As yabás I – Mãe Hildelice dos Santos

Filha de Lissa, doné [1] Hildelice se vê à frente de desafios que contornou com obediência

Cleidiana Ramos

Em 1988, Hildelice Benta dos Santos se viu diante de um grande obstáculo: filha de Lissa, a divindade que veste branco e tem um lugar elevado entre os voduns, no panteão do candomblé de nação jeje savalu, foi requisitada para se tornar professora. O pedido foi feito pela fundadora do Terreiro Jitolu e doné Mãe Hilda Santos, sua mãe biológica. A líder espiritual estava agoniada por observar como as crianças da Rua do Curuzu, no bairro da Liberdade, passavam parte considerável do dia na rua.

À época, o sistema público de educação não incluía a alfabetização e as creches eram raridade em Salvador, especialmente para quem não podia pagar, realidade para a maioria dos vizinhos de Mãe Hilda. Ela então decidiu oferecer uma alternativa informal com a ajuda de outra filha, Hildemaria Georgina dos Santos.

O Jitolu já estava sedimentado como um polo para inovações. Foi no mesmo barracão que agora ia virar uma escola para a criançada do Curuzu que aconteceram as reuniões de fundação do Ilê Aiyê, em 1974. Mãe de Antônio Carlos dos Santos, conhecido como Vovô, e dos outros diretores e diretoras do bloco, a líder religiosa entendeu que aqueles jovens estavam elaborando algo para além do Carnaval. Versados em ritmos musicais, eles também discutiam os movimentos internacionais como o panafricanismo e as lutas antirracistas nos EUA, inclusive as de orientação armada como os Panteras Negras.

Adotar cabelo black power e gritar lemas como “negro é lindo” era o cartão de visitas, mas trazia o perigo de uma inclusão na Lei de Segurança Nacional da Ditadura Militar, cada vez mais violenta no Brasil. Falar de racismo era um perigo e, por isso, Mãe Hilda decidiu que ia para a rua junto com os que chamava de “meninos”, pois além dos seus filhos era a “tia” de parte considerável dos participantes da aventura.

E assim fez, no Carnaval de 1975, o que virou rotina e se desdobrou em um rito que acontece no sábado, primeiro dia de desfile do bloco. Durante décadas, ela presidiu a cerimônia da saída da agremiação, que acontece na sacada da casa onde fica o Jitolu, para garantir que tudo transcorresse em paz.

LIÇÕES DO VODUM
Reprodução da foto de Mãe Hilda

Mãe Hilda era filha de Omolu, o especialista em curar as doenças do corpo, especialmente as de pele, e que na sua tradição religiosa é chamado de Azoany, Sakpata, dentre outras denominações. Mas este vodum é também aquele que conhece o segredo de domar a morte, pois a acorrentou quando ele era ainda uma criança. E mais: é também Senhor da Fartura, pois sua festa, o Olubajé [2], alimenta toda a comunidade.

Com sua voz tranquila e de pouca conversa, Mãe Hilda não parava de fazer brotar ajuda na direção de quem precisava e, para isso, recorria à própria família. Dizendo-se uma pessoa tímida, a filha Hildelice não conseguiu dizer não para ela e começou um processo de transformação da sua própria dificuldade de interação naquelas tardes e manhãs com as crianças. E foi descobrindo que gostava da experiência.

Em uma visita ao Ilê Aiyê, o ex-secretário de Educação da Bahia Edivaldo Boaventura (1983-2018) prometeu conseguir os kits de material escolar para a iniciativa. A promessa foi cumprida.

“Até hoje a gente tem guardado um kit que vinha com um caderno que tinha o hino da Bahia na capa, caneta, lápis e borracha. Era uma festa para os meninos”, conta Mãe Hildelice.

Nas semanas que tinha festa no terreiro, o calendário da escola tinha que se adaptar e só iniciar o retorno na terça-feira, pois de sábado a segunda tudo na estrutura com cerca de 70 metros quadrados era usado para as atividades religiosas. Mas havia também o benefício de que, nos períodos sem festas, a escola se expandia até o quintal do terreiro.

 

SOLIDARIEDADE CONTÍNUA

Na escola Mãe Hilda as crianças não aprendiam apenas sobre a história das civilizações africanas, como tinham contato com uma pedagogia renovada de educadoras que estavam revolucionando também o sistema formal, como Ana Célia dos Santos e Lourdinha Siqueira. Elas, inclusive, participavam do processo de concepção dos cadernos do Ilê Aiyê, uma ação para compartilhar o tema do bloco a cada ano.

“Imagine aprender com esse pessoal todo que estava aqui, como Ana Célia, Lourdinha, Jônatas Conceição”, destaca Hildelice Santos.

Em 2004, com a construção da Senzala do Barro Preto, a sede oficial do Ilê Aiyê, a Escola Mãe Hilda migrou para o novo espaço. O projeto estava sedimentado e era até possível que as crianças, inclusive as que participaram dos anos iniciais, chegassem ao sistema de educação formal, entrando em séries adiantadas, pois estavam alfabetizadas.

As que já estavam no sistema público ganhavam na Mãe Hilda a possibilidade de continuar em ambiente escolar por mais tempo, frequentando um turno oposto ao da educação formal,  uma realização do que hoje é conhecido como educação em tempo integral. Elas não apenas faziam oficinas de percussão e de outras práticas como também tinham aulas sobre cultura afro-brasileira.

Com a transformação do projeto em algo muito maior do que aquele iniciado no barracão, HIldelice se viu diante de um novo pedido da mãe: fazer o seu curso de nível superior.

“Ela dizia assim: “Vai menina, até para melhorar essa sua timidez” – recorda.

NOVOS DESAFIOS

Obediente, Hildelice entrou em um curso de pedagogia de uma instituição particular. Foi preciso paciência e resiliência, pois a faculdade foi transferida para Cajazeiras, a 15 quilômetros de distância, o que desanimou algumas colegas. A futura doné, no entanto, não desistiu.

Hildelice chegou a ficar na coordenação pedagógica da Escola Mãe Hilda, mesmo passando por um período de provações. Dois anos antes do início de sua formação, a irmã Hildemária, parceira no projeto, morreu. Em 2009, nas vésperas da formatura, Mãe Hilda faleceu.

“Foi um período de muita dor e que eu nem sabia direito como expressar. Eu não tinha essa facilidade de conversar e até fiz terapia”, conta.

As surpresas e desafios não tinham acabado. Quando uma liderança de um terreiro morre, o que é considerado o retorno ao estado de origem, são necessários ritos especiais e um longo período de luto. O terreiro fica fechado para atividades públicas e só é reaberto, geralmente, após um ano. Em seguida, ocorre a cerimônia que indica a sucessão. Em algumas Casas, a escolha pode recair em qualquer uma das sacerdotisas que recebem santo e já completaram seu ciclo de formação sacerdotal. Já em outras, como é o caso do Jitolu, a sucessão é consanguínea, ou seja, necessita ser alguém da família da pessoa que fundou o terreiro.

A escolha é  feita por meio do jogo de búzios, realizado por um sacerdote de outra comunidade religiosa com prática nessa atividade. A comunidade do Jitolu se reuniu em 2011 com essa finalidade. A escolha recaiu sobre Hildelice, que agora tem o título de doné Hildelice e também é responsável pelo rito de saída do bloco Ilê Ayê no Carnaval. “É difícil e complicado, mas é aquela questão da obediência que a gente aprende”, completa.

EM COMPASSO DE ESPERA 

Com a pandemia de coronavírus e as dificuldades vividas pelo Ilê Aiyê para conseguir o financiamento de projetos, as atividades da escola foram suspensas, após tentativa de funcionar de forma remota em 2021 e 2022. Atualmente, a reabertura depende da assinatura de um convênio com a Secretaria Municipal de Educação para que o projeto continue funcionando como uma associação cultural, sem integrar a rede de ensino formal.

A assinatura está prevista para o próximo ano. A ideia é atender cerca de 300 crianças de diversos bairros de Salvador, como ocorria antes da paralisação das atividades. Na escola também havia o projeto de madrinhas e padrinhos. Diretores do Ilê, como Vivaldo dos Santos, também filho de Mãe Hilda,  e membros da associação cultural adotavam aniversariantes e promoviam as festas. Isso também é feito em datas específicas, como a de São Cosme e São Damião, o que alegra a criançada.

 

No terreiro onde funcionou a primeira escola, hoje também abriga o Instituto da Mulher Negra. Foto: Olga Leiria

O Instituto Mulher Negra, lançado em janeiro de 2023, é outra instituição que funciona no mesmo local do terreiro. Lá, onde Dete Lima, filha mais velha de Mãe Hilda, e Raílda ensinam bordado, funcionou a primeira escola comunitária do Ilê. O espaço tem cerca de 70 metros quadrados.

A atenção aos mais velhos também fez parte do cuidado e criatividade de Mãe Hilda através do projeto Dandarerê, voltado para os idosos.

“Mãe, com aquele jeitinho quieto dela, não era fácil. A gente ia ver e ela já estava criando e implantando outra coisa”, diz Mãe Hildelice.

–*–*–

O ITAN  DE HOJE

 

Glossário:
Epa babáSaudação dirigida a Oxalá. Significa “Salve pai”.

–*–*–

Notas de pé de página

[1] Cargo exclusivamente feminino no candomblé Jeje. Semelhante a ialorixá (mãe de santo) no candomblé Queto.

[2] Quem chega na festa não sai sem consumir um banquete, pois são vários pratos, acomodados em uma folha de bananeira. A generosidade de Azoany inclui ensinar a passar o recipiente dos alimentos, agora consagrado por sua força, no corpo para afastar o risco de doenças infecciosas.

–*–*–

Legenda da foto principal: Doné Hildelice foi professora da escola do terreiro Jitolu, no Curuzu. Foto: Olga Leiria

–*–*–

A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.

–*–*–

Leia a série completa

PARTE I

A lei fracassou?  As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos

PARTE II

A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso

PARTE III

Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió

PARTE IV – FINAL

'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento

Cleidiana Ramos Contributor

Cleidiana Ramos é jornalista, mestra em estudos étnicos e africanos e doutora em antropologia. Professora visitante na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus Conceição do Coité, produz a coluna semanal Memória, no jornal A Tarde. É especialista em religiões afro-brasileiras e católica. Outro tema que domina são as festas populares baianas.

Compartilhe esta publicação:
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sites parceiros
Destaques