O avanço para o interior

Linda Gomes e Paulo Oliveira

Quando o governador Rui Costa (PT) anunciou que o Estado assinaria o termo de acordo para implantação da metodologia dos Colégios da Polícia Militar (CPMs) nos estabelecimentos municipais de ensino da Bahia, a Escola Professora Maria do Carmo de Araújo Maia, em Campo Formoso, já tinha realizado a aula inaugural quatro dias antes (12/03/2018) sob o novo sistema. Na ocasião, Anália Freire, diretora da escola, divulgou as novas normas, incluindo que não seria mais permitido o uso de qualquer adereço que não fizesse parte do fardamento e o uso obrigatório de coque pelas meninas. Na véspera, segundo o site Campo Formoso Notícias, a Secretaria de Desenvolvimento Social providenciou o corte de cabelo dos garotos.

A Polícia Militar começou a administrar o próprio colégio em 1957. A iniciativa foi do governador Antônio Balbino, seguindo o exemplo do Exército, que acabara de criar uma escola de segundo grau em Salvador. De acordo com a dissertação “Colégio Estadual da Polícia Militar da Bahia – Primeiros Tempos: Formando Brasileiros e Soldados (1957-1972), da historiadora Andrea Reis de Jesus, Balbino assinou decreto com objetivo de propiciar instrução gratuita aos filhos de policiais e, caso as vagas não fossem totalmente preenchidas, seriam destinadas para familiares de servidores públicos civis.

Com o passar do tempo, as duas salas improvisadas no Centro de Instrução da Polícia Militar se transformaram em uma rede estadual de CPMs. Para isto, foi fundamental a decisão do governador Paulo Ganem Souto. Entre 2003 e 2007, Souto (ex-PFL, ex-DEM e hoje no União Brasil) interiorizou os colégios através de um acordo com a secretaria estadual de Educação e a autorização para transformar escolas públicas em estabelecimentos militarizados. Surgiram então as unidades de Itabuna, Feira de Santana, Ilhéus, Vitória da Conquista, Juazeiro, Alagoinhas, Jequié, Candeias e Teixeira de Freitas. À época, também foi criado o CPM do bairro da Ribeira, o terceiro da capital, ao lado do “colégio mãe” Dendezeiros e o do Lobato.

O número de CPMs pôde ser ampliado, depois que a lei de organização básica da corporação foi alterada no último ano de gestão de Jaques Wagner. O limite passou para 17 escolas militarizadas. No decorrer dos governos petistas, Wagner e Rui Costa instalaram dois CPMs em bairros da capital – Boa Viagem (2007) e Fazenda Grande II (2017) [4] – e um em Barreiras (2018), cidade cuja principal atividade econômica é o agronegócio. Este ano foi anunciada a implantação de mais uma unidade em Bom Jesus da Lapa. Falta definir a última. No entanto, oficiais da área de ensino da Polícia Militar dizem nada impedir que futuros governadores aumentem a quantidade de colégios.

Uma importante documentação sobre o controle de unidades de ensino por policiais militares é a dissertação “Militarização das escolas públicas no Brasil: expansão, significados e tendências”. Nela, o professor Eduardo Junio Ferreira Santos revela que o processo começou no Mato Grosso, em 1990, e se alastrou para pelo menos 12 estados e o Distrito Federal. Ao final de 2019, Santos contabilizou 240 escolas militarizadas. A Bahia, com 79 – 13 estaduais e 66 municipais -, liderava o ranking. Goiás, que serviu de modelo para o fenômeno, caiu para segundo lugar. Entre os anos de 2000 e 2021, o Paraná assumiu a dianteira desta iniciativa. Em oito meses, o governador Ratinho Júnior implantou 206 “escolas cívico-militares”, equivalente a 10% de toda a rede estadual.

NARRATIVA OFICIAL

O motivo de a Polícia Militar baiana ter decidido ampliar a área de atuação para o Ensino Fundamental II, segundo o comando da corporação, foi para atender ao pedido de prefeitos preocupados com os índices de criminalidade nas escolas e o baixo desempenho dos alunos. Na prática, o governo estadual tinha interesses eleitorais, pois a implantação da militarização ocorreu seis meses antes das eleições majoritárias de 2018.

Fernando Bispo Ramos, ex-prefeito de Anguera. Reprodução do Zoom

Na narrativa oficial, pouco tempo após ter assumido a prefeitura de Anguera, em 2017, Fernando Bispo Ramos viajou 154 quilômetros até Salvador para uma audiência com o coronel Anselmo Alves Brandão, comandante da Polícia Militar (PM). Ramos, à época filiado ao PT, propôs a instalação de um colégio da corporação na cidade. O político levava em conta a alteração na lei de organização básica da PM ocorrida três anos antes, permitindo a ampliação do ensino militar em escolas estaduais.

A iniciativa do político, hoje no PSD, foi malsucedida. O coronel lhe explicou que o colégio precisaria de um contingente de oficiais e soldados da ativa, acarretando despesas e a retirada do policiamento das ruas, o que não seria aceito pelo governador. Com 11 mil habitantes, Anguera também não atendia a estratégia de priorizar municípios de maior porte.

De acordo com Anselmo Brandão, Fernando Ramos sugeriu então a assinatura de um convênio e isto abriu a possibilidade de ser criado um projeto em que as prefeituras arcassem com todas as despesas de instalação. Incluía a reforma das escolas, a compra de uniformes para os alunos e a contratação de policiais da reserva responsáveis pela parte disciplinar.

O relato do ex-prefeito, cujo objetivo era passar uma escola municipal para o controle e administração da polícia a fim de resolver “os problemas com drogas no município” e a indisciplina dos alunos, difere ligeiramente. Ramos não queria ter nenhuma despesa com a transferência:

“Nós achávamos que a Polícia Militar poderia assumir e custear os gastos com a manutenção da escola, com os professores e os PMs. Os demais funcionários ficariam por conta da prefeitura” – admite o ex-gestor municipal.

Mesmo desapontado, Ramos improvisou:

“Contratei dois policiais da reserva para ministrarem aulas de música no Centro Educacional Professor Áureo de Oliveira Filho e comprei instrumentos novos. Os alunos seguiam o estilo militar no corte de cabelo, no barbear, na continência e na doutrina” – conta.

Fernando Ramos revela que os planos de custear uma escola militarizada [5] ficaram para o mandato seguinte, pois pensava em reeleição. A intenção fracassou quando ele e o vice-prefeito Moisés Oliveira foram cassados, em 2018, pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE)  por subfaturamento em serviços contratados durante a campanha e por gastos com bebidas e churrasco para os eleitores.

No âmbito da PM, porém, a proposta foi colocada em marcha. O coronel Anselmo Brandão convocou o assessor especial para a área de educação e atual diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa (IEP), coronel Jorge Ricardo Albuquerque Pereira, e lhe deu a missão de elaborar o projeto de implantação da metodologia do CPM nas escolas municipais.

“Algumas coisas foram criadas; outras, aperfeiçoadas. O regimento do Colégio da Polícia Militar foi adaptado. Mantivemos o regulamento, com algumas mudanças em relação à parte comportamental, mas a parte pedagógica ficou a cargo das prefeituras” – diz Albuquerque.

Tudo foi feito por determinação do governador. No relato do ex-comandante, a decisão de Rui Costa resultou em muitas críticas e os dois tiveram nova conversa:

“Eu perguntei: “Governador, vamos tocar o projeto?”. Ele disse: ‘Eu estou tendo resistência de algumas categorias, principalmente do pessoal do meu partido. Considere que o pai tem o direito de escolher a escola dos seus filhos. Se o prefeito quiser participar, está na conta dele’” – conta o oficial.

Brandão e Eures conversam sobre o sistema dos colégios da PM – Facebook – 23/08/2017

Para legitimar politicamente a implantação do sistema de ensino CPM nas escolas municipais foi assinado um termo de cooperação técnica entre a Secretaria de Segurança Pública, a Polícia Militar e a União dos Municípios da Bahia (UPB), em 10 de maio de 2018. O documento foi publicado no Boletim Geral Ostensivo (BGO) 101, no dia 28 do mesmo mês. 

Pelo acordo, ficou estabelecido que a unidade conveniada desenvolveria o “projeto pedagógico específico, observando as instruções do Instituto de Ensino e Pesquisa da PMBA, bem como as diretrizes educacionais emanadas de órgãos federais e estaduais”.

Apesar do que estabelece o parágrafo único da cláusula um, o comando da corporação insiste que não há interferência na área pedagógica. No entanto, além de rigorosa disciplina e hierarquia, já estava em prática na Escola Professora Maria do Carmo Araújo, em Campo Formoso, uma matéria criada para ser ministrada pelos tutores disciplinares, chamada Metodologia Disciplinar de Ensino (MDE) para omitir o nome original: instrução militar.

O convênio estabeleceu ainda a criação de duas diretorias para cada colégio – a escolar e a militar -, sendo que a segunda é responsável pela disciplina. No termo, ficou estabelecido que caberia à PM capacitar os diretores, os coordenadores e os tutores disciplinares, “podendo ser estendido aos professores e funcionários da UEMC (Unidade de Ensino Municipal Conveniada)”; acompanhar o processo de implantação; vistoriar o sistema de ensino implantado; e indicar policiais militares da reserva remunerada ou reformado para as funções de diretor militar, diretor disciplinar e tutores.

À UPB foram reservadas as seguintes responsabilidades: divulgar entre os prefeitos a possibilidade de adoção do sistema e acompanhar o processo de implantação e as vistorias da PM através de representante designado. A instituição não cumpriu todas as atribuições, conforme admite o ex-comandante Anselmo Brandão:

“O convênio é mais com o município, os responsáveis maiores pelo acordo. O ato com a UPB foi mais simbólico. Ela não criou uma coordenação para as escolas e não tem responsabilidade se acontecer qualquer coisa na gestão, na aplicação de recursos” – explica.

Questionada sobre seu papel no processo de implantação das escolas com a metodologia do CPM, a assessoria da imprensa da União dos Municípios informou que a entidade apoiou o projeto e “cumpriu sua função institucional de aproximar o diálogo dos municípios com os Colégios Militares da Bahia (…), sem interferir nos aspectos técnicos e pedagógicos (…) tratados entre cada secretaria municipal e educação e a PM”.

O prazo determinado inicialmente nos contratos era de dois anos, renováveis por sucessivos períodos de 24 meses. Havia a ressalva de que as prefeituras poderiam rescindir o acordo a qualquer tempo, desde que houvesse comunicação com 30 dias de antecedência. Nos convênios mais recentes, os períodos foram ampliados para cinco anos.

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[1] – Essa quantidade equivale 7,84% do total de alunos matriculados no ensino fundamental II, em 2020. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a Bahia tinha 637.641 estudantes entre o 6º e o 9º ano nas escolas municipais.

[2] – Na versão da major Fabiana Guanaes, coordenadora do modelo Colégio da Polícia Militar (CPM) do MDE não é uma disciplina. Segundo ela, “é uma conversa, uma transmissão de informação, pois os tutores não são professores. “Ele educam de uma forma disciplinar” – avalia.

[3] De acordo com o Dicionário Interativo da Educação Brasileira (Dieb), EMC e OSPB se tornaram disciplinas obrigatórias em 1969, durante a fase mais brutal da ditadura civil-militar no Brasil. Elas eram caracterizadas pela transmissão da ideologia do regime, exaltação do nacionalismo e civismo. Em 1993, foram abolidas pelo presidente Itamar Franco. Atualmente, tramita no congresso proposta para que voltem a ser ministradas.

[4] A proposta inicial era instalar um CPM em Cajazeiras IV, mas professores, pais e alunos do Colégio Estadual Edvaldo Brandão Correia protestaram. O governo e a PM mudaram os planos e militarizaram a escola Dona Leonor Calmon, em Fazenda Grande II, a 3,6 quilômetros do projeto original.

[5] O ex-prefeito voltou a ser comerciante, em Feira de Santana. Em 2020, durante a pandemia, a fanfarra foi dissolvida.

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Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.

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Leia a série completa

PARTE I

A militarização das escolas na bahiaO exemplo goiano Diferentes escolas militares e militarizadas

PARTE II

A elitização da primeira escola militarizada A história do Colégio Maria do Carmo Mães aprovam modelo CPM, filhos nem tantoFundamental I e ensino médio na mira

PARTE III

Conceição do Jacuípe: boletim expõe alunos O regulamento e a cartilha Muita fé e só uma mulher entre 466 tutores Tutor disciplinar barra aluna negra

PARTE IV

Escola troca nome de vítima da ditadura Mais unidades da PM do que infraestrutura Entre a esperança e o bafo da milícia Inquérito 1.14.001.001281

PARTE V – FINAL

Miriam Fábia: “Impacto brutal na formação dos jovens”Major Fabiana: ‘Disciplina como ferramenta para a vida’O governador emudeceuDepoimentos de ex-alunos do CPM

Linda Gomes Contributor

Linda Gomes é integrante da Rede Latino-americana de Jovens Jornalistas. Doutoranda em estudos de gênero e políticas de igualdade. Mestra em produção, edição e novas tecnologiasjornalísticas, com passagem em veículos da América Latina e da Europa.

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