Linda Gomes e Paulo Oliveira
O Ministério Público Federal instaurou inquérito há três anos e seis meses para acompanhar as condições de aplicação da metodologia dos colégios militares em escolas municipais. Nesse período, a investigação resultou em recomendações para que a implantação do sistema de gestão compartilhada fosse interrompido e deixasse de restringir a liberdade de expressão, de impor padrões estéticos e interferir na vida privada dos alunos.
Apesar de não se recusar a dar informações sobre o processo à Procuradoria Regional dos Direitos dos Cidadãos (PRDC) e reconhecer que houve falhas na operacionalização inicial do convênio com as prefeituras, o comando da PM não atendeu às recomendações por não considerar que há graves irregularidades no sistema. Além disso, o ex-comandante da corporação, coronel Anselmo Brandão, diz que cabe à justiça resolver a questão.
O inquérito 1.14.001.001281/2018/02 tem prazo previsto para ser finalizado no dia 12 de setembro de 2022. Além do ritmo da apuração ter ficado mais lento durante o período mais grave da pandemia de Covid-19, o procurador Gabriel Pimenta Alves, que conduzia a apuração, foi transferido para o Mato Grosso. Com isso, o caso deixou de ser acompanhado pela PRDC e foi descentralizado.
De acordo com a assessoria de imprensa do MPF, cada uma das 14 unidades do MPF na Bahia deve acompanhar e fiscalizar o atendimento às recomendações. Caberá a cada procurador decidir se é necessário entrar na justiça para que as solicitações feitas por Gabriel Pimenta sejam atendidas. Até o momento não há informações de que isto tenha ocorrido.
Para mostrar o andamento do inquérito, Meus Sertões consultou as 724 páginas do volume principal. Eis o resumo do que aconteceu até o momento:
O procurador federal Gabriel Pimenta Alves, lotado na Procuradoria da República em Ilhéus e Itabuna, instaurou inquérito, no dia 10 de setembro de 2018. O processo foi formalizado três meses e 26 dias após o comando da Polícia Militar assinar convênio com a União dos Municípios da Bahia (UPB);
Gabriel se baseou em fatos e reportagens. Dentre eles, a falta de embasamento de que os resultados obtidos em avaliações de alunos ocorram devido à metodologia e filosofia do método de ensino da PM e eventual descumprimento do artigo 206 da Constituição Federal, que estabelece o ensino baseado na liberdade, no pluralismo de ideias e na gestão democrática da rede pública.
O artigo “A militarização das escolas públicas”, do cientista social Rudá Ricci, publicado na edição 134 do Le Monde Diplomatique Brasil, também foi anexado ao inquérito. Nele, Ricci afirma que, “entre as iniciativas de captura das redes públicas de ensino, a mais esdrúxula foi a entrega de sua gestão às corporações militares”.
O autor acrescenta que os motivos alegados estão baseados em relatos de violência no interior da escola e ressalta que o filósofo Michel Foucault, em uma série de conferências sobre a lógica da sociedade punitiva, definiu as táticas utilizadas.
A disciplinarização da juventude está emoldurada pela exclusão, que exila; pela compensação, que impõe reparo à vítima do dano e provoca obrigações àquele que é considerado infrator; e pela marcação, que impinge uma cicatriz, uma mácula simbólica no nome do não ajustado, humilhando-o e reduzindo o seu status.
Outras razões contra a militarização das escolas são sintetizadas por Rudá Ricci, com base em texto do portal “Desacato”. Destacam-se a adoção de um regime disciplinar arbitrário; a relativização dos conceitos de direito, garantias e liberdades, subordinados a um rol de deveres; a associação da noção de bom cidadão à obediência, mesmo que isso tolha individualidades e os direitos dos alunos e perpetue as desigualdades e a discriminação; e a apologia ao regime de dominação rigorosa, reafirmando o ciclo de imposição e violência no qual (os PMs) se formaram.
O procurador, depois de incluir mais argumentos, estipula como diligências iniciais, o envio de ofícios, pedindo esclarecimentos sobre o processo de implantação do sistema CPM para o comando da corporação, a secretaria estadual de educação, o sindicato dos professores (APLB), e nove gestores municipais que haviam assinado o acordo.
A PM encaminha cópia do convênio assinado com a UPB. A secretaria de educação responde, no dia 15 de janeiro de 2019, que nada tem a ver com o processo.
No dia 4 de fevereiro, o MPF solicita os projetos de implantação do “Vetor Disciplinar” e informações sobre a contratação de PMs reformados às prefeituras de Campo Formoso, Dias D’Ávila e Nova Soure.
O prefeito Luís Cássio de Souza Andrade enviou o nome e os valores dos vencimentos (R$ 2.000, R$ 2.500 e R$ 3.000, de acordo com a função) dos policiais da reserva contratados e anexa cópia da lei 508/2018, que estabeleceu o sistema dos colégios da PM no Centro Educacional Professora Maria Ferreira da Silva e criou os cargos de diretor militar, coordenador e tutor disciplinar.
A legislação, elaborada para atender as exigências da PM-BA, prevê no artigo 2º, parágrafo 3º, que uma das funções do novo diretor é “elaborar os planos do curso e ementas de instrução militar (I.M) com abrangência nos conhecimentos básicos de Ordem Unida”, de acordo com o manual de campanha C22-5 (…) do Exército Brasileiro (…), bem como coordenar a aplicação de tal instrução ao público discente”.
Uma busca na internet revela que o manual citado tem 249 páginas e seis capítulos sobre instrução individual sem arma, instrução individual com arma (fuzil, mosquetão, pistola, metralhadora, espada), instrução coletiva, ordem unida com viaturas, ordem unida de organizações militares a pé, motorizadas, mecanizadas, blindadas e hipomóveis (regimentos de cavalaria) e comandos por gesto.
Já Francisco Lessa, secretário de Educação de Dias D’Ávila, envia a relação dos policiais contratados, cópia do convênio assinado com a Polícia Militar e documento (foto acima) informando que o PM Sergio Glaydson da Silva Lima consta na folha de pagamento da secretaria. Esclarece ainda ele tem como uma das atribuições previstas pelo regimento interno “liderar as ações de elaboração e execução do Projeto Político Pedagógico da Escola – PPP – e do Plano de Desenvolvimento Escolar – PDE – visando a eficiência e eficácia da unidade”.
A major Ivanda Almeida Ribeiro, à época comandante da 54ª CIPM, responde que, em Campo Formoso, foram contratados um capitão, um subtenente e quatro sargentos para a escola Professora Maria do Carmo. Sobre o diretor disciplinar, revela que ele tem como atribuição “estimular a produção de materiais didático-pedagógicos na unidade escolar conveniada” e “promover a política educacional, que implique no perfeito entrosamento entre os corpos docente, discente, técnico-pedagógico e administrativo”.
As respostas são indícios que, pelo menos nos primeiros convênios, os policiais da reserva podiam interferir na área pedagógica. Além disso, os regulamentos disciplinares enviados pelas prefeituras de diferentes cidades mostram outros dados interessantes.
Observando os regulamentos disciplinares das prefeituras, verificamos que seis artigos foram retirados do modelo enviado pelo coronel Anselmo Brandão, em 28 de fevereiro de 2019. Um deles, o número 45, trata da entrada e saída da escola. Os demais foram utilizados na elaboração da cartilha do aluno, com algumas alterações.
O parágrafo 4 do artigo 47 permitia o uso de tiara para alunos de cabelo curto que tivessem o objetivo de reduzir o volume dele. O 49 autorizava o uso de batom, base ou pó compacto, sombra e lápis para olho, rimel blush/rouge e delineador. Vedava, porém, quantidade excessiva, cores vivas e contraste com a tonalidade da pele. O texto atual da cartilha diz o seguinte: “Entende-se por cosmético e maquilagem, o batom e o esmalte de unhas, dentre outros”.
O regulamento também especificava as cores de esmalte (branco, rosa, terroso, tons marrons, tons escuros de vermelho e transparentes) autorizadas. Definia ainda que todas as unhas deveriam ser pintadas da mesma cor e que não era permitido a aplicação de enfeites, adesivos, desenhos, adornos e similares.
Após analisar as informações, o procurador Gabriel Pimenta fez as seguintes recomendações aos prefeitos e diretores das escolas, no dia 24 de julho de 2019:
1. Que se abstenham de violar ou restringir indevidamente por meio de servidores civis ou militares, efetivos ou não, a liberdade de expressão, intimidade e vida privada dos alunos, com a imposição de padrões estéticos (…) e/ou deixe de fiscalizá-los ou puni-los em razão da apresentação pessoal.
2. Que se abstenham, imediatamente, de restringir (…) a liberdade de expressão dos alunos, inclusive por meio de controle do tipo de publicação que levam para escola ou fazem em redes sociais e por proibição de participação em manifestações de qualquer tipo, sejam políticas ou reivindicatórias, dentro ou fora da escola, fardados ou não.
3. Que se abstenham, imediatamente, de fiscalizar e proibir (…) comportamentos neutros dos alunos, que não afetam direitos de terceiros ou interesses públicos (…) tais como frequentar local de jogos eletrônicos, namorar ou qualquer outro tipo de proibição baseada unicamente em moralismo, incompatível com o Estado Democrático de Direito.
4. Que deem ampla divulgação aos termos desta recomendação, dentro e fora da escola.
Ao Comando da Polícia Militar do Estado da Bahia foi recomendada a suspensão imediata de elaboração de novos acordos que resultem na aplicação da metodologia dos colégios da PM nas escolas públicas municipais por ela ser incompatível com a Constituição Federal, convenções internacionais, leis e resoluções do Conselho Nacional de Educação. O procurador também considera que o processo “importa em violações múltiplas de direitos fundamentais de crianças e adolescentes”
Foram expedidas cópias das sugestões para o governador Rui Costa tomar conhecimento e acompanhar o cumprimento delas. Para os órgãos fiscalizadores como o Tribunal de Contas do Estado da Bahia e o Tribunal de Contas dos Municípios avaliarem a legalidade, legitimidade e economicidade da política pública, a eventual violação do princípio de impessoalidade na escolha dos policiais militares da reserva, bem como a possibilidade do uso indevido de recursos da educação.
O documento foi enviado ainda para as Procuradorias da República no estado, a fim de verificarem o cumprimento das recomendações nos municípios onde atuam e ao Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos (CAODH), do Ministério Público Estadual para adoção de providências cabíveis.
No dia 27 de julho, o coronel Anselmo Brandão encaminhou ofício ao procurador, defendendo a manutenção e continuidade da assinatura de convênios com 15 páginas de considerações. Em defesa da implantação do método CPM nas escolas municipais, ressaltou a experiência com policiamento comunitário, a necessidade de parceria com as comunidades para superação de problemas, argumentou que não há militarização e sim a implementação da disciplina como vertente do militarismo e reconheceu erros na fase inicial do processo de gestão compartilhada:
“Detectamos equívocos no projeto inicial do processo de operacionalização dos termos do convênio em Campo Formoso e Nova Soure. Medidas estão sendo implementadas para promover os ajustes necessários” – ressaltou antes de pedir o reexame da recomendação.
A pandemia de Covid-19 reduziu o ritmo do inquérito. Além disso, o procurador Gabriel Pimenta foi removido para a Procuradoria da República no Mato Grosso, onde passou a atuar em questões relacionadas aos povos indígenas. Com a alteração, o interino na Procuradoria de Direitos dos Cidadãos interrompeu o andamento por 10 dias úteis. O processo foi retomado no dia 30 de abril de 2020.
Em 24 de setembro, o procurador Tiago Modesto Rabelo prorrogou por quase dois anos o prazo para finalização do inquérito, agora previsto para 12 de setembro de 2022. Em março deste ano, novas informações foram pedidas a alguns prefeitos. A decisão de aguardar resposta foi a última movimentação.
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Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.
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LEIA A SÉRIE COMPLETA
PARTE I
A militarização das escolas na bahiaO avanço para o interior O exemplo goiano Diferentes escolas militares e militarizadas
PARTE II
A elitização da primeira escola militarizada A história do Colégio Maria do Carmo Mães aprovam modelo CPM, filhos nem tantoFundamental I e ensino médio na mira
PARTE III
Conceição do Jacuípe: boletim expõe alunos O regulamento e a cartilha Muita fé e só uma mulher entre 466 tutores Tutor disciplinar barra aluna negra
PARTE IV
Escola troca nome de vítima da ditadura Mais unidades da PM do que infraestrutura Entre a esperança e o bafo da milícia
PARTE V – FINAL
Miriam Fábia: “Impacto brutal na formação dos jovens”Major Fabiana: ‘Disciplina como ferramenta para a vida’O governador emudeceuDepoimentos de ex-alunos do CPM
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Linda Gomes é integrante da Rede Latino-americana de Jovens Jornalistas. Doutoranda em estudos de gênero e políticas de igualdade. Mestra em produção, edição e novas tecnologiasjornalísticas, com passagem em veículos da América Latina e da Europa.