP) são consideradas exemplares pelo Instituto Alana. Divulgação

Beatriz anunciou que a próxima etapa da pesquisa, intitulada “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, será divulgada em breve. De acordo com ela, a etapa qualitativa revelará ações consistentes e perenes para implementar a legislação, desenvolvidas pelas secretarias de Belém (PA), Cabo Frio (RJ), Criciúma (SC), Diadema (SP), Ibitiara (BA) e Londrina (PR).

Em Diadema, desde outubro de 2022, foi incorporada uma aula semanal de relações étnico raciais à grade curricular das escolas de ensino fundamental I. O programa “Diadema, de Dandara [5] e Piatã [6]”, incorpora o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas 61 escolas municipais.

A prefeitura também criou o Centro de Formação Carlos Kopcak (1948-2017), em homenagem ao educador popular e ex-secretário de Educação. Nele, são oferecidos cursos diversos, incluindo preparatórios para o Enem, cultura latino-americana e temáticas étnico-raciais. A unidade também está equipada com biblioteca afro-indígena e jogos lúdicos, utilizados para o ensino de história, geografia, matemática, lógica e estratégia

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Notas de pé de página

[1]  O Alana é um ecossistema de três esferas interligadas – um instituto, uma fundação e um núcleo de negócios de entretenimento de impacto -, interdependentes, de atuação convergente, orientadas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. As três unidades combinam educação, ciência, entretenimento e advocacy (defesa de uma causa). O Instituto, criado em 1994, no Jardim Pantanal, em São Paulo, trabalha com programas próprios para garantir o desenvolvimento integral da infância em diferentes espaços de vivência.

[2] Criado em abril de 1988, Geledés – Instituto da Mulher Negra tem por missão a luta contra o racismo e o sexismo, a valorização e promoção das mulheres negras e da comunidade negra em geral. Atua em parceria com diversas organizações do movimento social na definição de políticas públicas que eliminem discriminações sofridas por mulheres e negros na sociedade brasileira.

[3] O Nordeste teve 41% de respondentes da pesquisa contra 20% do Sudeste; 18%, do Sui; 11%, do Centro-oeste; e 10%, do Norte.

[4]  Foram 319 das 1.187 redes que responderam os questionários.

[5]  Dandara dos Palmares, considerada uma das figuras fundamentais na liderança do Quilombo de Palmares no século XVII.

[6]  O nome Piatã significa “pedra dura”. Ele faz a conexão entre natureza e as raízes culturais dos povos indígenas.

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Legenda da foto principal: Beatriz Benedito, analista de políticas públicas do Instituto Alana, debate resultado da pesquisa sobre a lei 10.639. Foto: Divulgação

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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.

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Leia a série completa

PARTE I

A lei fracassou?  As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos

PARTE II

A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso

PARTE III

Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió

PARTE IV – FINAL

'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento

Paulo Oliveira Administrator

Jornalista, editor, professor e consultor, 60 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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